Quem entrasse apressado naquela nave daria mais por uma estátua do que uma pessoa, tão perfeitamente imóvel estava. Poderia ser a image...

A graça de ser escritor

Quem entrasse apressado naquela nave daria mais por uma estátua do que uma pessoa, tão perfeitamente imóvel estava. Poderia ser a imagem de um santo em tamanho natural ajoelhado na base da bancada e com a cabeça segura pelas duas mãos sobre o encosto da bancada da frente. Mas, quem se aproximasse com cuidado e após acostumar os olhos à penumbra da tarde ali dentro, poderia perceber que era um homem bem vestido, de terno completo. Diria um burocrata de alto escalão.

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Parecia ser também um homem notavelmente devoto que mexia apenas com os lábios de uma forma quase imperceptível e parecia orar. E se pudesse escutar aquele sussurro, talvez ouvisse algo como uma prece, ou até um mantra, se era permitido recitar mantras dentro de uma igreja católica. De qualquer forma, ele orava baixinho e repetidamente: “Obrigado, São Francisco de Sales por esta graça. Obrigado, também São Cirilo de Jerusalém por esta graça. Obrigado Arcanjo Gabriel por esta graça...”

E se soubesse sobre santos, poderia identificar que São Francisco de Sales, que foi bispo em Genebra, ficou conhecido pelas obras que escreveu sobre formação espiritual e terminou sendo reconhecido pelo Papa Pio XI como santo protetor dos... escritores. Pois, esse era o motivo da devoção de Honório, e este era o nome do devoto ajoelhado agora. E Honório tinha o sonho de ser escritor, o sonho de toda uma vida, desde que pudesse puxar pela memória.

Desde cedo, Honório investiu em aprender gramática, ortografia, envolveu-se com as fórmulas de sintaxe, semântica, arriscou um tantinho pela semiótica (e detestou) e colecionou dúzias de dicionários, fez dezenas de cursos de como escrever. Foram muitos seus esforços. Primeiro, tentou
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escrever mesmo, inclusive com uso de caneta de pena, e lembrava com fascínio que Balzac escrevia sempre com uma pena leve, sobre papel azulado, bebia litros de café e, atenção, envergava uma túnica branca.

Honório passou dias em expectativa aguardando do alfaiate aquela túnica branca, similar a que era citada por Balzac. Ele vestiu, e achou que ficou bem. Considerou um bom auguro. Honório não era tão desprovido de intelecto. Leitor voraz também era. E sabia que um grande escritor começa como um grande leitor. Então, ele tinha algumas ideias e conhecia as ortografias. Estava preparado. De pena em punho, tomando canecas de café e envergando a túnica, Honório era a encarnação de Balzac.

Mas, na hora de começar a escrever... Diferente do escritor francês, que vestido naquela túnica mágica, e empunhando sua pena de gralha, escreveu quase uma centena de novelas e romances, Honório não conseguia nem um conto, um mísero conto, apesar de repetir todo o ritual balzaquiano, exatamente como se sabia. Nem uma pele de onagro.

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Após muito lobrigar, Honório concluiu que os tempos haviam mudado, era preciso se atualizar. Como certamente Balzac fez em relação aos que lhe antecederam. Então adquiriu uma reluzente máquina de escrever remington. Fez curso de datilografia. Cumpriu todos os preparativos necessários. Então, sentou, colocou papel, girou o cilindro da máquina, preparou os dedos e... nada.

Novas meditações levaram Honório a concluir que seria preciso aderir à modernidade. Vira numa recente reportagem que o escritor Rubem Fonseca usava computador. Aliás, muitos escritores contemporâneos já utilizavam o computador. Sem mais demora, Honório fez um esforço tremendo, adquiriu a máquina, fez curso para usar o equipamento.
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E voltou aos rituais. Vestiu a túnica à Balzac, preparou o café, sentou à escrivaninha, ligou o computador, a impressora, que ficava ali piscando sua luzinha vermelha esperando ação. Então, ensaiou a digitação das teclas, fez uma intensa concentração e... nada.

Por mais que tentasse dar vida às ideias, elas resistiam. Honório sabia, daquelas histórias do interior contadas por seu avô, que muitos artistas com dificuldades para externar sua arte faziam um pacto diabólico numa encruzilhada à meia noite e voltavam exímios. Após muita resistência, houve uma noite que Honório alegou para a esposa a necessidade de um plantão puxado na repartição, e partiu para o encontro do que imaginava ser o seu destino.

Não percebeu nada de muito estranho na encruzilhada, a não ser o medo de um assalto, mas voltou sôfrego para casa, onde foi direto para a sua escrivaninha iniciar, enfim, a sua tão desejada obra. Mas, nem túnica, nem o café, tampouco a friagem que sofreu na encruzilhada surtiram efeito. Seus dedos continuavam resistindo à sua ofensiva literária. Não conseguiu digitar o que tanto desejava. Sua obra seguia virgem. Não aceitava sua investida.

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Desta vez, sentiu remorso de procurar o lado obscuro da fé, quando sempre fora tão devoto. Ajoelhou-se com túnica e tudo e procurou se penitenciar daquela fraqueza. Virgem? Ah, a Virgem. Por que não pensou antes? Talvez a Virgem Maria não pudesse ajudar, afinal nunca ouviu que gostasse de literatura. Mas, talvez houvesse um santo protetor a quem recorrer. Dias de pesquisas revelaram não apenas um, mas dois. São Francisco de Sales era o titular. Mas, havia também São Cirilo de Jerusalém. Não devia fazer mal recorrer a ambos.

E soube também que o Arcanjo Gabriel, se adequadamente acionado, poderia ajudar. Dizia o texto que ele ajudava a estabelecer uma conexão com a palavra divina, e o que era a palavra divina senão a obra literária? Honório conhecia um escultor e cuidou logo de encomendar as três imagens, que consumiram dias de pesquisa sobre o perfil físico, vestuário, modos de estar e coisas assim. E ficou muito satisfeito com o resultado do trabalho. Compreendia que era tudo uma questão de encontrar a fórmula para liberar as palavras de dentro dele. E demandava esforço.

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Diante do novo oratório instalado em seu escritório, Honório fez uma solene promessa de construir uma capela em seu vasto quintal, para sensibilizar as divindades. Ali, elas teriam um lugar especial, certamente ao agrado de suas demandas celestiais. Queria muito pouco, apenas que destravassem suas mãos. Era pedir demais? Até sua esposa, sempre tão cética, mas absolutamente solidária, concordou pela primeira vez que Honório enfim tinha encontrado o modo de realizar seu sonho.

Foi um dia longo aquele. Logo após o frugal jantar com a esposa, eis Honório envergando sua túnica de Balzac, conduzindo o bule de café e preparado para enfim realizar o seu sonho. Esperou pela intervenção das divindades, pôde até sentir no ar os fluídos de sua ação, mas, na hora de escrever... nada. Era realmente desesperador.

Mas então, o que Honório agradecia com tanto fervor naquela hora derradeira da tarde, na penumbra da Igreja? Ele agradecia pelo dia seguinte. Pela manhã, logo cedo, ele foi abordado na repartição por um de seus auxiliares mais aplicados. O rapaz vinha fazer um curioso pedido: queria sua ajuda para publicar um livro que passara anos em laboriosa escritura.
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Honório tinha um coração piedoso. Então, pegou o calhamaço nas mãos, e imaginou sentir a força da divindade em torno, nas primeiras frases. Honório pediu o material para analisar. Daria uma resposta depois.

Honório foi tomado por uma obsessão, algo febril, como há muito não sentia. Esqueceu até de seu ritual noturno à frente do computador. Na verdade, quando começou a ler os originais, não conseguiu mais parar. Lia em casa, na repartição nos intervalos e até mesmo nas tardes dentro da igreja de São Francisco, que passou a frequentar todas as tardes.

E assim, uma semana depois, quando um ansioso funcionário entrou na sala de seu chefe para saber do veredicto, ouviu dele com um olhar de fingido fastio: “Você até escreveu um bom texto, meu bom rapaz. Claro que podemos ajudar financeiramente na publicação...” E antes que o pobre funcionário já saísse em comemorações, Honório se adiantou, simulando certo bocejo: “Mas, tem uma condição... Você tem que me colocar como coautor... E não for pedir demais (com a voz quase embargada) que meu nome seja o primeiro... e em destaque!”

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