Uma coisa é gostar de livros, ao modo de um leitor contumaz comum, outra é transformá-los em paixão, ao ponto de tê-los como referên...

Bruno Gaudêncio: a bibliofilia militante

bruno gaudencio paixao literatura livros biblioteca montaigne
Uma coisa é gostar de livros, ao modo de um leitor contumaz comum, outra é transformá-los em paixão, ao ponto de tê-los como referência central da existência. A estes últimos costuma-se chamar de bibliófilos, ou seja, aqueles que cultivam a arte de colecionar livros. Arte que às vezes se confunde com loucura, bem sabem os que sofrem e gozam com tal hábito (ou será mania?).

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Bruno Gaudêncio
Bruno Gaudêncio, nosso escritor campinense, é um assumido bibliófilo. Vive para os livros. Literalmente. Ele e a esposa, Thuca Kércia, também escritora. E tanto é visceralmente ligado aos livros que dedicou aos mesmos seu mais recente livro, A pele da minha casa, bonita edição da Editora papel da palavra (Campina Grande, 2025), com ilustrações da artista Samara Romão. A obra, de aproximadamente 130 páginas, reúne textos que versam sobre o colecionismo literário, seus prazeres e suas angústias, constituindo, afinal, uma singular e bela declaração de amor aos livros, à literatura e aos autores.

O título da publicação foi retirado de uma frase de Jorge Carrión, escritor e crítico literário espanhol, que diz o seguinte: “A biblioteca é a pele da minha casa, é memória de leituras e de viagens, é um termômetro emocional. Necessito dela para recordar quem sou e quem quero ser.” Bruno incorporou tão intensamente estas palavras que adotou-as como título de seu livro. E ele caiu muito bem, pois, como perceberá o leitor da obra, as estantes do autor paraibano revestem não só as paredes de seu lar, como também as de sua alma.

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Bruno Gaudêncio
A Paraíba tem dado alguns bibliófilos importantes. Hildeberto Barbosa Filho, com seus mais de vinte mil volumes, é um deles. E também escreveu sobre o tema em Os livros (a única viagem). Mas outras bibliotecas podem ser citadas, como a dos professores Humberto Nóbrega, Jackson Carvalho e Mirabeau Dias, por exemplo. Se não chegaram ou chegam a ser a pele da casa de seus donos, nem por isso deixaram e deixam de constituir respeitáveis coleções, cultivadas com zelo e amor. No Brasil, é incontornável o nome do paulista José Mindlin, maior colecionador de livros do país, cuja valiosa biblioteca passou a pertencer à Universidade de São Paulo após a sua morte. De modo que podemos afirmar que o nosso Bruno Gaudêncio está em ótima companhia em sua arte e em sua paixão.

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Alberto Manguel Sesc
Outra referência do bibliófilo paraibano é o argentino Alberto Manguel, famoso por seus livros sobre a leitura e as bibliotecas. É outra vida inteiramente dedicada aos livros e à literatura, alguém cujas estantes também formam a pele da casa. A Manguel, Bruno dedicou um capítulo de seu livro, para destacar a doação da biblioteca de aproximadamente quarenta mil volumes que o argentino fez recentemente à cidade de Lisboa. Sobre esse desprendimento material e subjetivo reflete o nosso autor, talvez já se inspirando quanto ao futuro de sua própria coleção.

O capítulo sobre a biblioteca pessoal de Jorge Luís Borges, a partir de um artigo publicado pelo citado Alberto Manguel na Folha de S. Paulo, traz-nos informações curiosas. Manguel, lembre-se, foi, quando jovem, secretário de Borges, e nessa condição conheceu de perto a coleção de livros do mestre de A biblioteca de Babel, o que, por si só, constitui uma experiência que vale por uma vida inteira. Segundo o ex-secretário, não era vasta a biblioteca borgeana, pois a restrição do espaço no modesto apartamento do escritor em Buenos Aires não permitia grandes expansões. E outro detalhe pitoresco: dela não faziam parte os livros do próprio Borges, para quem suas obras eram “eminentemente esquecíveis”, Vejam só.

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Torre da Biblioteca de Montaigne
bvh.univ-tours.fr
Outra visita que Bruno faz, levando-nos junto, é à biblioteca de Montaigne, tão célebre que, por si mesma, incorporou-se à celebridade do filósofo dos Ensaios. A propósito, escreveu o nosso ensaísta: “Uma biblioteca não é meramente um armazém de livros. Para muitos, como eu (e imagino que para Michel de Montaigne, inclusive), ela representaria o que defendo nestes textos: a biblioteca como uma espécie de pele, sendo, portanto, um verdadeiro marco sensível de memórias e pensamentos que moldam a personalidade de seu proprietário.” Sim , é isso, de fato.

“Você já leu isso tudo?”, é a pergunta que muitos fazem ao dono quando adentram uma biblioteca particular. Só esta indagação já mostra que a pessoa não é do ramo, pois quem é sabe perfeitamente que toda coleção inclui livros ainda não lidos, tão reveladores do proprietário quanto os que já foram percorridos. Esses livros não lidos formam o que alguém chamou de “antibiblioteca”. Também disso trata Bruno Gaudêncio, com sabor.

Saborosos e inspiradores são também os textos que Bruno escreve sobre o seu ambiente doméstico, dominado pelos livros. A amorosa interação de suas duas filhinhas com a espalhada biblioteca dos pais é um exemplo para os leitores, uma salutar sugestão pedagógica neste nosso mundo em que os jovens parecem menos interessados nas leituras que nas imagens. Atrevo-me, portanto, a profetizar um futuro feliz para Clarice e Olívia, tenras herdeiras do nosso bibliófilo.

Para mim, foi um prazer mais que intelectual a leitura de A pele da minha casa. Desde já incorporei-o à minha pequena coleção de livros sobre livros. E por isso recomendo-o com entusiasmo aos leitores em geral.

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  1. Que belo texto Gil. Um amante de livros sempre encontra palavras que nos encantam para falar de bibliotecas. E que belo título "A pele da minha casa" não é? Livros sobre livros são sempre uma paixão. Você faz uma pintura de um bom painel ao contemplar todos os bibliófilos. No momento estou sem Face me pediram uma self, tenho que resolver isso. Que bom que o Germano me enviou seu texto hoje. Grande abraço. Lúcia

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  2. Obrigado, Frutuoso.

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  3. Obrigado, Raniery.

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  4. Obrigado, Lúcia.

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  5. Obrigado, Hildeberto.

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  6. Samuel Amaral17/11/25 16:49

    Tive a honra de ter o prof. Bruno como examinador nas bancas de qualificação de defesa final do meu mestrado em jornalismo. Ele também é prefaciador do livro que escrevi sobre Biu Ramos. Parabéns, Gil Messias, pelo registro sobre a nova obra de Bruno.

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