Mostrando postagens com marcador Adriano de León. Mostrar todas as postagens

Ela estava lá, quase intacta, repousando por entre papéis também esquecidos pelo tempo das gavetas trancadas. A gaveta se fez invisível. ...


Ela estava lá, quase intacta, repousando por entre papéis também esquecidos pelo tempo das gavetas trancadas.

A gaveta se fez invisível. Às vezes elas o são de fato. Estão lá, mas para ninguém. São quase tampos ou molduras de móveis de canto. Há nas gavetas muitos mistérios. Mistérios de memórias das brumas do esquecimento.

Gavetas são o inconsciente da casa. Às vezes se perpetuam quietas e caladas, quase sonâmbulas. Estão lá nos móveis com pernas que não andam. Acima delas há, não sem espanto, porta-retratos com as memórias que devem ser vistas, aquelas que se compartilham ao alcance dos olhos alheios.

É nas gavetas-inconscientes que dormem as cartas. Aqueles escritos da saudade, dos tempos que insistem em arranhar o presente com os fantasmas do passado. Velhos passaportes de viagens sem fotos, só com carimbos das roletas dos encontros, das despedidas. Botões soltos, não se sabe de onde. De alguma camisa cuja casa sem botão marca nossas promessas de consertos n´algum dia. Um botão que nas noites solitárias testemunhou parte das angustiantes vidas ao lado de um copo de vinho, único companheiro que amansa a fera de existir no mundo de vazios. Há gavetas com flores secas. Quiçá um dia cheias de vermelhos e magentas, de amarelos rajadinhos de estranhas sardas. Estavam um dia viçosas e intumescidas numa lapela em dia de risos. Cheias de memórias dos tráfegos dos amores, como também um passaporte para uma vida de sonhos e eternidades. As gavetas-inconscientes são mudas. Nem rangem. Mesmo sem chaves, são lacradas por um sei-lá de despercebido. São lacradas pelo temor dos seus desconhecidos objetos.

Abri minha gaveta. Andava em busca de algo cuja importância agora se perdeu, um objeto daqueles que somem nos vazios estreitos dos criados mudos, que somem para depois aparecerem quando já importância não têm. Havia quase uma desesperança em mim. Um cansaço daqueles próprios das procuras de objetos quase-botijas. Nem mais sabia ao certo onde e mesmo para que achar o objeto perdido, quando me deparei com aquela gaveta. Estava lá, solitária, como um predador à espreita durante horas. A mim me veio por um triz um desdém daquela gaveta. Pensei mesmo em nem abri-la. Uma decepção a menos. Tal qual um ato falho, deslizei-a para fora do móvel. Como uma boca, ela engoliu minhas mãos, ávidas pela tensão da busca, talvez do encontro, da surpresa.

Quase que no fundo daquela garganta-gaveta, estava ela. Dormida e quieta por anos, quem sabe. Estava ela sob dobras, em três. Perto dela um envelope sem endereço e alguns selos com a cola vencida. As páginas estavam preguiçosas de se abrir. As dobraduras rangiam feito a ferrugem dos que adormecem sem morrer. Uma única folha com aquela icterícia das gavetas-inconsciente que a tudo amarela. Era minha letra. Percebi pelo corte do T. A caligrafia é como uma dança. Nela um casal de a e m, de mãos dadas, como uma ciranda na qual entravam o o agarradinho ao r. A-m-o-r.

Na caligrafia se sabe da alma do redator. Um T mais salteado; um M ondulado; um S encaracolado. No papel, dança o lápis regido pela mão. Parece um pincel, sem cores, mas com enovelamentos de formas conectadas em palavras. Dançam as vogais seduzindo as consoantes ávidas para fazer delas um som, um sentido. E ao impressionarem nossos olhos, fazem com que palato, língua, lábios e garganta se movam também, produzindo num sopro a criação do verbo, do verbo que dá corpo à forma.

É a escrita o artesanato que modula as ideias. Como um pintor e sua paleta de cores, eu escolhi cada palavra, cada frase, cada parágrafo, que modulou o sentido ao meu pensamento.

Era uma carta para quem se foi. Uma carta de partida, de parto, mas não de nascimento e sim de distância. Eu a escrevi para ti, que sumiste quando o sol acordou o dia. Como as sombras da noite, tu te evanesceste. Ficamos eu e aquela presença medonha. Aquela presença que não enche, mas que esvazia.

Eu experimentei o estar-só um segundo depois da sua partida. E não adiantou rolar na cama no meio dos teus cheiros, me agarrar naquele travesseiro tal qual mãe que, arrependida do parto, quer seu filho de volta à barriga. Eu andei meio trôpego depois da tua partida. Ainda tentei lavar os pratos que havíamos usado naquela noite última. Na maresia dos meus olhos sem tua presença, tua taça escorrega e se parte. Fica a minha. Ainda tentei pegar aqueles cacos, sei lá para quê.

Mesmo colados, eles já não mais traduziriam tua sede. No escorrer da torneira que esqueci aberta, quem sabe pra dividir meu pranto, sentei como feto abandonado junto à soleira da porta da cozinha. Por quase um segundo cheguei a escutar o tintilar das chaves e teus mansos passos pelo corredor. Tu agora já quase um fantasma povoando os tijolos da saudade do meu muro de lamentações.

A carta nunca foi enviada. Na gaveta-inconsciente estava dormida. Também inconscientemente o ato de deixa-la quieta dissesse muito do que não queria. Do que eu não disse para te parar. Do que eu acreditei que só o olhar nos bastaria. Que quando nossos olhares se cruzassem, todas as palavras secariam. A ausência daquela palavra nunca-dita, daquele mal-dito silêncio, do terror do eco quando gritei “volta!” depois da tua partida. O eco é a maldição da própria voz. Gritei para mim. Gritei para os labirintos daquela casa sem ti.

Reli a carta. Mas não toda. Havia nela, nas suas linhas últimas um borrão. As letras se enovelaram e perderam o sentido. Viraram restos de letras, fardos de palavras empilhadas sem nexo. Fonemas de sussurros voláteis. Traços de uma língua sem tradução. Tentei, inutilmente, arrumar-lhe num sentido. Pilhar quem sabe a palavra que nunca foi dita.

Não. Deixei o borrão para o que ele foi feito: a incompletude. Este hoje é o elo que a ti me liga. E a sensação que me invadiu foi a de que finalmente te deixei ir. Porque quando se ama, nos tornamos imensamente desnecessários..


Adriano de Léon é doutor em ciências sociais e professor
E-mail

Ele veio qual capim numa fresta de asfalto. Saiu verdejante em meio à brutalidade daquelas pedras pretas, sob o caustic...


Ele veio qual capim numa fresta de asfalto.

Saiu verdejante em meio à brutalidade daquelas pedras pretas, sob o causticante calor que só o asfalto produz e suporta. Saiu como vida que se vinga da propensa morte, desafiando mesmo os textos sagrados que pregam terra fértil para semeadura. Verdejou porque buscava o Sol, desejava a luz, seu alimento único.

Assim é como eu te vejo. Algo raro, mas não perecível. Sinto em ti uma espécie de seiva que me nutre e me refresca o tempo árido da vida.
Assim é o amor entre amigos. Não é o ardor da falta, o medo do não ter. É um devir sempre-ter, melhor, sempre-ser.

O amor entre amigos é rizomático. Eclode em terrenos inusitados e ludibria a razão. Mil palavras quisesse eu agora tê-las no encontro do branco papel e a marca indelével da tinta para dizer sobre o amor entre amigos.

Talvez fosse o devir-amizade um labirinto. Portas e entradas-saídas que talvez nunca delas se saia. Mas não é espanto e nem gaiola. É um ritornelo, um eterno vir-a-ser de tantos sentidos e afetos sempre-ditos, jamais-ditos. Nas alamedas nunca se enluta o amor, pois que brota sempre. Emerge em espaços de encontros. O amor-labirinto é o sempre-encontro.

Talvez fosse o devir-amizade um chuva fina e molhadeira. Daquelas que caem sei lá de onde, em forma de gotículas quase invisíveis, mas que nos ensopam quase à alma. Chuvinha mansa e criadeira. Sem trovoadas e raios rasgando horizontes. Não. Nada de trovejos. Apenas um zunido de coisas que nascem, como se o som dos brotos rasgando a terra pudesse ser ouvidos na sua sinfonia de vida que nasce. O amor-chuva fina é o ato da criação.

Talvez fosse o devir-amizade um eco. Repetições de últimas frases, às vezes desconexas e vãs. Aqueles de buracos abissais, de cânions que nem se sabe onde findam. Aqueles das catedrais góticas, de sons que ricocheteiam seus arcos. O som depois dos mantras nos sagrados templos. O amor-eco é o som do que já foi dito.

Talvez fosse o devir-amizade uma ponte. Quando se dá este encontro entre um Eu e um Outro, diluem-se ambos. Perco-me de mim no outro. Encontro meus vazios no outro. Dispo-me na apresentação ao outro, a este outro que talvez seja um Eu reconfigurado. Reflexo de mim, despido de mim, pois no encontro amoroso, cedo o que me torna eu mesmo em nome de um nós, de um enovelamento de si sobre o outro. Entre o Eu e o Outro nada mais resta que só o vazio. Mas há a ponte, o intermédio. O amor-ponte é a nudez dos afetos.

Reviro caixas em busca de cartas que nunca escrevi. Reviro-me à noite, insone e ensopado de suores que nem me pertencem. Assunto o dia vago, buscando sei-lá-o-quê.

Que me falte o pulso dos homens.
Que me falte o pulsar das mulheres.
Mas não me faltem os amigos.
Que afoguem os mares de sonhos.
Que me traguem os vinhos mais raros.
Que, enfim, se abram minhas eclusas e que eu, taciturno e pálido dentro das vazias noites, me escorra em rios de corredeiras sem mares.

Mas que não me falte o devir-amizade. Amor-amigo é amor que nunca seca.


Adriano de Léon é doutor em ciências sociais e professor E-mail

Um vírus me trouxe o inverno. Em menos de um mês, sem chover, trovejar, céu claro e sol forte, uma tormenta caiu como grossas camadas...


Um vírus me trouxe o inverno.

Em menos de um mês, sem chover, trovejar, céu claro e sol forte, uma tormenta caiu como grossas camadas de neve e gelo sobre mim. Portas fechadas. Ligações esparsas e, muitas vezes, movidas aos acordes da carência dos outros. 

Estes também isolados em seus medos invernais. Tediosos de filmes, páginas de livros mal lidos naquela hora de afogamento. Reinventando o mesmo, o si mesmo, o mais mesquinho de si. Outros se mascarando, como sempre quiseram, sob o domínio de um medo que nem bem conhecem. Temem não o vírus, presente no planeta mesmo antes do homem. Temem o outro. Este outro possível portador, como os medievos temiam a peste negra, como os europeus temiam a gripe espanhola, como os africanos temiam o ebola, como os americanos temiam o antraz. Temer o outro passou a ser nossa segurança. Além disto, mais que temer o outro, perder o sentido de solidariedade que seria um traço humano diante das tragédias que a vida anuncia.

Peguei minha toalha e fui ao banho. Permiti as águas correrem e talvez me saciarem, quem sabe me limparem deste infecto mundo. Os felpos de algodão engoliam as gotas d´água sobre minha pele, tal qual um vírus a uma célula. Meus cabelos ainda molhados e desgrenhados à luz do espelho que sempre me vigia, faziam com que finos rios de água escorressem ainda sobre minha face. Nela, percebi minhas rugas. Leitos de rio de sabedoria da pele. Dobras da minha subjetividade que uns chamam velhice. Dentro daqueles sulcos havia rios. O que era antes liso, minha pele juvenil, foi erodida pelo tempo, senhor máximo da vida. Estes secos rios de pele e dobra desenharam em mim um outro. Um outro que sou eu e de quem gosto. 

Bem que eu poderia ser seduzido pelas mágicas fórmulas da juventude a qualquer preço. Por cremes e ácidos preenchedores, atenuantes, revitalizadores, e cirurgias correcionais. Não. Este é meu corpo no seu tempo. Evocar um corpo que superou o tempo é viver uma caricatura de si mesmo. Não quero portar máscaras nenhumas.

Ao pensar nisto diante da minha imagem, esbocei um sorriso. Um sem números de outras rugas e marcas apareceram do nada. Eram parte do meu sorriso. Ri mais ainda. Ri demasiadamente. E quanto mais ria, mais dobras, mais marcas, mais sombras, mais vigor, apareciam. Meus riachos e ribeirinhos de marcas eram também minha doçura diante dos diários apocalipses. Feito isto, chorei. Muitas marcas se foram, como que dissolvidas no sal das lágrimas. Feito terra arada quando chove, que nada mais se vê a não ser a fina lâmina d´água que vivifica o chão sulcado. Meus castanhos olhos se inundaram de borbulhantes fontes. A água escorria pelas colinas das maçãs do meu rosto, pelo vale profundo margeando as narinas, desaguando ora no abismo da minha boca, ora escorrendo no precipício do meu queixo. 

Ali, água, células, bactérias e vírus se juntavam em rodas de vida. Ali, naquele momento, nada os diferenciava como as vãs nomenclaturas da Ciência que vive da separação classificatória. 

Suspirei por um segundo. O espelho se enevoou com o vapor da minha respiração. Desapareci por um tempo por entre o véu quente que soprou entre meus lábios. Por um instante quis me devolver à imagem do espelho. Podia desanuviar o borrão. Não o fiz. Aquele também era eu. Um eu entre nuvens, um eu que se via esfumado e talvez distorcido. Lentamente minha imagem reapareceu. Lentamente meu rosto ressurgiu com seus sulcos e planícies de pele. Havia tantos eus naquela imagem... Sou um eu caleidoscópico, múltiplo e dinâmico. 

Terminei o ritual e fui à janela. Outros tantos ali trancafiados. Outros tantos além isolados. Isolados dos outros. Isolados de si.



Adriano de Léon é Professor de Ciências Sociais (João Pessoa-PB). adrianodeleon77@gmail.com