Há uma certa ironia no modo como me vejo, às vezes, diante do espelho. Roupas confortáveis, xícara de café ao lado, silêncio no ambient...

Suor invisível

cansaco mental
Há uma certa ironia no modo como me vejo, às vezes, diante do espelho. Roupas confortáveis, xícara de café ao lado, silêncio no ambiente. Nada que lembre o suor de um operário na construção civil, o ritmo acelerado de um médico no pronto-socorro ou o cansaço físico de quem carrega um peso significativo o dia todo. Meu trabalho parece, aos olhos desatentos, um luxo. Um mero passar dos olhos sobre letras, um divagar da mente.
cansaco mental
Kokoschka, 1919
Mas é aqui, no território silencioso do crânio, que se desenrola a minha jornada mais exaustiva.

A atividade intelectual é um trabalho de mineração na própria consciência. Cada ideia é um veio de minério bruto, escondido no subsolo da memória e do raciocínio. O pico e a pá são a atenção e a concentração. E que trabalho árduo é manter a atenção fixa. Ela é um músculo que cansa, um animal selvagem que quer correr para qualquer lugar, menos para a fenda escura onde o minério está. Um barulho na rua, uma notificação no celular, um pensamento aleatório sobre o que fazer no jantar, são como desmoronamentos que soterram o trabalho de horas.

Há dias em que a mente é uma planície aberta, o sol brilha, e as palavras fluem como um rio tranquilo. Mas há outros, que são mais frequentes, em que ela se transforma num labirinto de névoa. Caminho às cegas, esbarro em paredes de contradições, volto ao ponto de partida exausto. Fico olhando para a tela branca ou para a página em branco, e a única coisa que se move é um cursor piscando,
cansaco mental
Kokoschka, 1909
como se fosse o ponteiro de um relógio marcando o tempo que eu perco. A fadiga que sinto nesses momentos não é a dos músculos, é uma exaustão de alma. Uma pesada lassidão mental, como se meu cérebro tivesse se transformado em chumbo.

E o produto desse trabalho? É o mais intangível que existe. Não é uma mesa feita, um paciente curado, um muro erguido. É um texto. Um conceito. Uma solução. Algo que, se eu não mostrar, ninguém verá. O esforço fica todo para trás, invisível, como os alicerces de um prédio. As pessoas veem a fachada, o argumento pronto, a conclusão elegante. Não veem as noites de insônia, os rascunhos amassados no lixo, as dezenas de abas abertas no navegador, a tensão na nuca que não cede.

cansaco mental
Kokoschka, 1948
No fim do dia, quando desligo o computador, meu corpo pode estar inteiro, mas minha mente está esgotada.

É uma sensação peculiar: as pernas podem levar para uma caminhada, os braços podem levantar pesos, mas a cabeça pede só o travesseiro e o vazio. O silêncio, agora, não é matéria-prima, é o prêmio de consolação.

Reconhecer a atividade intelectual como trabalho é entender que o cansaço também vem em forma de pensamentos intrincados, de conexões neurais forjadas a fogo lento, de uma batalha solitária contra a própria ignorância. É um ofício cerebral, sim, e dos mais pesados. Porque a ferramenta que usamos é a mesma que sente a fadiga, que duvida, que sofre. Trabalhamos de dentro para fora, escavando ideias na mina profunda e silenciosa de nós mesmos. E no final, o que trazemos à superfície, por mais simples que pareça, carrega o suor invisível da mente.

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