Nesta tentativa, certamente maçante para vocês, de refazer o itinerário lírico de minha turma na Campina Grande mítica dos anos 60, pe...

Itinerário Lírico de Campina Grande (II)

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Nesta tentativa, certamente maçante para vocês, de refazer o itinerário lírico de minha turma na Campina Grande mítica dos anos 60, pelas ruas poéticas de tantas cidades que povoam o mundo, eu, de uma certa forma, submeto-me, diante de todos vocês, que me honram com sua presença e com sua paciência, a uma verdadeira sessão psicanalítica. Como Octávio Paz no seu poema, falo de gente que existe, mas também de fantasmas, os fantasmas guardados no armário ancho de minha geração. O fantasma de John Lennon assassinado em frente ao edifício Dakota, em Nova Iorque. Mas também de uma energia, cuja pilha está aqui, escondida entre a pedra do reino da serra de Teixeira e a Itacoatiara do Ingá do Bacamarte. Esta usina, com água do açude velho, produz a luminosidade própria de uma estrela espantosa como Elba, como eu um sobrevivente desta cidade mítica dos anos 60, aqueles nos quais descobrimos o amor e o espanto.

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Açude Velho (Campina Grande, anos 60 FGV
Vocês poderão fazer perguntas incômodas, como Fernando Pessoa o faz em Lisbon Revisited, ao se considerar um transeunte inútil de Lisboa e dele mesmo, um “estrangeiro aqui como em toda parte, casual na vida como na alma, fantasma a errar em salas de recordações, ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem ao castelo maldito de ter que viver”. Como Pessoa, vocês podem até atirar-me na cara a pergunta: “Eu? Mas sou o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei, e aqui tornei a voltar, e a voltar. E aqui de novo tornei a voltar? Ou somos, todos os Eu que estive aqui ou estiveram, uma série de contas-entes ligados por um fio-memória, uma série de sonhos de mim de alguém fora de mim?”

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Mario Vargas Llosa (antigo bar La Catedral, Lima, Peru) Félix Nakamura
E eu nem saberia responder. Pois quando estive em Lima, e Mário Vargas Llosa também estava lá, dentro de sua casa branca, cercada de flor e do Pacífico, saí correndo do salão sevilhano, com seus azulejos coloniais de anjos assexuados, para sentir o cheiro sórdido de frituras, misturado com o bodum de farinha de peixe e urina, de um boteco imundo. E, no entanto, senti-me em paz, com aquela sensação alegre de sintonia com o mundo, que a gente só tem justamente quando convive com fantasmas feitos de letras. Naquele boteco sujo, A Catedral, convivi com os desconhecidos fantasmas literários da história do Peru, velhos companheiros reconhecidos na mesma trajetória lírica em que eu mesmo fui construído, matéria de sonho e de ilusão. Então como eu poderia responder a vocês que não, que esta não é uma sessão espírita em que lhe trago, como atrações, fantasmas que muitas vezes foram apenas nomes ou uma linha de tipos pretos sobre papel branco?

Posso apenas lhes dizer que na tarde fria de primavera em que caminhei pelo Boulevard Saint Germain, empunhando uma garrafa de vinho tinto, eu me senti a própria reencarnação paraibana de Jean Valjean, transportando seu nobre futuro genro, ferido das
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Boulevard Saint-Germain (Paris) Colin Baird
barricadas, para a casa do avô ranzinza. E me senti em Paris como se estivesse na casa de meu avô, pois foi na casa de meu avô que eu adquiri esta miopia, lendo, à luz firme do sol e à luz tímida da lamparina de querosene, a saga magnífica de uma cidade do sertão criada por seu poeta, a Paris de Victor Hugo. Imito Pessoa, vindo aqui e, como ele só revia um bocado de Lisboa e um bocado dele mesmo, só revejo um bocado de Campina Grande e um bocado de mim. Pois já se partiu “o espelho mágico em que me revia idêntico e em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim – um bocado de ti e de mim”, como Fernando Pessoa escreveu, para Lisboa.

Este mistério, que nós todos estamos tentando aqui delatar, tem antecedentes mais ilustres. Nem podemos ficar mais perplexos em saber que os fantasmas literários ganham vida, que Zé do Beco, o sanfoneiro, tocou no forró do Spazzio, guardado pelo Cabo Mole, se nós mesmos somos aqui passageiros desta mesma viagem. No meio desta selva de citações literárias, em que eu meti vocês, eu gostaria de fazer uma que não está escrita, para tornar o assunto talvez mais claro, ou talvez, quem sabe, mais misterioso.
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Antigo Hotel Bragança (Lisboa) CC0
A meu ver, não há hoje no universo lusófono, ninguém que esteja escrevendo no nível do português José Saramago. Conheci-o pessoalmente num hotel, em São Paulo, um desses hotéis modernosos, que nada têm a ver com o velho hotel, com cara de pensão inglesa, em que Ricardo Reis se hospedou em Lisboa, conforme ele nos conta na obra-prima, O ano da morte de Ricardo Reis. Pois no hotel modernoso, no centro de Chicago latino-americana, Saramago me contou, entre irônico e comovido, que o Hotel Bragança virou atração turística, porque as pessoas querem conhecer a cama onde não dormiu Ricardo Reis. E faço questão de usar a expressão que ele usou, não dormiu, para transmitir a consciência jornalística de meu amigo, que foi editorialista de um jornal comunista em Lisboa, de que Ricardo Reis, se não existiu, pela lógica cartesiana, não dormiu no quarto duzentos e um do Hotel Bragança, que existe e está lá sendo visitado.

De uma certa forma, os viventes apenas reescreveram o grande romance de Saramago, no qual um ser não existente, um não ser – o heterônimo Ricardo Reis – tem longas conversas com o fantasma de um ser que existiu, mas não existia mais no ano de sua própria morte, a
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'Ricardo Reis' (Fernando Pessoa) CC0
morte do poeta Fernando Pessoa, que inventou Ricardo Reis e sua musa Lídia, que, canalhamente, José Saramago fez conduzir até o leito concupiscente do não existente Ricardo Reis, personagem principal de seu fabuloso texto. E, sendo assim, sinto-me autorizado a confundir um pouco mais vocês, garantindo que, quando viveu no Brasil, o lírico Ricardo Reis também fez seu itinerário pela Campina Grande mítica que me arrisco a fundar aqui. Ele dormiu num quarto do Hotel Majestic e foi visto na Unidade Moreninha, às altas horas da madrugada, saindo embuçado com uma prostituta que se dizia holandesa, mas na verdade tinha vindo de Currais Novos.

Quando o não existente Ricardo Reis reviu Lisboa, Saramago descreveu assim a chegada do navio Highland Brigade ao porto:

“Por trás dos vidros embaciados de sal, os meninos espreitam a cidade cinzenta, urbe rasa sobre solinas, como se só de casas térreas construída, por acaso além um zimbório alto, uma empena mais esforçada, um vulto que parece ruína de castelo, salvo se tudo isto é ilusão, quimera, miragem criada pela movediça cortina das águas que descem do céu fechado”.

Assim foi também que Ricardo Reis deve ter sentido o sol do Caribe, quando aportou em Macondo de braços dados com Gabriel Garcia Márquez ou quando parou para tomar uma lapada no Bar do Nacib, em companhia de Jorge Amado, em São Jorge de Ilhéus. Como o filósofo e poeta basco dom Miguel de Unamuno descobriu a metafísica na Plaza Nueva, “fria e uniforme, puritana e fosca”, em Bilbao, na Espanha, ali onde lhe caiu na alma a parda Lógica e “floresceram magnólias que sonharam a pátria mística”, Ricardo Reis,
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Plaza Nueva (Bilbao, Espanha) CC0
o não existente, pode ter conhecido sua Lídia, musa distante tornada carne no Hotel Bragança, tomando sorvete rainha na Sorveteria Pinguim, na rua Maciel Pinheiro. E quem há de negar que ele possa ter enfrentado uns caras do Ligeiro, tudo armado de punhal? E, se o não existente Ricardo Reis não tomou cachaça Rainha num reservado em que Mariquinha dá de graça tira gosto especiá, eu, o eu real de carne e osso que aqui os cansa, ou Eu do sonho mítico de alguém de fora de mim, e um que pensou Pessoa, estive lá. Meu roteiro passa pelos sons, porque foi na casa de Iremar, na rua da Pororoca, que eu ouvi, pela primeira vez You’ve got to hide your love away , com John Lennon na senda de Bob Dylan. E foi na casa de Mane Barros, perto do Colégio Estadual da Prata, que Joan Baez me encantou , cantando It’ all over now, baby blue , apresentando-me Bob Dylan, o poeta de nossa geração. Aqui, como Sophia de Mello Brayner Andresen descreveu também pátria, “me dói a lua, me soluça o mar e o exílio se inscreve em pleno tempo”.

Manuel Bandeira, que, na minha opinião, é o maior poeta americano deste século, ao lado do peruano César Vallejo, escreveu da Campina Grande dele, sua Recife natal, que ela não é a Veneza américa:

“Não a Mauritssad dos amadores das Índias Ocidentais, não o Recife dos Mascates nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois – Recife das revoluções libertárias, mas o Recife sem história nem literatura, Recife sem mais nada, Recife de minha infância”.
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Manuel Bandeira
Se não fosse muita pretensão construir uma frase em que Bandeira e eu fôssemos sujeito de um mesmo verbo, eu também diria que não me interessa muito Campina Grande do Quebra-Quilos, da história que Dr.Elpídio de Almeida escreveu, de Cristiano Lauritzen e do bravo combate republicano do colega Irinêo Joffily. Minha Campina mítica é aquela do verso de Bandeira: “Eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão nos meus cabelos”. De tomar mate gelado de Souza da Pipoca, no Abrigo Maringá, olhando Kalina Lígia, a bela, na fila do Cine Capitólio e ouvindo Silvinha Alencar, a estrela do meio dia, ou Gilvan Feitosa, o namorado das lourinhas. Como registrou Bandeira, “a vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem”. Cláudia Cardinale dançando a Valsa do Imperador no Leopardo, de Luchino Visconti. Artigo no Diário da Borborema atacando o sotaque lusitano das meninas dos corais de Elizabeth Marinheiro. Textos capengas, quase dementes, no jornal Formação, do Centro Estudantil Campinense. E eu, na rua Rui Barbosa, no meu laboratório, lendo os versos de Bandeira sobre Recife. Como este: “Nunca pensei que ela acabasse!

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Rua 13 de Maio / Rua Rui Barbosa (Campina Grande) IBGE
Tudo lá parecia impregnado de eternidade”. Como Bandeira, não houve dia em que não sentisse esta cidade mítica dos anos 60 dentro de mim. Quando tomei pinga com cambuci na casa de Lula em São Bernardo do Campo, sentindo a máquina da história avançar nas linhas de montagem das fábricas de automóvel. Quando ouvi Borges me descrever seu encontro com Tancredo Neves e depois me contar de mais um espanto seu, o encontro com a notícia da morte do presidente. Na madrugada em que meu filho nasceu e eu tive a pretensão de, ali, conhecer melhor o mundo. No dia em que, em silêncio, fiz parte de uma multidão que captou a tragédia de Guernica, no Museu do Prado, em Madrid, e, depois, às cinco em ponto da tarde, calou ante o sacrifício, pelo furioso bragado, do jovem toureiro Macareno, na praça de Touros de Ventas.

“Todos compreendem a dor que se relaciona com a morte, mas a verdadeira dor não está presente no espírito. Não está no ar nem em nossa vida, nem nestes terraços cheios de fumaça. A verdadeira dor que mantêm despertas as coisas é uma pequena queimadura infinita nos olhos inocentes dos outros sistemas””
Acabo de ler para vocês um belo fragmento de um dos mais belos momentos da poesia do andaluz Federico Garcia Lorca. E esta poesia fala de seu espanto diante de Nova Iorque. Poeta em Nueva York, um dos pontos altos da alta carreira do poeta espanhol não poderia estar fora desta vã tentativa de juntar lembranças literárias para traçar um possível roteiro lírico de Campina Grande. Como Stingo, o escritor jovem que William Styron criou em A Escolha de Sofia, Lorca tropeçou em Nova Iorque com os olhos arregalados e o coração aberto. E o resultado é que, apesar de a maior poesia do mundo ser escrita em inglês, os mais completos e profundos versos sobre a cidade mais cosmopolita do mundo foram escritos na língua de Cervantes. Esta queimadura dos olhos inocentes, guardadas as devidas proporções, eu as sofri vendo o concerto de flauta e fagote, executado por Tonho Zeca e Araponga no meio campo do Campinense, em 1966, ou escutando a ária
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Teatro Severino CabralIBGE
Sempre Libera da Traviata de Giuseppe Verdi, no Teatro Municipal Severino Cabral. Liberdade, Liberdade aqui nos trouxe a voz inesquecível de Tereza Rachel, transportada com cuidado para os copos gelados e a linguiça saborosa do Chopp do Alemão. E do Rio do bom gosto de Tom Jobim e Vinicius, veio a Zona Sul musical de Insensatez , na voz de João Gilberto, revelada na rua Irineu Joffily, onde passava minhas férias, metade na casa de Jaceme e Manuel Israel, metade na casa de Expedito e Socorro. Meu amigo Stênio não me deixará mentir.

“Pois é do sonho dos homens que uma cidade se inventa”, escreveu Carlos Pena Filho, em seu Guia Prático da Cidade do Recife. James Joyce inventou sua Dublin no sonho de Joe Dillon, que queria conhecer o Oeste selvagem e terminou virando padre, e a recriou no magnífico labirinto intertextual de Ulysses. Lawrence Ferlinghetti sonhou que o Golden Gate Park, em San Francisco, na Califórnia, teve certo dia, um gramado que era o gramado do mundo, só porque viu um casal entediado nele deitar-se lentamente para dormitar. Em Detroit, Allen Ginsberg chorou o pesadelo dos “Senhores, pais, prefeitos, senadores, presidentes, banqueiros & operários suando & chorando ignorantes em seu planeta de Ilusão dor plástica”. Na noite em que Mário de Andrade foi espectador e o rio Tietê cenário, o poeta sonhou em seguir a alga escura nas águas do rio dele. E bastou isso para ele concluir que nada escapava ao caráter noturno e oleoso daquela noite em que tudo era noite. “E a cidade me chama e pulveriza. E me disfarça numa queixa flébil e comedida”, ele gritou. De João Pessoa, Jomar Morais Souto, autor de seu marcante itinerário lírico, dizia “uma cidade é a impressão de que estivesse perdida e se tornasse a encontrar”.

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Lawrence Ferlinghetti / Mário de Andrade / Jomar Morais Souto
Carlos Avila / USP / PMSL
Como Machado de Assis subiu o morro e Lima Barreto extraiu o tédio da féerie para reencontrarem o Rio de Janeiro. Como Nero incendiou Roma para reconstruí-la a partir de suas fantasias. Reencontrar uma cidade, a sua cidade, é enxergar o mundo “dentro e fundo”, como Drummond, o poeta Carlos Drummond de Andrade, fez com Minas. Alguém me dirá que Campina Grande não tem o charme de Barcelona. Pois eu direi: Francesc Petit, o publicitário catalão, ao escrever o Guia da cidade onde nasceu, falou de Las Ramblas, sua rua mais famosa, como de um “estado de espírito”. Ele escreveu o seguinte: “Lá tem tudo, o “mundo”, você se senta numa cadeira, sem pagar nada, e fica olhando a vida passar”. Só por ter conseguido reproduzir esta incrível sensação, Michelangelo Antonioni dirigiu, na mesma Barcelona de Petit, uma das obras primas do cinema, Passageiro: profissão repórter.

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Av. Floriano Peixoto (C. Grande) IBGE
Campina Grande foi para mim, na adolescência, minha janela para o mundo, Las Ramblas, um rio que passou na minha vida. Pedro o Grande matou milhões de súditos para construir uma cidade sobre um pântano. São Petersburgo ceifou tantas vidas, só para abrir as portas da Europa civilizada à Rússia primitiva. Alexander Pushkin, em O Cavaleiro de Bronze, de 1833, Nikolai Gogol, em Perspectiva Nevski, de 1835, Fiódor Dostoievski, em Notas do Subterrâneo, de 1964, Andrei Bieli, em Petersburgo, entre 1913 e 1916, e Ossip Mandelstam, em O Selo Egípcio, de 1928, se encarregaram de dar moldura a essa janela. A mesma moldura que Charles Dickens havia dado a Londres e que Charles Baudelaire dera a Paris. A revolução soviética, com seu projeto de internação, que Stalin chamava de socialismo num só país, fechou tal janela para o Ocidente. Victor Serge, o jovem bolchevique converso, que chegava da revolução de 1917 em Barcelona, uma revolução fracassada, nos deixou um retrato pungente da vida na cidade, nos anos do comunismo de guerra, que ele descreveu no romance Ville Conquise. Em Mémoires d’un révolutionnaire, ele narra a cena pungente de um hotel, símbolo do cosmopolitismo, invadido de fezes fossilizadas pela neve, num inverno rigoroso, com fome e sem calefação.

Mas Campina Grande, minha Las Ramblas, minha Petersburgo eterna, é uma janela que não se fecha. Ao contrário. Quando estive aqui no último São João, senti indícios, vagidos, de um renascimento. Num artigo profético, um campinense que João Pessoa roubou, o dramaturgo Paulinho Pontes, dizia que, para o atraso feudal do Nordeste, a melhor solução era o capitalismo campinense. Paulinho morreu, mas o espírito capitalista de Campina Grande sobreviveu nas cinzas, debaixo do fogo com que o combateu o regime militar que em 20 anos tentou planejar
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São João de Campina Grande PMCG
a decadência da cidade, implantando indústrias com incentivos fiscais nas proximidades dos ventos alísios de Tambaú. Mas no meio daquela ebulição, que foi o São João no Spazzio, eu senti que a energia continua a brotar da cabeça prodigiosamente criativa desta gente, que parou à beira do açude velho para dar água a suas tropas de burro vindas do sertão, trazendo seus fardos de pele e algodão. Ali, naquela movimentação aparentemente sem sentido, parecia estar contida a chave do mistério desta energia que brota da luz rubra dos crepúsculos da Borborema. Como Drummond, o poeta Carlos Drummond de Andrade, escreveu dos mineiros, os campinenses sabem o segredo desta palavra abissal, apesar de significar planície, que é campina. Só os campinenses, mesmo os vindos de fora, como Rosil, Jackson, Elba e eu, sabem. “E não dizem nem a si mesmos o irrevelável segredo chamado Campina”.

Quando apertava os olhos de míope, para exibir sapiência a meu pai lendo os letreiros das lojas da rua João Pessoa ou quando ouvia as conversas dos caixeiros viajantes estirados nas redes do hotel de Maria Travassos, na rua Índios Cariris, numa infância distante, até meio perdida na desmemória, eu já era cúmplice deste segredo irrevelável, do mapa deste tesouro inconquistável. Quando espiava sofrendo, Sofia, a bela grega na farda do Alfredo Dantas, passar através do meu copo com um pingado precoce, eu já
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Camoina Grande (PB) IBGE
estava escrevendo este pobre itinerário lírico de uma cidade tão rica, como foi Petersburgo que o czar visionário tirou do pântano ou Londres, em cuja lama brilhou o talento de Charles Dickens. As rondas noturnas na volta de Zé Leal, com Zé Souto: as tentativas de transformar o espanto em lógica, com Zé Romão, na praça em frente ao Capitólio; os passeios de mãos dadas com Regina, em torno do Açude Velho; a comemoração do hexacampeonato de Ruiter, Cocó e Coca Cola são estações desta viagem, que nunca começou e não vai terminar nunca. Na feira livre, que Machado Bittencourt filmou, na varanda da casa de Totoca, na rua Sólon de Lucena, na carne de sol de Manuel, escuto agora de novo os mesmos sons com que Nicolas Guillén reconstruiu sua velha Havana familiar. Esta cidade de meus porres e de minhas encrencas, do cheiro de éter no Pronto Socorro Municipal, em que, sob a tutela de Luís Aguiar, eu pretendia aprender a ser repórter, são lentes, não são paisagens, como a Olinda de Carlos Pena Filho.

É por isso que tenho a cara de pau de mantê-los aqui me ouvindo, porque tenho a mesma pretensão, com que esta cidade me armou, para enfrentar a vida em ambientes hostis. O mapa da mina é tão simples. Posso lhes dar uns roteiros: meu primeiro livro foi comprado na esquina da Maciel Pinheiro e do beco 31, na livraria Pedrosa. Nas tardes de calor, Joabe e eu íamos estudar com Raquel, na rua Desembargador Trindade, e comíamos bolo com deliciosos refrescos, servidos por dona Lourdes Pinto. Ganhei uma chupeta de presente num assustado na casa de Ângela Fechine, no dia em que completei 15 anos, em 1966. Ivo Aragão dançava rumba
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Colédio Esdadual da Prata Leonardo Silva
antes das aulas no segundo colegial no Estadual da Prata, em 1967. Não fosse por Maria Argentina Brasileiro e Francisca Neuma Borges, eu jamais teria juntado duas palavras em português. Com Duy Tavares e Ariberto sonhei fazer a revolução. Líamos Lênin, para não perder o debate político com Paulo Pirrita. Fizemos uma exposição de poemas processo no hall do Teatro Municipal e o major Raizer mandou apreender. Casei-me na Conceição, pertinho da casa de Márcio Vilar, onde conspirávamos contra Vandilson, Walfredo e Marcone. Manuel Alexandrino Leite foi o primeiro repórter que conheci e é até hoje o que mais me impressionou na vida. Em suas veias corria tinta de impressão. Lembrei-me disso no dia em que tomei um café expresso com Jorge Semprun, no Hotel Maksoud, em São Paulo. Diz Assunção que eu acabei com a revista Garatuja.

Não me lembro disso, mas me lembro bem que, em ocasiões diferentes, briguei com Antonio Morais, com Elba Ramalho e com Severina, que foi minha companheira de diretoria no cineclube Glauber Rocha. Dizem que sou um jornalista combativo. Talvez ainda seja o mesmo menino pirracento, que começou a entrar em polêmicas antes mesmo de aprender a juntar verbos e pronomes numa frase. No comecinho dos anos 60, eu via, de televizinho, a televisão brasileira nascer, na casa de Evandro Sabino, na rua 11 de Junho, ali de pertinho da casa de Dr. Oswaldo Cascudo, que me tirou do ventre da minha mãe. Na casa de Evandro Sabino, começava a nascer outro de meus eus, o Paulo Maia, crítico de televisão no Estadão e no Jornal do Brasil. Como vêem, foi assim, sorrateira, que Campina Grande se plantou dentro de mim. Salvatore Quasímodo, o poeta italiano, resumiu bem este sentimento que agora se apossa de mim em três versos do poema “Agora que se faz dia”: “Deixei os companheiros, entre velhos muros escondi o coração para ficar só e te recordar”. E Goethe, o maior poeta alemão, se compara a um jardineiro no epigrama famoso:

“O mundo é vasto e bonito, mas eu agradeço ao céu por possuir um jardim pequeno, belo e de minha propriedade! Me leva pra casa de novo! Pra que vai viajar o jardineiro? Bastam-lhe a honra e a felicidade de cuidar de seu jardim”.
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Johann Wolfgang von Goethe Johann Heinrich Wilhelm Tischbein, 1787
E é assim que me sinto agora, retomando este roteiro lírico pelo interior de mim mesmo, pois é minha alma, meu jardim passado, que vocês estão visitando agora, como se visita a alma de Molly Bloom ao se ler Ulisses. Minha Campina Grande mítica está povoada de fantasmas, de fantasmas de carne e osso e de fantasmas etéreos, como os que habitavam Comala, a cidade assombrada, onde o personagem de Juan Rulfo foi em busca de seu pai, “um tal de Pedro Páramo”. Vocês devem ter em conta que o
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Juan Rulfo CC0
mexicano Rulfo escreveu um romance e não mais, para se tornar um dos mais celebrados escritores do mundo contemporâneo. Sua Comala está agora reproduzida em inglês na Albany real de William Kennedy, amigo de meu amigo Norman Gall, num livro que fala do fracasso e da perdição, um dos mais tocantes textos que jamais li na minha vida, Ironweed, Vernônia, cuja história está sendo filmada por Hector Babenco com Jack Nicholson e Meryl Streep nos papéis principais. Minha Campina Grande mítica é um pouco da Comala perdida no fantasmagórico deserto mexicano, um pouco da Albany, onde viveu o jornalista William Kennedy, no meio do grande sonho americano.

Falei tanto, falei demais e, na verdade, tudo o que eu gostaria de dizer a vocês está contido em dois poemas. Naquele de Konstantinos Kaváfis, que li no começo, e na magnífica revisita literária que o poeta russo Ossip Mandelstam faz a sua São Petersburgo, que tinha sido Petrogrado, por causa do nacionalismo do czar Nicolau II, e já era então Leningrado, aliás o título do poema. Eu não precisava ter dito a vocês mais do que este poema que vou ler agora:

“Eis-me de volta à minha cidade. São estas as minhas velhas lágrimas, minhas pequenas veias, as glândulas inchadas da infância. Então estás de volta. Clara amplidão. Aspira o óleo de peixe das lâmpadas ribeirinhas de Leningrado. Abre os olhos. Conheces esse dia de dezembro, gema de ovo com o breu terrível batido em si? Petersburgo! Não quero morrer ainda! Tens o número de meu telefone. Petersburgo! Guardo ainda os endereços; posso consultar as vozes desaparecidas. Vivo clandestinamente e o sino, que arranca os nervos e todo o resto, reboa em minhas têmporas. Espero até amanhã por convidados que amo, e faço retinir as correntes da porta”.


* Segunda parte do texto apresentado por José Nêumanne Pinto, em setembro de 1987, em um Seminário Literário realizado em Campina Grande. A colaboração foi gentilmente cedida pelo escritor e historiador Flávio Ramalho de Brito.



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