Ela estava lá, quase intacta, repousando por entre papéis também esquecidos pelo tempo das gavetas trancadas. A gaveta se fez invisível. ...

Por entre gavetas e cartas


Ela estava lá, quase intacta, repousando por entre papéis também esquecidos pelo tempo das gavetas trancadas.

A gaveta se fez invisível. Às vezes elas o são de fato. Estão lá, mas para ninguém. São quase tampos ou molduras de móveis de canto. Há nas gavetas muitos mistérios. Mistérios de memórias das brumas do esquecimento.

Gavetas são o inconsciente da casa. Às vezes se perpetuam quietas e caladas, quase sonâmbulas. Estão lá nos móveis com pernas que não andam. Acima delas há, não sem espanto, porta-retratos com as memórias que devem ser vistas, aquelas que se compartilham ao alcance dos olhos alheios.

É nas gavetas-inconscientes que dormem as cartas. Aqueles escritos da saudade, dos tempos que insistem em arranhar o presente com os fantasmas do passado. Velhos passaportes de viagens sem fotos, só com carimbos das roletas dos encontros, das despedidas. Botões soltos, não se sabe de onde. De alguma camisa cuja casa sem botão marca nossas promessas de consertos n´algum dia. Um botão que nas noites solitárias testemunhou parte das angustiantes vidas ao lado de um copo de vinho, único companheiro que amansa a fera de existir no mundo de vazios. Há gavetas com flores secas. Quiçá um dia cheias de vermelhos e magentas, de amarelos rajadinhos de estranhas sardas. Estavam um dia viçosas e intumescidas numa lapela em dia de risos. Cheias de memórias dos tráfegos dos amores, como também um passaporte para uma vida de sonhos e eternidades. As gavetas-inconscientes são mudas. Nem rangem. Mesmo sem chaves, são lacradas por um sei-lá de despercebido. São lacradas pelo temor dos seus desconhecidos objetos.

Abri minha gaveta. Andava em busca de algo cuja importância agora se perdeu, um objeto daqueles que somem nos vazios estreitos dos criados mudos, que somem para depois aparecerem quando já importância não têm. Havia quase uma desesperança em mim. Um cansaço daqueles próprios das procuras de objetos quase-botijas. Nem mais sabia ao certo onde e mesmo para que achar o objeto perdido, quando me deparei com aquela gaveta. Estava lá, solitária, como um predador à espreita durante horas. A mim me veio por um triz um desdém daquela gaveta. Pensei mesmo em nem abri-la. Uma decepção a menos. Tal qual um ato falho, deslizei-a para fora do móvel. Como uma boca, ela engoliu minhas mãos, ávidas pela tensão da busca, talvez do encontro, da surpresa.

Quase que no fundo daquela garganta-gaveta, estava ela. Dormida e quieta por anos, quem sabe. Estava ela sob dobras, em três. Perto dela um envelope sem endereço e alguns selos com a cola vencida. As páginas estavam preguiçosas de se abrir. As dobraduras rangiam feito a ferrugem dos que adormecem sem morrer. Uma única folha com aquela icterícia das gavetas-inconsciente que a tudo amarela. Era minha letra. Percebi pelo corte do T. A caligrafia é como uma dança. Nela um casal de a e m, de mãos dadas, como uma ciranda na qual entravam o o agarradinho ao r. A-m-o-r.

Na caligrafia se sabe da alma do redator. Um T mais salteado; um M ondulado; um S encaracolado. No papel, dança o lápis regido pela mão. Parece um pincel, sem cores, mas com enovelamentos de formas conectadas em palavras. Dançam as vogais seduzindo as consoantes ávidas para fazer delas um som, um sentido. E ao impressionarem nossos olhos, fazem com que palato, língua, lábios e garganta se movam também, produzindo num sopro a criação do verbo, do verbo que dá corpo à forma.

É a escrita o artesanato que modula as ideias. Como um pintor e sua paleta de cores, eu escolhi cada palavra, cada frase, cada parágrafo, que modulou o sentido ao meu pensamento.

Era uma carta para quem se foi. Uma carta de partida, de parto, mas não de nascimento e sim de distância. Eu a escrevi para ti, que sumiste quando o sol acordou o dia. Como as sombras da noite, tu te evanesceste. Ficamos eu e aquela presença medonha. Aquela presença que não enche, mas que esvazia.

Eu experimentei o estar-só um segundo depois da sua partida. E não adiantou rolar na cama no meio dos teus cheiros, me agarrar naquele travesseiro tal qual mãe que, arrependida do parto, quer seu filho de volta à barriga. Eu andei meio trôpego depois da tua partida. Ainda tentei lavar os pratos que havíamos usado naquela noite última. Na maresia dos meus olhos sem tua presença, tua taça escorrega e se parte. Fica a minha. Ainda tentei pegar aqueles cacos, sei lá para quê.

Mesmo colados, eles já não mais traduziriam tua sede. No escorrer da torneira que esqueci aberta, quem sabe pra dividir meu pranto, sentei como feto abandonado junto à soleira da porta da cozinha. Por quase um segundo cheguei a escutar o tintilar das chaves e teus mansos passos pelo corredor. Tu agora já quase um fantasma povoando os tijolos da saudade do meu muro de lamentações.

A carta nunca foi enviada. Na gaveta-inconsciente estava dormida. Também inconscientemente o ato de deixa-la quieta dissesse muito do que não queria. Do que eu não disse para te parar. Do que eu acreditei que só o olhar nos bastaria. Que quando nossos olhares se cruzassem, todas as palavras secariam. A ausência daquela palavra nunca-dita, daquele mal-dito silêncio, do terror do eco quando gritei “volta!” depois da tua partida. O eco é a maldição da própria voz. Gritei para mim. Gritei para os labirintos daquela casa sem ti.

Reli a carta. Mas não toda. Havia nela, nas suas linhas últimas um borrão. As letras se enovelaram e perderam o sentido. Viraram restos de letras, fardos de palavras empilhadas sem nexo. Fonemas de sussurros voláteis. Traços de uma língua sem tradução. Tentei, inutilmente, arrumar-lhe num sentido. Pilhar quem sabe a palavra que nunca foi dita.

Não. Deixei o borrão para o que ele foi feito: a incompletude. Este hoje é o elo que a ti me liga. E a sensação que me invadiu foi a de que finalmente te deixei ir. Porque quando se ama, nos tornamos imensamente desnecessários..


Adriano de Léon é doutor em ciências sociais e professor
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