A relação do médico neurologista e psicanalista austríaco Sigmund Freud (1856-1939) com a arte fundamenta as bases para a crítica de ar...

Sigmund Freud e a Arte

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A relação do médico neurologista e psicanalista austríaco Sigmund Freud (1856-1939) com a arte fundamenta as bases para a crítica de arte e a estética psicanalítica. O seu trabalho oferece a compreensão da criação e da experiência artística, vendo a arte não apenas como um fenômeno cultural, mas como uma manifestação da vida psíquica inconsciente. Para Freud, em seu livro A Interpretação dos Sonhos, publicado em 1900, “A arte é como os sonhos e os sintomas neuróticos: ela permite o acesso aos conteúdos reprimidos e aos desejos não realizados do ser humano”.

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Egon Schiele (1917)
A expressão do inconsciente constitui uma convergência entre a psicanálise e o expressionismo. Os artistas deste movimento — como os pintores, o norueguês Edvard Munch (1863-1944), o austríaco Egon Schiele (1890-1918) e o alemão Ernst Ludwig Kirchner (1880-1938) — procuravam exteriorizar sentimentos de angústia e desespero de modo direto, rompendo com o racionalismo e a harmonia da arte clássica. Freud, em A Interpretação dos Sonhos, descreve o inconsciente como um “reservatório de desejos reprimidos, pulsões e representações recalcadas” (1900, p. 123), que emergem por meio de formas simbólicas e deformadas. Assim, as figuras distorcidas e os traços convulsos do expressionismo podem ser lidos como materializações visuais desses conteúdos recalcados, em um processo análogo ao dos sonhos e dos sintomas neuróticos.

Além disso, a ênfase expressionista na subjetividade e no mundo interno reforça essa correspondência. Para Freud, a fantasia e a vida imaginária constituem dimensões vitais da existência psíquica, pois nelas o sujeito realiza, de forma simbólica, seus desejos e conflitos. Em O Escritor e o Fantasiar, ele afirma que “O artista se aproxima do sonhador diurno, que cria mundos imaginários para satisfazer desejos reprimidos” (1908, p. 135). Nessa obra, há um paralelo entre o brincar da criança, o devaneio do adulto e a criação literária. O pai da psicanálise argumenta que “O brincar é uma atividade de criatividade, na qual a criança cria um mundo próprio e o organiza de maneira que lhe agrada.

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GD'Art
O adulto, por sua vez, substitui o brincar pelo fantasiar, que é uma espécie de jogo íntimo, no qual realiza os seus desejos não satisfeitos – ambições de poder, riqueza, glória e, sobretudo, amor”. Ele também defende que “O artista, ou ‘escritor criativo’, é aquele que possui a capacidade singular de transformar o seu devaneio pessoal e egoísta em uma obra de arte capaz de proporcionar prazer a outros. O artista, como o neurótico, é alguém que se afasta da realidade devido a uma insatisfação com as renúncias que ela impõe. No entanto, ao contrário do neurótico, o artista encontra um caminho de retorno à realidade através da sua obra. Assim, é possível sentir o prazer estético da forma, da técnica e da beleza – disfarçar a natureza íntima e, por vezes, embaraçosa, do seu material de fantasia”.

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Ernst Ludwig Kirchner (1913)
O expressionismo, ao recusar a objetividade e ao afirmar a primazia do olhar interior, faz da tela um espaço de projeção do inconsciente, no qual o real se dissolve em favor da subjetividade. Outro aspecto é o modo como a arte expressionista pode ser compreendida pelos mecanismos psíquicos descritos por Freud — sobretudo o deslocamento e a condensação, processos primários da formação dos sonhos. Segundo o autor, “O sonho é uma realização disfarçada de um desejo reprimido” (FREUD, 1900, p. 171).

De modo análogo, a deformação das formas, a fragmentação das figuras e a intensidade cromática do expressionismo atuam como estratégias visuais de condensar e deslocar afetos, ocultando e revelando simultaneamente o conteúdo latente. Ernst Kris (1900-1957), psicanalista austríaco, ao analisar a criação artística, destacou que esses mecanismos estão presentes na obra de arte, funcionando como mediações entre o inconsciente e a consciência estética.

A sublimação ocupa uma função determinante na articulação entre arte e psicanálise. Freud define a sublimação como o processo pelo qual a energia pulsional — em especial de natureza sexual ou agressiva — é desviada para fins socialmente valorizados. Em Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, ele observa que “As forças pulsionais podem encontrar substitutos culturais, como a arte, a ciência e a religião” (1911, p. 97). Nesse sentido, a arte expressionista, ao transformar emoções intensas e perturbadoras em linguagem estética,
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Egon Schiele (1911)
realiza um processo de sublimação, convertendo o sofrimento em criação simbólica e, portanto, em forma de elaboração psíquica.

Em seu livro O Mal-Estar na Civilização, publicado em 1930, Freud defende que a arte permite ao artista canalizar energias libidinais e destrutivas para a criação de algo belo e culturalmente significativo. A obra de arte, portanto, opera em dois níveis de prazer. O primeiro é o prazer formal, que desarma a resistência do público. O segundo é o prazer libidinal, que advém do conteúdo da obra, permitindo ao espectador identificar-se com os desejos realizados na fantasia do artista. Ao desfrutar da obra, o público partilha, de forma socialmente aceitável, a satisfação dos seus próprios desejos reprimidos. A arte é, assim, um mecanismo de compensação coletiva, um narcótico que alivia a tensão da renúncia instintiva exigida pela cultura.

Sigmund Freud também se dedicou à análise de obras de arte específicas e de artistas, como em Uma Lembrança de Infância de Leonardo da Vinci (1910) e Moisés de Michelangelo (1914). Nesses estudos, seu propósito não foi o de formular uma crítica estética, e sim o de utilizar o método psicanalítico para compreender as motivações inconscientes da criação. Em Leonardo, por exemplo, ele procurou traços da curiosidade investigativa do artista, ligando-os a uma lembrança de infância (Freud, 1910).

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Moisés (detalhe) Michelangelo Buonarroti (1515)
Em Moisés, ele reconstruiu o estado emocional do escultor no momento da criação, interpretando a postura da estátua como um ato de contenção de um impulso. Observa-se que Freud não via a arte como uma cura para a neurose. Ela é uma forma de satisfação substituta que, embora socialmente produtiva, não resolve o conflito psíquico oculto. O artista, apesar do seu talento, permanece um indivíduo impulsionado por forças inconscientes. A sua genialidade reside na capacidade de dar forma universal a conteúdos que são, na sua origem, estritamente pessoais.

A estética freudiana da arte é psicológica e cultural. A arte é o espaço onde o desejo reprimido encontra a sua expressão simbólica, na qual a fantasia individual se transforma em prazer coletivo através do mecanismo da sublimação. A psicanálise, ao desvendar esse processo, enriquece a compreensão humana da arte, transformando-a de um objeto de contemplação estética em uma pulsão do inconsciente humano.

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  1. Texto de mestre, Klebber. Uma pequena e valiosa aula sobre psicanálise e arte, que tanto enriquece o leitor. Parabéns. Francisco Gil Messias.

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