Há algo de atroz em alinhar corpos no asfalto, em ter que ir buscar os corpos na mata cerrada, ir puxando um por um até que estejam to...

O Rio de Janeiro & Camboinha

destino tragedia rio janeiro
Há algo de atroz em alinhar corpos no asfalto, em ter que ir buscar os corpos na mata cerrada, ir puxando um por um até que estejam todos expostos, à luz clara da manhã. Mas a atrocidade não é das famílias, não é dos cronistas: é das forças oficiais que consumaram essa realidade, é do governador que as comandou... (Julián Fúks)

Duas cenas marcaram profundamente as notícias da semana diante da tragédia do Rio de Janeiro no combate ao Comando Vermelho e da chacina na mata. A cena das dezenas de corpos estirados no chão, no meio da rua. E a mais triste: a cena de uma mãe, despedaçada pela tristeza, por cima do caixão do filho assassinado. O luto singular. Um rito de reconhecimento da dor do outro. Mais de 100 mortos e dezenas de feridos. E, no
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Lilia Schwarcz
meio de assassinos, gente da favela e policiais. Rio — uma cidade conflagrada, como li nos comentários de tantos. Uma pena de morte imposta pelo Estado. Como disse a historiadora Lilia Schwarcz: “A necropolítica da fabricação do anonimato e da ausência de informações. Mortes usadas como palanques.” E o governador do Rio, Cláudio Castro, chamando a operação de sucesso. Mas o que se viu, como disse Lilia, “foi barbárie com uniforme, terno e gravata. Uma tragédia com data, rosto e endereço, mas que, para o país, tornou-se apenas mais uma linha nas estatísticas da indiferença.” Um massacre!

E toda vez que me encontro diante das dores das mães, me pego com fotos dos meus filhos pequenos. Sincronicamente, o Facebook me trouxe uma foto com meu filho caçula, Daniel, ainda bebê, sentadinho à beira-mar da praia de Camboinha. Era cedinho de um domingo qualquer, há mais de trinta anos atrás, me peguei a pensar. Que privilégio foi o meu! O amor e a singeleza dessa foto para me abstrair da dor das mães da Favela do Alemão e da Penha.

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João e Elizabeth Jardelino
Meus sogros, Seu Jardelino e D. Tezinha, construíram sua casa à beira-mar, onde tinham terreno e a primeira casa desde os anos 60/70. Naquela época, essas praias tinham espaço para pessoas de classe média, hoje habitadas por ricos. Dessa nova casa, eu já tinha Juca como companheiro e Lucas, meu filho mais velho, com 4 anos. Mas foi depois de algum tempo que surgiu uma casa bonita de primeiro andar, com aquela vista de um mar manso e azul. Todos os carnavais, natais, ano-novo, Semana Santa, feriados e férias, eu podia ocupar uma suíte no primeiro andar, e lá eu era amiga do rei. Digo da rainha, pois, depois da partida de J.J., como meu sogro era chamado na intimidade, D. Tezinha morou longos anos sozinha naquela imensa e acolhedora casa. Era perigoso? Sim. Não como hoje. Mas ela se recusou a sair de lá, pois tinha seu jardim todo seu. Assim como em “Nos jardins de nossas mães”, de Alice Walker.

A casa era enorme, mas decorada simplesmente. Tinha um mesão na sala de jantar para todos da família. Uma mesa farta com feijão verde e galinha de cabidela e, no café da manhã, mamão cortadinho e tapioca. Sim! E cuscuz no molho de coco, que amo. Um biquíni, uma canga na cintura e um par de Havaianas (mas não era Fernanda Torres na publi!).
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Ana Adelaide e Daniel
Assim, eu passava os dias. Tomando banho de mar e, depois, uma ducha no chuveirão do quintal, com o leve perfume das pitangas plantadas rente ao muro. Lá na frente, uma churrasqueira em que Juca se arvorava de gaúcho, e um pé de oliveira que eu vi crescer; daí passarmos os dias de lábios roxos. Eu, que vinha da fúcsia dos jambeiros da Av. Almirante Barroso, só mudava de tom. Lilases! Na beira-mar, nos encontrávamos para chupar caju e fazer castelos de areia com as crianças. Hoje, meus sogros e Juca já voaram mais alto e habitam as estrelas.

Quando tinha feijoada, a família toda vinha sentar-se à mesa gigante da sala. Antes, porém, tinha uma cervejinha. E, após essa iguaria, todos se recolhiam às redes para o cochilo costumeiro. E eu, dormindo só por um olho, ficava brincando com Daniel no mormaço enfadonho dos domingos à tarde. Não sem antes ver o sol e a lua, com um caranguejo em cada mão, uma cerveja na outra, mangabas e manga-espada das pintinhas pretas. Noites silenciosas. Crianças que dormiam o sono dos justos. A Rua Max Zagel era calma, crianças nas ruas e vizinhos sentados nas calçadas proseando.

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Júlio Jardelino e o filho Daniel (Praia de Camponha-PB) Acervo da autora
Nas férias de janeiro, meus cunhados que moram fora chegavam de Brasília, Recife e Salvador, e a festa crescia. J.J., com sua bermuda, seu ar bonachão, sempre embevecido com a casa cheia. D. Tezinha, atrás de mimos para todos. Sempre que chega o verão, lembro-me dos tantos amanheceres e anoiteceres da minha vida. Marcantes. Mas esses de Camboinha me levam para um lugar para além de Areia Vermelha e dos navios passantes. Me levam ao infinito. Saudades daquela casa. E de tantas outras casas da minha vida que permearam meus jardins e quintais.

E, quando penso nessas memórias tranquilas e serenas do meu bebê conhecendo o mar, reverencio aquela mãe debruçada no caixão do filho morto, em nome de todas as outras.

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