Em que é que eu pensava enquanto conduzia Juliana ao altar? Foi mais ou menos isso que alguém me perguntou na recepção que houve depois. Eu respondi que já não me lembrava, mas a verdade é que não pensei em nada. Queria chegar logo ao final do cortejo e me livrar das fisgadas daquelas dezenas de pares de olhos.
Em 1994 veio a público, pela Nova Aguilar, a Obra Completa de Augusto dos Anjos. Organizada por Alexei Bueno, ela reunia pela primeira vez toda a produção do paraibano. Nas palavras do organizador, o volume “constitui o depósito formal de tudo que (Augusto) produziu, do mais contingente ao mais sublime”. Ou seja: não apenas o “Eu” e as outras poesias, coligidas por Órris Soares, como também os Poemas Esquecidos, a Prosa Dispersa, a Correspondência e os chamados versos de circunstância.
Carnaval, ele com vontade de ir para a rua, e a mulher doente no quarto ao lado. Da sala ouvia a tosse — curru, curru, curru... Era a noite em que sairia com a turma. Podia ouvir o esquentar dos instrumentos e as vozes dos que se dirigiam à concentração. Daí a pouco passariam em frente à sua casa e gritariam, chamando-o. Assim faziam com quem não saía da toca para brincar. O combinado era convocar um por um. Diriam:
Jornalismo não é literatura, mas sempre houve a tentação de se confundir um com a outra. A diferença entre os dois reside basicamente na forma como utilizam a língua. No jornal a palavra é veículo, e não fim. Ao contrário do que acontece no texto literário, ela “se apaga” para deixar transparecer o fato ou a opinião.
Um dos efeitos da melancolia é enfraquecer os vínculos associativos que propiciam a representação verbal. O melancólico expressa-se com dificuldade, como se lhe fosse difícil estabelecer o nexo entre significante e significado. A sua fala é lenta e marcada por claros, ambiguidades, repetições fônicas e lexicais que revelam uma espécie de desestruturação do discurso.
O acaso escapa a qualquer tentativa de explicação. Mesmo assim procuramos lhe dar um sentido, e a arte é um dos meios que utilizamos para isso. O outro é a religião. Existe ainda um terceiro: a ciência — mas esta, embora nos traga evidências confiáveis, não tem a amplitude das outras duas. A ciência não envolve (ou envolve muito pouco) nossas fantasias e emoções. Não há poesia em fazer exames laboratoriais ou em tomar remédios, apesar dos bons efeitos que tais recursos propiciam.
Fausto Cunha escreveu que Augusto dos Anjos foi salvo pelo povo. Ele se referia ao entusiasmo e à fidelidade do homem comum ao poeta, em contraste com a má-vontade de certos críticos que não teriam compreendido o significado do “Eu” para a literatura brasileira. De fato, o povo amou Augusto desde o início, e o declamou e vem declamando nos mais diversos rincões deste país. Sobretudo no interior, tem sempre alguém cujo avô ou o pai possui um exemplar do único livro do poeta, e o recita em momentos de solidão ou de congraçamento familiar.
No intercâmbio com os outros, é próprio do ser humano argumentar. Argumentamos desde pequenos – desde que temos a incipiente consciência de que é preciso fazer as pessoas aderirem à nossa verdade.
Algumas lembranças decisivas de minha infância ligam-se ao Colégio Diocesano Pio XI, de Campina Grande. Lá fiz o admissão e cursei uma parte do primário. O Pio XI era dirigido pelo meu tio Emídio Viana, que liderava a família vinda de Santa Rita. Graças a uma carta de minha avó, mulher religiosa e que se correspondia com várias autoridades da Igreja, Emídio conseguiu da diocese autorização para dirigir o ensino naquele colégio. Ele dirigia, e o restante da família (inclusive o meu avô) completava-o na administração ou no magistério.
Sempre que vai um ano e vem outro, é comum refletir sobre o que se viveu e fazer planos para o futuro. O tempo, afinal, existe para isto: levar-nos a esquecer as frustrações pelo que não deu certo e nos estimular a fazer novos planos. Não há dúvida de que no atual momento, com o vírus circulando por aí, as metas vão encolher bastante. Como projetar viagens não sabendo se será possível realizá-las? Como programar festas, de aniversário ou do que for, se os epidemiologistas continuamente nos alertam sobre o risco das aglomerações?
A luta contra a pandemia está sendo difícil porque nem todos estão interessados em colaborar. Se estivessem, abdicariam um pouco dos próprios interesses em benefício do bem comum. Por que não fazem isso? Talvez por se acharem “imortais”, ou pensarem que estatisticamente têm poucas probabilidades de ser acometidos pela doença. Como se ela só atingisse os outros... É o velho egoísmo triunfando sobre as nossas ralas propensões altruístas.
2021 vai ser o ano da vacina. Ou das vacinas, pois haverá muitas, com diferentes níveis de eficiência para as distintas faixas da população. O vírus não se extinguirá sem que em nosso organismo proliferem os anticorpos capazes de devorá-los. Curiosamente, ainda assim há quem se oponha a esse inestimável recurso da ciência – por ignorância, birra ou (o que parece mais comum) posicionamento ideológico. Chega-se ao ponto de desejar o fracasso de quem se empenhe em importar um tipo de vacina que tenha mais eficácia na cura da doença.
O réveillon é também sinônimo de Carnaval, mas fica difícil antecipar uma folia que não vai se prolongar em fevereiro. Principalmente se a gente se lembrar de que, no período carnavalesco passado, foi o vírus quem fez a festa. A tendência (pelo menos para os prudentes) é ficar em casa abraçando os parentes próximos, com os quais se tem a certeza de não correr riscos. Haverá em tudo isso algo de sombrio, claro. É grave e penoso meditar sobre o tempo quando paira no horizonte a ameaça de um vírus letal. Ele é uma sombra que só irá se desfazer quando a vacina começar a produzir os seus efeitos.
A vida é um processo de ajustamento contínuo às circunstâncias. Chegamos aonde chegamos na escala evolucionária devido à nossa ilimitada capacidade de adaptação. O ser humano se adapta a tudo, pois o instinto de conservação o impulsiona a ir em frente. Mas “ir em frente” não significa necessariamente evoluir. Pode significar, como no atual momento, apenas sobreviver. À meia-noite do dia 31, brindaremos sobretudo à nossa sobrevivência num ano em que tantos se foram.
Ele estava seriamente desconfiado de que Papai Noel não existia. Os pais protestavam, não queriam que se despedisse tão cedo da infância (como se não houvesse razões mais fortes que levavam a isso!), mas ele achava que o estavam tapeando. Enganavam-no além do tempo em que deveria ser enganado. De qualquer modo, com os seus onze anos, não tinha certeza.
“Oficina de escritores”, de Stephen Koch, é uma dessas bíblias que todo aspirante a escritor deve conhecer. Nele o autor condensa uma experiência de décadas ensinando a escrita. Ele conhece bem as expectativas, as fantasias e os medos de quem lida com as palavras, mesmo porque na qualidade de autor ficcional sente o problema “por dentro”. Uma coisa é apenas ensinar; outra é também “fazer”, e tirar da experiência lições que se podem passar a outras pessoas.
Tenho um amigo que é sedentário por natureza e convicção, por isso fiquei surpreso quando o vi, recentemente, fazendo caminhadas perto de casa. Numa dessas ocasiões conversamos longamente sobre essa compulsão moderna de andar, que vem se incorporando à vida não só do pessoense, ou do brasileiro, mas do homem globalizado. Ele me disse que fazia isso muito pouco e de má vontade. Chegou a ponderar, filosoficamente, que andar não é próprio do ser humano.
Aristóteles foi um dos primeiros a destacar o poder curativo das palavras. Através delas, é possível liberar tensões mentais. O próprio processo de verbalização já constitui um alívio, pois muitas vezes sofremos por não conseguir expressar o que nos atormenta. E quando, falando ou escrevendo, atinamos com o motivo da angústia, às vezes percebemos que ele não é tão grave assim. Não justificava tanto sofrimento.
O estagirita ressaltou a função catártica do verbo. A catarse, termo que ele tomou emprestado à Medicina, decorria do temor e da comiseração que o espectador experimentava ao assistir a uma encenação trágica. Era, como ele chamou, o efeito moral da tragédia. Vendo por exemplo o sofrimento de Édipo, que foi levado pelo destino a matar o pai, o espectador se horrorizava e, ao mesmo tempo, tinha piedade do rei tebano. Obtinha com isso um alívio para seus próprios infortúnios. Cito a tragédia de Sófocles porque nela se representa um padecimento universal. Édipo, conforme luminosamente percebeu Freud, é todo o mundo.
Da tragédia para o que se chama literatura de autoajuda, transcorreram vinte e poucos séculos. Se há alguma coisa de comum entre ambas, é o apelo ao poder que as palavras têm de curar. No mais, distinguem-se tanto quanto um bom suco, feito com fruta natural, se distingue de um refresco industrializado. Na tragédia há personagens que se defrontam com situações-limite e expõem o que há em si de demoníaco e divino. Encurralados pela Falta que cometeram, eles sabem que não lhes resta outra saída a não ser a morte ou a loucura.
Na autoajuda fala-se do indivíduo comum, incapaz de outro heroísmo senão o de sobreviver numa sociedade violenta e desigual como a nossa. Nela os temores são banais e cotidianos, ligados à expectativa de ser assaltado, adoecer, ficar pobre. Sobretudo ficar pobre e ser exilado do paraíso do consumo. E são tantos os frutos a tentar esse Adão moderno! Não apenas a maçã, mas todo um pomar. O paraíso tem até sua serpente, que se chama promoção. Eva é que continua a mesma da versão bíblica.
No caso da tragédia, procede-se a uma dolorosa sangria; no da autoajuda, ministra-se um placebo. Mas em ambos ocorre a intermediação da palavra, que faz uma espécie de ponte entre nossos temores inconscientes e o Logos redentor. Escolhe-se a tragédia ou a autoajuda de acordo com o que se pode suportar, vale dizer, com a coragem de cada um para enfrentar a verdade. Tem gente que se contenta com placebos, e deles hoje o mercado anda cheio.
Sei que há sempre um risco em falar sobre os livros de autoajuda, pois geralmente quem os critica não os lê. O problema é que quem os lê não os critica. Ficam então essas obras numa espécie de limbo, a depender do juízo ressentido dos intelectuais ou da empolgação ingênua dos fanáticos. Tento opinar sem ressentimento, à luz do que pude aprender sobre o ser humano em criações como a tragédia grega.
Segundo os aficionados, há na literatura de autoajuda sabedoria suficiente para garantir confiança nesta vida e esperança na outra (e ninguém precisa de mais do que isso para trabalhar em paz e ganhar o seu dinheiro, que é enfim o que conta). Para que perder tempo com grandes indagações sobre o sentido da existência? Para que cultivar dúvidas sobre o Universo ou a natureza da verdade? Dúvidas não saldam dívidas, e todos precisamos estar com a cabeça fria para bolar estratégias que nos livrem do cheque especial, dos agiotas, das financeiras... Que venham então esses compêndios de narcóticas obviedades.
A febre não passava. Vinha com calafrios, tosse, dores nas costas. Bem que não deveria ter comparecido ao enterro de João Lourenço Ferreira de Lacerda. Chovia muito, e ele já estava gripado. Ester o prevenira de que poderia contrair pneumonia ou coisa pior. Ele tinha consciência de que se arriscava, mas não poderia deixar de prestigiar a memória de um patriarca de Leopoldina, cidade que o havia recebido como a um filho. Se não fosse, sentiria remorsos (a velha culpa o espreitava a propósito de tudo!). Soaria como ingratidão, que sempre lhe pareceu o pior dos sentimentos humanos. Fora ao enterro e voltara febril. Nesse estado, também contra os conselhos da mulher, deu aulas à tarde e à noite. Não poderia faltar, pois sempre teve em alta conta o cumprimento do dever. O resultado fora mesmo uma pneumonia, conforme diagnosticou o Dr. Custódio Junqueira, que cuidava dele em companhia de três colegas e do farmacêutico João de Moura.
Esse é o título do livro em que James Geary, editor na Europa da revista Time, faz um abrangente estudo sobre os aforismos. Ele mostra a evolução desse gênero desde o tempo em que era praticado por sábios e profetas até os dias de hoje.
Na obra de Carlos Drummond de Andrade, melancolia e ironia se alternam ou se confundem, concorrendo para traduzir com desencanto e humor o percurso existencial do eu lírico. Desde o primeiro livro, "Alguma poesia" (1930), Drummond se utiliza de procedimentos estilísticos em que se destaca o enlace entre a representação melancólica e o contraponto irônico. A própria autoatribuição de
Autor de um livro também intitulado “Eu”, o português Alfredo Pimenta está entre os autores que teriam influenciado Augusto dos Anjos. Confrontando o livro do português com o do paraibano, deparamo-nos, de fato, com algumas curiosas coincidências. Mas tanto no espírito, quanto na forma, há uma enorme diferença entre os dois.
Por exemplo: ambos fizeram versos à dor e à mágoa. Mas, enquanto Augusto dos Anjos identifica na mágoa um travo maiúsculo e definitivo, de ressonâncias metafísicas, o qual se constitui em marca da falta (mácula) humana – Alfredo Pimenta enaltece, preponderantemente, a mágoa na mulher. A mulher que chora (a mulher magoada) aparece em sua lírica como uma imagem de obsessivo apelo emocional.
Assim é que, no primeiro dos sonetos nomeados de “Santificação da mágoa”, ele refere a certa altura:
"Tudo em ti me revela uma tristeza
Filha da grande dor da natureza,
Bendita e santa irmã da humana dor!” (p. 14).
E, no segundo deles, remata o terceto final com estes versos:
“Que a tua dor, Mulher, seja infinita!
Pois quanto mais sofreres, maior serás!”
Em Augusto dos Anjos, a dor merece um hino. É tratada, segundo a perspectiva cristã, como um ganho espiritual e, sobretudo, como um instrumento de ascese, conforme se pode constatar nos versos com que ele inicia o seu “Hino à dor”:
“Dor, saúde dos seres que se fanam,
Riqueza da alma, psíquico tesouro,
Alegria das glândulas do choro
De onde todas as lágrimas emanam...”
E nestes outros, que aparecem pouco adiante:
“E, assim, sem convulsão que me alvoroce,
Minha maior ventura é estar de posse
De tuas claridades absolutas!”
São comuns aos dois poetas o panteísmo e a representação da Natureza. Ambos fizeram versos à pedra, à montanha, conferindo à superfície dura e inóspita desses elementos um recorte dramático. Confrontemos, quanto a esse aspecto, os versos de cada um deles. Em certa passagem, Alfredo Pimenta se refere à “... maldição que ouvimos/ Sair da boca duma pedra/ Quando com outra às vezes a ferimos!”
Se comparamos o dramatismo dessa imagem com a representação que Augusto dos Anjos faz no primeiro dos sonetos “As montanhas”, de novo percebemos a significativa diferença que separa um do outro — quer pelo uso da linguagem, quer pela integração, diríamos, dialética, entre o elemento plástico, exterior, e o componente anímico e subjetivo.
Eis os versos do paraibano:
“Quem não vê nas graníticas entranhas
A subjevidade ascensional
Paralisada e estrangulada, mal
Quis erguer-se a cumíadas tamanhas?!
Ah! Nesse anelo trágico de altura
Não serão as montanhas, porventura,
Estacionadas, íngremes, assim,
Por um abortamento de mecânica
A representação ainda inorgânica
De tudo aquilo que parou em mim?!” (352).
No trecho de Pimenta, o que se tem é a sumária indicação de um conflito, própria somente para figurar o sentimento, ou melhor, o ressentimento que acomete a substância bruta quando agredida. Augusto, por sua vez, alude a um combate que se constitui em leit motiv da sua obra, representado pelas contradições entre instinto e alma, matéria e espírito. Sendo um “abortamento de mecânica”, um resíduo inorgânico, a montanha alegoriza a própria morte como pulsão, que se contrapõe aos anseios eróticos, vitais, e se constitui em sombrio e permanente aceno para o homem.
Há em ambos os poetas o mesmo fundo mórbido, a mesma perplexidade ante a voragem contraditória de sentimentos e conceitos que marcaram o final do século XIX. Tanto Alfredo Pimenta quanto Augusto dos Anjos vivenciaram intensamente esse clima, marcado pela sensação de decadência e pela expectativa de um fim iminente, do qual emergiria uma nova ordem.
Mas cada qual espera ou propõe o novo à sua maneira. Pimenta chega a sonhar com a revolução social, concebida romanticamente; Augusto deseja a redenção espiritual do homem. E se um, a despeito dos ideais progressistas, permanece formalmente preso ao passado — o outro inova em termos formais, utilizando-se de recursos (o coloquialismo, por exemplo) que o incluiriam na modernidade literária brasileira.
Chico Viana é doutor em teoria literária, professor e escritor
Alice desistiu de procurar a Rainha, mas não estava nada satisfeita com as mudanças de tamanho. Era muito doloroso não saber como ia acordar no dia seguinte. Caminhava pelo bosque com esses pensamentos tristes, quando viu ao lado da trilha um homem sentado diante de uma mesa sobre a qual havia um papel em branco. Era o Escritor. Resolveu lhe falar: