- Aqui que mora o pintor? Eu estava deitado no sofá, quando aquela cabeça assomou por sobre a porta de baixo, da entrada da casa e, d...


- Aqui que mora o pintor?

Eu estava deitado no sofá, quando aquela cabeça assomou por sobre a porta de baixo, da entrada da casa e, depois da pergunta, ficou me encarando, interrogativa. O homem estava do lado de fora da casa, posicionado uns dois batentes abaixo do umbral daquela porta no velho estilo saia & blusa.

Corria o ano de 1974, contava eu então 19 anos de idade e estava passando férias da faculdade em casa de minha mãe, em Campina Grande, na Avenida Getúlio Vargas, 447, centro.

O homem, relativamente jovem, era gente das mais simples. Vai ver, um serviçal doméstico, e – mas não exatamente por isso --, sem a menor chance de suspeitar que suas palavras acabavam de ser importante vetor no destino de uma vida. O pintor no qual eu, incertamente sonhava me tornar um dia, acabara de ser convocado por ele, de uma forma clara, inequívoca, carregada de convicção. Aquela certeza me contagiou e me emprestou suficiente coragem para, pegando na palavra, responder:

-- Aqui mesmo. Sou eu!

Ele trouxera um recado da d. Lisete (a quem conhecíamos por ser amiga de nossa mãe), que queria contratar um trabalho, e naquele momento estava esperando por mim, um mero estudante de Arte, em sua casa – não muito distante dali – para acertar os detalhes. Ele deu o recado e se foi. Logo em seguida, ainda surpreso com aquilo, coração agitado, parti no rumo daquele endereço, descendo pela calçada da rua. Passei a Mercearia de Seu Adauto, cruzei a Rua Indios Cariris, passei na frente do Cine Avenida, no quarteirão seguinte, dobrei à esquerda na Rua Siqueira Campos, e logo me encontrava diante da casa.

D. Lisete me fez entrar, e, ali mesmo, no jardim, fez a primeira pergunta: se eu sabia mesmo como fazer retratos a óleo. Acontece que, naquele momento, eu me achava ainda contaminado pela dose de autoconfiança, há pouco inoculada, e com isso, passei a responder afirmativamente aos questionamentos sobre minha capacidade artística. Me lembro de vê-la parar, depois de preenchido seu questionário de dúvidas, e me examinar em silêncio por algum instante, antes de entrar na casa para buscar a fotografia em tamanho 3x4 do falecido. De volta, perguntou: ‘’Você acha que dá para fazer por aqui?’’

Era o pai do marido dela, Seu Arnóbio, numa foto antiga e semiapagada. A mulher logo me explicou que estava preparando uma surpresa para o dia do aniversário de seu marido, em data próxima. Ela conhecia bem o tipo de apego que unia Gonzaga, gerente de uma transportadora, à memória paterna. Seria uma enorme surpresa para o filho de Seu Arnóbio, isso a mulher fez questão de salientar. Pelo que dela ouvi, e pelo que ouviria depois do próprio Gonzaga, posso afirmar sem receios que a ligação afetiva que ele mantinha com seu pai em nada devia àquelas que Amadeus Mozart, William Turner, ou o Arquiteto Germano Romero, haviam, pela vida inteira, mantido com seus respectivos progenitores. Mais que amor, veneração.

Minha mãe me adiantou o dinheiro para comprar tela e tintas, e nessa altura, é preciso explicar que, por aqueles dias, eu até já havia participado de uma primeira Exposição Coletiva de Artes Plásticas na Capital, ao lado dos colegas Dalberto Henriques, Bruno Steinbach, Elpídio Dantas, Guilherme Lira, Marcos Pinto, Antonio Lucena e Sandoval Nóbrega, embora tudo que eu tivesse feito até então com pincéis e tintas não fosse mais que algumas pinturas cubistas, alguns pastiches naquela linha mais Picassiana possível, estando portanto ainda bastante longe de possuir o traquejo técnico suficiente para pintar um retrato a óleo, cuja fatura exige do artista não apenas domínio de recursos pictóricos, mas também da sutileza presente em convenções sociais desse tipo. Desenhar eu bem que sabia, sim, e por isto estava ali. Havia feito um retrato, 10 ou 12 anos atrás, quando era apenas um menino e morava em Patos-Pb. Naquela ocasião, porém, fazendo uso exclusivo de lápis grafite sobre papel cartolina.

Por aqueles dias, alheamento profissional combinado com excesso de confiança em relação às dificuldades que me aguardavam, foi o pretexto para que o Arquétipo conhecido como ‘Loucura da Juventude’, se apressasse em invadir meu processo criativo, o que de fato aconteceu quando escolhi para cenário de fundo daquela pintura uma sombria paisagem de canavial ao entardecer (considerei – pasmem! -- que um certo clima sobrenatural ‘caísse’ bem para um homem que já falecera!)... e, como se não bastasse, resolvi colocar uma espécie de lacrau passeando sobre a lapela do paletó da personagem, num arroubo de sinceridade (própria talvez de certo traço cultural inerente a paraibanos rebentos da primeira metade do séc. XX, por herdade do poeta Augusto dos Anjos) que pretendesse lembrar os vermes que foram seus verdadeiros companheiros durante a última viagem!…

Comecei a pintar o lacrau, mas aí, um pequeno filete de luz alcançou-me na mente, aspergindo ali um restinho de bom-senso para que eu, pelo menos, passasse a desconfiar de que talvez os familiares do morto não fossem gostar daquilo... e apressadamente tratei de retirar aquele inseto dali. O forte Tenebrismo canavieiro, porém, um mal menor, esse permaneceria. Quando, finalmente, terminei o trabalho, assinei-o e tratei de rapidamente entregá-lo, pois a data limite já se expirava.

Quando transpus o portão e exibi a tela para d. Lisete, ali mesmo no jardim, ela permaneceu por um tempo muda e espantada com o que via. Na sequência, eu tive o extremo dissabor de, aos poucos, ver sua expressão cambiar do inesperado espanto para um misto de angústia e raiva. “Os olhos até que parecem’’, ela foi dizendo, ‘’a boca também, mas ele não tinha bochechas grandes assim. Seu Arnóbio não era inchado desse jeito. Ele nem bebia’’. E foi ‘pegando ar’ à medida que falava. Não se cansava de citar defeitos, sobretudo os das tais bochechas. Nesta altura eu já buscava um buraco onde me socar, feito um daqueles vermes, os tais amigos derradeiros do falecido, mas, num dado momento, a dona Lisete se deu conta do quanto eu estava constrangido, e foi então que se lembrou de recorrer à viúva do retratado para que emitisse ela também sua opinião sobre a obra. Afinal, a dona Alice vivera a vida inteira com o suposto retratado, opinião esta que a dona Lisete – foi logo adiantando --, havia de ser equivalente à sua, desabonadora de qualquer suposta fidelidade naquele retrato à feição de Seu Arnóbio, e, se assim fazia, era para que eu não pensasse que ela estava com algum tipo de má vontade para com meu trabalho, e procurasse compreender que ela estava apenas muito decepcionada com o fracasso da empreitada, com aquela tremenda falha de fidelidade na pintura.

Hoje eu me arrisco a dizer que o que ela tentara me explicar, na verdade, é que estava com muita raiva de si própria por ter sido tola ao ponto de acreditar que um jovem inexperiente feito eu fosse capaz de cumprir à risca um compromisso daqueles. Dito aquilo, porém, a mulher entrou novamente em casa e foi buscar a sogra anciã.

Depois de uma espera interminável, a dona Lisete e uma empregada da casa, segurando cada uma num dos cotovelos de dona Alice Gonzaga, já de idade bastante avançada, apareceram na porta. A anciã bem que era frágil. Bem decrepitazinha. Levaram um tempão para fazê-la descer o desvão de uns poucos centímetros entre a sala e o terraço. Por fim a sentaram numa cadeira, e enquanto a dona Lisete, considerando a avançada miopia da sogra, posicionava o quadro sobre as coxas dela, a outra mulher tratava de colocar-lhe os óculos no rosto. Nesse momento, e eu digo aqui com sinceridade, senti um tênue fio de esperança me reanimar: é que naquelas condições em que a viúva se encontrava, tudo podia se esperar. Era possível ATÉ MESMO que ela viesse a identificar naquele retrato as feições do companheiro que o destino um dia lhe designara para seu convívio. Mas, quando a idosa, finalmente, pôs seus olhos no quadro e neste se concentrou, demoradamente, um silêncio se fez. Depois de um tempo que me pareceu um século, a d. Alice Gonzaga, com uma energia insuspeitada quanto súbita, fez aquele gesto de afastar o quadro de si, e com seu filete de voz, ergueu a cabeça e exclamou para que todos ouvissem:

--- Este aqui nunca foi o finad’Arnóbio!

Ato contínuo, a nora sentou-se ao lado dela, e passou a salientar, para ela, os traços cuja infidelidade condenavam o retrato, e só depois, quando percebeu, num relance, o lamentável estado psicológico em que eu me afundara, voltou-se pra mim, e, preocupada, quis minimizar a situação. Tentava agora me consolar, dizendo que a pintura era, apesar de tudo, de excelente qualidade, o quadro era bonito, etc., apenas não concernia à pessoa do retratado. Que eu não ficasse assim, porque ela iria me pagar segundo o combinado, etc. Disse ainda que, de qualquer forma, eu havia feito o possível para cumprir com meu papel, que havia entregue o quadro no tempo combinado. Apenas ela desistira de presenteá-lo ao marido. Só isso.

Quando eu subia de volta a ladeira da Avenida, o desânimo quis tomar conta de mim. O dinheiro que eu tinha colocado num bolso da calça, em contato com minha coxa, parecia queimar. Como se fosse dinheiro roubado. Teve um momento em que parei junto a um poste. Estava confuso e angustiado depois do enorme vexame a que fora submetido, mas foi aí que subitamente me ocorreu um pensamento redentor: o de que havia alguma coisa errada com o que eu acabara de experienciar.

Em seguida me lembrei da recorrência biográfica sobre todos que são vocacionados para alguma profissão, dos primeiros testes a que são submetidos na vida, e sobre os quais obtêm sua invariável superação. Portanto, aquelas mulheres estariam certas, caso eu não possuísse vocação para a pintura. E erradas, em caso contrário. De qualquer forma eu não havia pintado aquele quadro para elas, mas para aquele que era filho e marido delas. Este raciocínio, bastante claro, me acalmou, e eu consegui assim, são e salvo, estar em casa de volta naquela manhã.

Mas não demorou. Aproximava-se o final das minhas férias e lá estava eu, deitado no mesmo sofá, quando aquele mesmo rosto assomou sobre aquela mesma porta. “Seu Gonzaga mandou lhe convidar para almoçar com ele. Hoje. Ao meio dia”. Lembro bem desse domingo. Quando entrei na sala vi o retrato aposto, de frente, na copa ao lado, a mesa estava posta. Havia vinho sobre ela, taças de cristal e muita comida. Gonzaga ergueu-se para me receber e começou a falar. “Ontem, eu cheguei em casa às pressas, no final do expediente, pois precisava vestir uma roupa social para me fazer presente a um evento da Empresa. Lisete não se achava em casa, e eu comecei a procurar meus sapatos, sem encontrá-los. Nisso, me veio a ideia de verificar sobre o guarda-roupa, e após subir em uma cadeira, passei a mão lá por cima, e esta bateu em algo que caiu com grande barulho na parte de trás do guarda-roupa, desci da cadeira e fui ver o que era aquilo. Com aquele quadrado nos braços o meu susto foi enorme. Era meu pai, olhando para mim. A primeira coisa que fiz foi cancelar o evento social. Inquiri primeiramente minha mãe, que estava em casa. Passei ordens depois para os empregados, para que fossem procurar a Lisete nos lugares aonde ela costuma ir. Quando por fim me explicaram tudo, tim-tim por tim-tim, eu falei para as duas: vocês humilharam esse pobre artista. Este é o meu pai tal qual trago na memória esses anos todos da minha vida. Ele com suas bochechas, que a doença varreu de seu rosto nos anos da longa enfermidade que acabou com a vida dele, mas vocês rapidamente se acostumaram com sua imagem descarnada do final. Mas este é e sempre será o pai que tive e tenho, e vocês esconderam de mim o retrato fiel dele. Eu falei para Lisete: no meu aniversário você substituiu o quadro por um par de sapatos novos, dos quais, aliás eu estava mesmo precisando, mas foi esse mesmo par de sapatos que, antes mesmo de serem calçados pela primeira vez, acabaram me conduzindo para o esconderijo do quadro. Vamos agora fazer para esse moço, um pequeno almoço de desagravo. Acredito que ele possa nos perdoar”...


Alberto Lacet é artista plástico e escritor
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A palavra de ordem, no mundo atual, é pandemia. Esta palavra inclusive se ajusta à expressão “mundo atual”, pois, formada por pan e demos,...



A palavra de ordem, no mundo atual, é pandemia. Esta palavra inclusive se ajusta à expressão “mundo atual”, pois, formada por pan e demos, significa, literalmente, no grego, “o povo inteiro”, acossada que se encontra a Terra com o coronavírus. Certamente, a pandemia acabou por nos provocar uma pándeima, ou pavor completo, devido ao número grande de informações e desinformações desencontradas e disseminadas, muitas sem critério, pela imprensa e pelas redes sociais. Diga-se, em favor da palavra pandemia que, na sua origem, ela não tem qualquer relação com doença, significado que se desenvolveu após as várias pestes que se alastraram pela humanidade, desde o final do século XVI, a partir de 1580. Nesse período, uma doença oriunda da Ásia, em seis meses se espalhou pelos continentes africano, europeu e pela América do Norte. Registre-se que, nesse momento, a língua grega, assim como a latina, circulava nos meios eruditos e científicos, como uma espécie de coiné, língua comum aos frequentadores desses círculos.

Deixemos de lado a pandemia e vamos nos concentrar em pandêmia, palavra da mesma etimologia, cujo sentido, bem semelhante ao anterior, significa “comum ao povo inteiro”. Este segundo termo vem de Platão e se encontra no famoso diálogo Simpósio, mais conhecido como O Banquete. Em realidade, o título grego Symposion condiz mais com a situação encontrada no diálogo platônico: os convivas se reúnem para beber e conversar, mais do que para comer. Há até uma vã tentativa, no início da reunião, por parte do médico Eryxímaco, de se fazer um pacto para que se beba menos, tendo em vista que a embriaguez é um mal aos homens, e os que ali se encontram, inclusive ele próprio, não têm fôlego para bebida. Exceto Sócrates...

A festividade ocorre em casa do tragediógrafo Agáthon, que comemora, na oportunidade, a vitória de sua primeira tragédia, no concurso oferecido anualmente em Atenas. Toda discussão deve girar em torno de um elogio sobre o Amor, proposta feita pelo mesmo Eryxímaco, de modo a preencher uma lacuna deixada pelos poetas. Tendo sido aceita a proposta, Fedro é o primeiro a fazer o elogio ao Amor, construindo-o a partir de Hesíodo, vendo-o, portanto, como o mais antigo, mais honrado e mais senhorial dos deuses, cujo objetivo é conduzir os homens à virtude, areté, e à felicidade, eudaimonia, durante a vida e depois da morte.

O segundo discurso é de Pausânias que, de pronto, quer saber sobre qual Amor se deve fazer o elogio, porque ele divisa dois, na figura de Afrodite: a Afrodite Urânia, de origem hesiódica, que não tem mãe e é filha de Uranos, o Céu, e a outra, a Afrodite Pandêmia, de origem homérica, filha de Zeus e de Dione.

A diferença entre elas consiste em que todo Amor só é belo e digno de elogio, quando se ama para o bem, como o Amor da alma. O que ama mais o corpo do que a alma, ama só o macho e a fêmea. Se a Afrodite Pandêmia é um amor vulgar, por amar só o corpo, a Afrodite Urânia desconhece o impulso brutal que leva ao sexo pelo sexo. Pausânias estabelece, então, que o que faz o Amor belo são as práticas belas; o que faz o Amor feio, são as práticas feias, devendo o homem amar para a virtude, para o bem e para a justiça, tudo devidamente regido pela Afrodite Urânia. Jamais devemos buscar o Amor por interesse monetário ou por poder político, o que, por si só, é vergonhoso. É perfeitamente belo ceder ao Amor, quando se faz isto por virtude. Os Amores fora dessa beleza são da ordem da Afrodite Pandêmia, baseados na vulgaridade e na baixeza dos instintos, que nada trazem para a elevação da alma.

É quando a pandemia se encontra com a Pandêmia.



Milton Marques Júnior é professor, escritor e membro da APL E-mail

O que é o sonho, senão o desejo imponderável de alçar voos? O gesto desafiador em desenhar infinitos horizontes. A incontida voz que não de...

juca pontes joão pessoa paraíba por do sol literário

O que é o sonho, senão o desejo imponderável de alçar voos? O gesto desafiador em desenhar infinitos horizontes. A incontida voz que não descansa enquanto não alcança os amplos ventos do tempo.

Bem sei, amigo Roberto, da sua dor ou do seu desamor ao efêmero. Mas também tenho ciência de que a sua boa-fé, seu enorme entusiasmo e seu espírito empreendedor, mais do que tudo, defendem o amor e compreendem o valor do bem comum.

A sua esmerada crônica, a todo tempo, a nos oferecer inúmeras linguagens e outras iluminadas paisagens. A palavra, a seguir plena, como se fosse alvas águas de um rio. Ela nos conforta, nos fortalece, diante desse enorme vazio. Somente o tempo é mesmo capaz de nos fazer cruzar a linha do deserto, até chegar ao outro claro lado do azul.

A crise do coronavírus tomou de assalto o mundo inteiro e acabara de acometer mais uma de suas vítimas. O anúncio do fechamento do Correio da Paraíba apanhou a todos de surpresa. Qual uma pedra transversa, bem no meio do caminho. Assim, desse jeito. Feito pesado dardo, a atravessar o coração da gente.

Uma história de suor e lágrimas, de afeto e mãos dadas. De alento e talento, de vontade e sentimento. Permanentemente, erguida e vislumbrada por singulares ciclos ou estações, que tive a honra, num olhar mais próximo, de presenciar e por merecer. Fosse na leitura impressa de suas crônicas, fosse na troca de ideias para a edição, que resultou na reunião de parte delas, em seu primoroso livro "Como penso".

Iniciaria meus dias no Correio, com florescida lavoura de edições especiais, até o dia de reger a editoria de arte de O Momento, em sua nova fase, na década de 90. De volta aos bons ventos gráficos do Correio, nesses anos mais recentes, em convite acenado por Beatriz Ribeiro e encenado pelas mãos de Gerardo Rabello, ofereci novo projeto editorial à revista Premium, cria e menina dos olhos do jornal.

Mas o tempo, agora, nessa hora, é de confinamento. Distante e, ao mesmo momento, ausente do cotidiano e acolhedor ambiente da redação. Sem mais crônica a escrever, sem mais pauta a cobrir, sem mais conteúdo a publicar. Tempo de ficar em casa, de olhar mais para o outro. No lugar onde todos possam cuidar de todo mundo.

Há um tempo de sonhar, outro para acordar. Há um tempo de educar, outro para amar. Há um tempo de desaprender, outro para reaprender. Há um tempo de desconstruir, outro para reconstruir.

Sem esquecer, em instante algum, qualquer que seja o tempo, ele se assemelha ao sonho de quem ama as esplêndidas tintas bordadas sobre as cores do papel jornal. Imenso e intenso sonho do exercício diário da escrita e nossa maior fonte de inspiração. Entre o olhar de tantos, sobre o mar de todos.


abelardo jurema filho
Abelardo Jurema Filho
De Afonso Pereira a Gonzaga Rodrigues, de Paulo Brandão a Martinho Moreira Franco, de Ascendino Leite a José Fernandes Neto, de Luiz Augusto Crispim a Rúbens Nóbrega, de Adalberto Barreto a Chico Ferreira, de Jurandy Moura a Carmélio Reynaldo, de Antônio Hilberto de Carvalho a Carlos César, de Biu Ramos a Fernando Moura, de Abmael Moraes a Alarico Correia Neto, de Carlos Romero a Abelardo Jurema Filho.

De Lena Guimarães à Sony Lacerda, de Antônio Vicente a José Euflávio, de Cristovam Tadeu a Pessoa Júnior, de Hélio Zenaide a Agnaldo Almeida, de Deodato Borges, pai e filho, a Chico Noronha, de João Manoel de Carvalho a Nonato Guedes, de Nonato Bandeira a Assuero Lima, de Angélica Lúcio a José Nunes, de Andréa Batista a Jãmarri Nogueira, de Gisa Veiga a Carlos Aranha.


walter galvão joão pessoa
Walter Galvão
De Silvana Sorrentino a Germano Romero, de Walter Galvão a José Marques, de Hélder Moura a Linaldo Guedes, de Fábia Dantas a Fábio Cardoso, de Tânia Paranhos à Paula Gentil, de Walter Santos a Wellington Farias, de Edson Veber a Augusto Magalhaes, de Edileide Villaça a Heron Cid, de José Alves a Edmilson Lucena, de Francisco França a Jorge Rezende, de Adriana Rodrigues à Martha Ribeiro, de Celino Neto a Anchieta Maia.


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Heron Cid
De Renato Félix a André Luiz Maia, de Amanda Carvalho a André Cananéa, de Marcela Sitônio a Land Seixas, de Maria da Guia a Gilberto Lopes, de Rafael Passos a José Carlos dos Anjos, de João Costa a Edinho Magalhães, de Lílian Moraes a Mr. K, de Adelson Barbosa a Caio de Lima, de Marianna Vieira a George Dellameida, de Ricardo Ramos a Adriano Franco, de Manoel Pires a João Damasceno, de Eliz Monteiro a Diego Nóbrega.

E tantos outros e outras, homens e mulheres, profissionais dedicados e abnegados. Sob o ânimo habitual e o esforço comum para fechar os cadernos do jornal, em 66 anos de circulação, concebiam e conseguiam levar à frente tamanho e afetivo batente.

Ao longo de toda uma vida, entre tristezas e glórias, o sonho de Teotônio Neto, por vezes, permanece na voz incontida do seu olhar, amigo Roberto, a deixar sua marca expressa e impressa sobre as folhas do tempo.


(*) Ao amigo Roberto Cavalcanti e a todos aqueles que conservaram, por largos anos, o hábito de tornar o café da manhã em deleite folheado pelas páginas do jornal.


Juca Pontes é jornalista e escritor
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Os contos têm muito a ensinar sobre costumes e valores da sociedade moderna. É o caso de uma fábula escrita pelo dinamarquês Hans Christian...


Os contos têm muito a ensinar sobre costumes e valores da sociedade moderna. É o caso de uma fábula escrita pelo dinamarquês Hans Christian Andersen. Ele narra que existia um rei muito vaidoso que contratou uns alfaiates para prepararem uma roupa que exaltasse toda sua vontade de exibição diante dos súditos. Espertos, os alfaiates disseram para ele que costurariam uma roupa mágica, feita de ar.

Então o monarca embusteiro foi desfilar com os novos trajes em praça pública. Seus súditos, anestesiados pela subserviência, aplaudiam sua passagem e elogiavam a roupa, porque estavam cegos pela idolatria. Até que uma criança enxergou o óbvio: o rei estava nu. E gritou revelando o que estava percebendo. Na verdade, a exclamação do menino representava o desejo de todos. E encorajou a adesão dos demais a admitirem a verdade, até então ignorada. Realmente o rei estava nu.

Na vida real esse conto se repete. Muitos “reis” passeiam com trajes que as pessoas imaginam decentes, em razão de estarem como que hipnotizadas. De repente alguém prova que o “rei está nu” e acorda a consciência coletiva. E todos percebem a sua nudez que muitos sequer ousavam enxergar antes.

A esperteza desmascarada, o imaginário da honestidade descontruído, a aura de incorruptível desaparecendo, a incompetência sendo explicitada, a falsa seriedade desmoronada. O “rei”, ao se ver nu, recolhe-se aos seus aposentos para tentar se esconder. Porém, a opinião pública já descobriu que a majestade é uma farsa. O reinado se desfez. Os conceitos se desmoralizaram. Afinal, “o rei ficou nu”.

O conto trata muito bem da vaidade humana. Notícias manipuladas concorrem para a construção de enganosas aparências. O séquito real se divertindo com os aplausos dos empobrecidos bobos da corte. O grito do garoto, no entanto, fez despertar a população para a sombria realidade. A multidão, até então apática, entende que é chegada a hora de reagir. Não pode mais continuar sendo vítima do ludibrio. O desfile da hipocrisia tem que acabar. As bizarrices tornam-se intoleráveis. Os cegos por conveniência diminuem em quantidade. O “rei nu” não encoraja mais o entusiasmo dos seus antigos defensores. O espetáculo constrangedor de sua nudez inibe os que antes o seguiam apaixonadamente. Quando o “rei fica nu”, seu reinado está prestes a ruir, não tem como se sustentar.



Rui Leitão é jornalista e escritor E-mail

Meados dos anos 60, no Hospital São Vicente de Paula, em João Pessoa, no final da manhã a Irmã Rosele entra pela enésima vez no apartam...


Meados dos anos 60, no Hospital São Vicente de Paula, em João Pessoa, no final da manhã a Irmã Rosele entra pela enésima vez no apartamento do Comendador. Ela dá apoio logístico para uma verdadeira operação de guerra: a cirurgia do Comendador.

Há três dias se desenrola um drama naquele quarto: o velho Comendador, nos seus oitenta anos, por conta de uma prisão de ventre fora internado pelo Dr. Velho Mestre (então na flor da idade): uma semana sem evacuar!

Lá na Usina, os palpites eram os mais variados possíveis: uns diziam que era ventusidade; outros achavam que era um nó na tripa... Todos, porém, concordavam numa coisa: o Comendador não voltaria mais para a casa grande.

O quadro piorou muito, o velhinho ictérico no leito mais parecia uma cenoura, a barriga parecia um zabumbo, crescida e distendida. Já não saía mais nada, nem um pum! Vicente Ferrer, da funerária, muito amigo da família, já aparecera por lá.

O Dr. Velho Mestre estava bastante apreensivo: tentou tudo, com os parcos recursos medicinais disponíveis, àquela época. Litros e mais litros de soro; já era o décimo enema que o paciente tomava.

O Dr. Achiles Leal, jovem e brilhante cirurgião, foi chamado, e depois de ouvir a história clínica e examinar o paciente; de ver os exames realizados por Dr. Maurílio; e de ver o raio-x simples de abdômen feito no leito por Dr. Esmerino, concluiu tratar-se de um caso grave de obstrução intestinal, e que só se salvaria se fosse operado. Aguardava apenas o parecer do cardiologista, para levar para a sala.

Acontece que no final da manhã o Dr. Vanildo, após auscultar o coração arrítmico, auscultar os subcrépitos das bases dos pulmões, palpar os pulsos filiformes, tentar palpar o fígado, examinar as escleróticas, visualizar a cianose que já começava a se fazer notar no leito ungueal, observar a cardiomegalia no raio-x de tórax, e analisar o eletrocardiograma (um dos primeiros realizados na Paraíba!), enfim chegou a um diagnóstico, e a um prognóstico sombrio:

“Paciente de alto risco. Se for operado, tem elevada chance de não sair vivo da sala.”
Chororô geral, entre a esposa e as filhas do Comendador. E um banho de água fria no cirurgião, que tinha certeza de que salvaria o paciente.

Porém ao longo da tarde o paciente piorou tanto que os médicos assistentes realizaram uma junta médica, e chegaram à conclusão: ou opera ou morre sem fazer nada. Comunicada, a família autorizou a operação.

Fim de tarde na São Vicente, o corredor cheio de médicos ilustres e amigos: os jovens e inseparáveis urologistas Dr. Jacinto e Dr. Osorinho; Dr. Oscar de Castro discretamente contando uma piada a Dr. Humberto Nóbrega (que segurava o riso como podia); Dr. Plínio Espínola preocupado com o amigo; Dr. Lauro Wanderley e Dr. Danilo Luna (era o obstetra da esposa do Comendador); os pediatras Dr. João Soares e Dr. João Medeiros; o irreverente Dr. Arnaldo Tavares, só para citar alguns.

No Centro Cirúrgico, Dr. Achiles já se lavando e Dr. Almir Lopes preparando os gases para a anestesia. O maqueiro já estava na porta do quarto, para levar o paciente para a sala de cirurgia.

Logo após a saída do Padre Zé Coutinho, Dr. Velho Mestre pela última vez tomou o estetoscópio e auscultou o abdômen, na esperança de ouvir ruídos hidroaéreos. Pois isto significaria que o trânsito intestinal se refizera, tornando dispensável a cirurgia de altíssimo risco. Debalde: silêncio fúnebre.

Desolado, o Dr. Velho Mestre desabou na cadeira ao lado, e na vã tentativa de evitar a cirurgia, fez um último apelo ao paciente:

“Nêgo, dá um peidinho pro papai, nêgo, dá!?!”

* Trata-se de uma obra de ficção. Fatos e mitos se mesclam, tornando qualquer semelhança uma divertida coincidência.


José Mário Espínola é médico e escritor E-mail

Ele veio qual capim numa fresta de asfalto. Saiu verdejante em meio à brutalidade daquelas pedras pretas, sob o caustic...


Ele veio qual capim numa fresta de asfalto.

Saiu verdejante em meio à brutalidade daquelas pedras pretas, sob o causticante calor que só o asfalto produz e suporta. Saiu como vida que se vinga da propensa morte, desafiando mesmo os textos sagrados que pregam terra fértil para semeadura. Verdejou porque buscava o Sol, desejava a luz, seu alimento único.

Assim é como eu te vejo. Algo raro, mas não perecível. Sinto em ti uma espécie de seiva que me nutre e me refresca o tempo árido da vida.
Assim é o amor entre amigos. Não é o ardor da falta, o medo do não ter. É um devir sempre-ter, melhor, sempre-ser.

O amor entre amigos é rizomático. Eclode em terrenos inusitados e ludibria a razão. Mil palavras quisesse eu agora tê-las no encontro do branco papel e a marca indelével da tinta para dizer sobre o amor entre amigos.

Talvez fosse o devir-amizade um labirinto. Portas e entradas-saídas que talvez nunca delas se saia. Mas não é espanto e nem gaiola. É um ritornelo, um eterno vir-a-ser de tantos sentidos e afetos sempre-ditos, jamais-ditos. Nas alamedas nunca se enluta o amor, pois que brota sempre. Emerge em espaços de encontros. O amor-labirinto é o sempre-encontro.

Talvez fosse o devir-amizade um chuva fina e molhadeira. Daquelas que caem sei lá de onde, em forma de gotículas quase invisíveis, mas que nos ensopam quase à alma. Chuvinha mansa e criadeira. Sem trovoadas e raios rasgando horizontes. Não. Nada de trovejos. Apenas um zunido de coisas que nascem, como se o som dos brotos rasgando a terra pudesse ser ouvidos na sua sinfonia de vida que nasce. O amor-chuva fina é o ato da criação.

Talvez fosse o devir-amizade um eco. Repetições de últimas frases, às vezes desconexas e vãs. Aqueles de buracos abissais, de cânions que nem se sabe onde findam. Aqueles das catedrais góticas, de sons que ricocheteiam seus arcos. O som depois dos mantras nos sagrados templos. O amor-eco é o som do que já foi dito.

Talvez fosse o devir-amizade uma ponte. Quando se dá este encontro entre um Eu e um Outro, diluem-se ambos. Perco-me de mim no outro. Encontro meus vazios no outro. Dispo-me na apresentação ao outro, a este outro que talvez seja um Eu reconfigurado. Reflexo de mim, despido de mim, pois no encontro amoroso, cedo o que me torna eu mesmo em nome de um nós, de um enovelamento de si sobre o outro. Entre o Eu e o Outro nada mais resta que só o vazio. Mas há a ponte, o intermédio. O amor-ponte é a nudez dos afetos.

Reviro caixas em busca de cartas que nunca escrevi. Reviro-me à noite, insone e ensopado de suores que nem me pertencem. Assunto o dia vago, buscando sei-lá-o-quê.

Que me falte o pulso dos homens.
Que me falte o pulsar das mulheres.
Mas não me faltem os amigos.
Que afoguem os mares de sonhos.
Que me traguem os vinhos mais raros.
Que, enfim, se abram minhas eclusas e que eu, taciturno e pálido dentro das vazias noites, me escorra em rios de corredeiras sem mares.

Mas que não me falte o devir-amizade. Amor-amigo é amor que nunca seca.


Adriano de Léon é doutor em ciências sociais e professor E-mail

Estamos confinados. Pelo menos quem pode. Mas não há como esquecer dos inúmeros semelhantes que estão tentando ajudar a salvar o planeta da...


Estamos confinados. Pelo menos quem pode. Mas não há como esquecer dos inúmeros semelhantes que estão tentando ajudar a salvar o planeta das consequências da pandemia. Em áreas e setores essenciais à vida, à ciência, à saúde, eles prosseguem no dever inerente às profissões que abraçaram. Lixeiros, médicos, enfermeiros, pesquisadores, entregadores, operários, motoristas, cozinheiros, caminhoneiros, funcionários de hospitais, de farmácias, de supermercados, padaria e outros tantos estabelecimentos que permanecem suprindo e atendendo à humanidade alarmada… E Sartre ainda disse que “o inferno são os outros”. Ai de nós sem esses outros eus de nós mesmos!

E os trabalhadores autônomos, ambulantes, picolezeiros, pipoqueiros, amendoinzeiros, quitandeiros, que ganham em um dia o que comerão no próximo? Que prejuízo, que situação...

Não nos lembramos de ter vivido algo parecido, com tal repercussão na vida e no cotidiano, pessoal, profissional, local e mundial. E olhe que já vivenciamos algumas situações que preocuparam o mundo, mesmo quando viajamos em época de gripes suína, asiática, h1n1, assim como durante ou logo após episódios de poeira exalada dos vulcões da Islândia, dos Andes, terremotos na Nova Zelândia, ondas de terrorismo, mas nada se compara com o que ora nos deparamos.

Esse corona nos tirou literalmente de letra, redundância em propósito! Uma freada brusca no ritmo da vida, sobretudo a urbana. Sim, pois fico pensando como estarão os cenários dos alpes austríacos, das ilhas de Kara, de Barrents, das praias de Beaufort, de Baffin, do lago Yessey, dos campos de neve da Sibéria?... Será que a audácia do corona chegou a tanto? Bem, eles têm o paraíso. Voltemos à realidade...

E nós, como estaríamos se não fossem os outros, em Jean Paul? Como agora grita alto a solidariedade!... Como emerge a importância do conviver, do trabalhar, do usufruir aquilo que a humanidade fez e faz por nós, com tanto trabalho e dedicação.

Como brilham os livros nas prateleiras, as lembranças de outrora, as bibliotecas de música e filmes. Como cantam na memória as ternas amizades, entre elas o abraço, o afago, doce e meigo de nós outros, dos que Sartre num rompante de estresse ou agonia jogou para o inferno. Nem Dante chega a tanto...

E a Internet? Como esse canal se faz tão essencial. Como estaria a população, de todas as classes, sem as redes que interagem, que infundem e confundem?...

Mas há tanto o que fazer... Por nós e pelos outros. Por que não telefonar para aquela tia idosa, uma amiga de seu tempo, trocar umas palavras, uma ideia otimista... Está na hora de ajudar, seja orando ou meditando, emanando vibrações a criar na atmosfera o ambiente favorável de inspirada harmonia. Nem de longe se imagina como assim auxiliamos no caminho da evolução...

Mas há tanto o que fazer... Tantas portas se abriram para a fraternidade. São ações e doações que se expandem de mãos dadas em busca do alívio aos mais necessitados. Adiante, contribua, faça tudo que é possível com os dons que lhe couberam. Escreva, contribua, divulgue o que faz bem, esconda o que não faz. Semeie a esperança, multiplique o otimismo, a paz e a concórdia.

Um dia, lá na frente, haveremos de lembrar da maneira como agimos. Se foi p’ro bem comum ou pra semear discórdia. Se torcemos pelos outros ou por nossos interesses. Se unidos estivemos ou vibramos pelo inferno, que um dia abrigará os que dele usaram ou fizeram acreditar.

Não se engane, tudo passa. O corona, a quarentena e as mazelas que vierem. Só não passam as lembranças que estarão na consciência. De culpa, de remorso, ou de paz e gratidão por si e pelos outros.


Germano Romero é arquiteto e bacharel em música E-mail

Já faz tempo que o tempo me cobra Versos que há tempos ando devendo Faltava tempo pra engenhar tal obra Como se tempo vivesse eu perd...


Já faz tempo que o tempo me cobra
Versos que há tempos ando devendo
Faltava tempo pra engenhar tal obra
Como se tempo vivesse eu perdendo

Velho inspirador tempo que não para
É dele que o poeta espera a jóia rara
Garras que me imprimem à face cicatrizes
Nevando cabeças com alvas matizes

Operoso o tempo em sempiterna lida
Milagroso mestre em diuturnas curas
Dligente em sarar feridas das criaturas
Paciente a escutar os horrores da vida

Dias irascíveis em que animal me sinto
E esqueço pelo ódio o passado ancestral
Se a ele dou tempo afasto o vil instinto
Pois pra cada coisa há o tempo divinal

Tempos demorei pra me achar inteiro
Até concluir que meu sangue é tinteiro
Registrando tempos de dor e alegria
Tempo que meu Deus me permitiu poesia

Andei cinco quadras neste passatempo
À caça da rima pra fechar mais nobre
Pois o próprio tempo dava rima pobre
Vou pedir ao Pai que me dê mais tempo



Stelo Queiroga é engenheiro e poeta E-mail

No mês de julho de 1922, o Engenho Baixa-Verde estava com as enseadas cobertas de canaviais. Os paus-d’arco floridos infestavam as abas das...


No mês de julho de 1922, o Engenho Baixa-Verde estava com as enseadas cobertas de canaviais. Os paus-d’arco floridos infestavam as abas das serras, o flamboyant coloria o terreiro e à noite o vento zunindo na cumeeira da casa grande testemunhava o nascimento Hermano José.

Engenho Baixa-Verde
O menino cresceu sentindo o cheiro da terra, do bagaço da cana e o perfume das flores, saboreando doces frutas e olhando a mata quase escondendo a casa grande e o que restava da senzala do engenho.

Muita coisa ali mudou desde o seu nascimento, mas a terra se mantém engalanada, pássaros em menor intensidade, e em torno da casa adormecida o vento continua soprando por entre as serranias cobertas com rala vegetação.

O poeta permanece no meio de nós por meio da sua pintura, porque preservou o olhar para a paisagem de Serraria, que dividia com Caiçara, outra cidade onde viveu nos primeiros anos de vida. Tudo o que observou, ele transportou para os quadros pintados no decorrer de nove décadas de vida.

O trabalho dele está abalizado na beleza poética captada pelo olhar místico para as inspiradoras paisagens da infância e da adolescência. Numa referência a um poema, podemos dizer que artista como ele “só se tem uma vez”. A arte é que fica. Sua arte perpetuará sua presença no meio de nós. Ele está na arte que concedeu, por isso eternamente ficará em nossos corações.

Hermano José
O centenário do seu nascimento se aproxima, portanto é bom começar a pensar no que fazer, afinal, sua contribuição para as artes plásticas e a cultura da Paraíba foi inolvidável. Inquieto, incitava o debate pela preservação de nosso patrimônio imaterial e arquitetônico.

Uma bonita celebração deve ser preparada, fazendo do engenho palco de manifestações alusivas ao seu nome. Ao Estado caberá capitanear o elenco de eventos em torno de Hermano José, num reconhecimento ao trabalho realizado para tornar a Paraíba ainda mais conhecida por meio da arte.

Podemos dizer que Hermano tinha o olhar ao transcendental, como que buscando respostas para perguntas que inquietam muita gente.

Tinha consciência do seu papel na preservação da vida e na construção da fraternidade. Percebia que as pessoas destruíam-se, destruindo o ambiente onde vivem, mas achava que ainda havia tempo para recuperar o mal causado à Natureza, de modo que a nossa geração “tivesse a condescendência para com as gerações futuras”.

Para nos redimir do silêncio em torno do seu trabalho, busquei a citação dele quando disse que “basta olharmos as florestas, os rios, os mares e o céu, e teremos parâmetros para conhecermos nossos limites”.

Seu mundo foi construído na paisagem agreste de Caiçara, mas em Serraria captou a paisagem que alimentou sua vida. “O Baixa-Verde era o lugar dos aromas, das cores e da alegria”.



José Nunes é cronista e membro do IHGP
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A mediocridade é um comportamento humano que encontramos em todas as classes sociais e faixas etárias. São pessoas que aceitam essa postura...


A mediocridade é um comportamento humano que encontramos em todas as classes sociais e faixas etárias. São pessoas que aceitam essa postura como opção de vida, porque desacreditam do seu próprio potencial. Possuem como característica a falta de iniciativa em tudo que fazem. Não têm pensamento voltado para a criatividade, são desprovidos de talento, não se dão valor. Fogem das oportunidades de serem autônomas.

A mediocridade estimula procedimentos que resultam da vontade de imitar os outros, acreditando que assim se nivelam aos que se destacam. Os medíocres adoram uma rotina, em razão do medo de encarar o diferente. Falta-lhes o senso das coisas, daí preferirem acompanhar a compreensão e o raciocínio dos que elegem como exemplos de conduta.

Quem tem a tendência a obedecer sem questionar, será sempre um submisso, subalterno, dependente, nunca será um líder. Haverá permanentemente de seguir um comando, jamais terá capacidade de dirigir, ordenar, mandar. Revela-se um medíocre.

Interessante que a mediocridade incentiva as pessoas a procurarem estar na moda, dando-lhes a impressão de que assim se tornam iguais aos que se sobressaem de alguma forma. Vivem das aparências. Amam o supérfluo. Valorizam as insignificâncias, desde que induzidas a isso.

O reinado da mediocridade é povoado por indivíduos que não controlam seus próprios destinos. São guiados, não se permitindo darem encaminhamento por espontânea decisão ao curso de suas vidas. O pouco lhes contenta, não têm ambição. Têm receio de irem em busca do crescimento pessoal.

Precisamos ter cuidados na convivência com os medíocres. Eles tentam nos puxar para o seu grupo. Todo medíocre gosta de se ver espelhado noutro. Não se incomoda em ser apenas mais um na multidão, desde que se veja em nível de igualdade com os demais. O medíocre é, portanto, uma péssima companhia, com ele não aprendemos nada de bom.


Rui Leitão é jornalista e escritor E-mail

Para escrever em um livro de páginas azuis é preciso usar tintas imaginárias, ter em mente palavras de algodão doce, feitas do açúcar mai...


Para escrever em um livro de páginas azuis é preciso usar tintas imaginárias, ter em mente palavras de algodão doce, feitas do açúcar mais cristalino, e desejar capítulos de sonhos (o doce de padaria). A receita é infalível, uma delícia.

O lápis precisa de recarga de sorriso, de preferência de criança correndo no meio do jardim. A métrica exige a atenção dos olhos dos amantes, e que venham com suspiros e canções, para acalmar o coração acelerado. E sim, as letras sairão quando as pálpebras estiverem encobrindo a visão, isto para garantir a precisão das rimas.

O melhor momento é que a escrita seja à tarde, com o Sol um pouco antes de se dirigir e se reclinar para beijar o horizonte para desejar boa noite. Ah! À noite, nós mortais não podemos escrever no livro de páginas azuis porque dá lugar a outro, cujos espaços foram pintados por Deus com pontinhos faiscantes.

As páginas azuis do livro do dia, elevadas ao teto do universo, exalam um cheiro inconfundível de algum momento da infância. Aquele que vem à mente sem que consigamos identificá-lo, mas nos é familiar e remete aos primeiros anos de vida com os pés no chão, vento no rosto, chuva nos cabelos, calor e poeira na corrida de olho na linha que conecta a pipa (papagaio) ao céu. Quando nossos pulmões parecem incansáveis, nossas pernas as mais velozes, nossos braços os mais ágeis e fortes.

Cada letra requer caligrafia perfeita, contorno tipo nuvens "cumulus", popularmente chamadas de "nuvem carneirinho". Fico com a segunda opção, seria o cúmulo se negar a pensar nelas como novelos de lã. Recheadas de delicadeza, garantem maciez na escrita, juntas, formam palavras saborosas como brigadeiros comidos, digamos, a qualquer hora.

Ah! Nas páginas azuis registramos as histórias para serem impressas em máquinas que vão virar chuva para cultivar as terras férteis, para matar a sede, quando estiverem cheias de frases feitas de caramelos, que vão se juntando com gostosura.

Seus personagens? Sim, todos bem-amados. Prontos para misturar a espuma de barbear com a da cachoeira que mergulha do alto, depois de lá em cima tocar o azul inalcançável, apenas ultrapassável. Sim, pois as páginas se desfazem ao contato das mãos e dão lugar ao salto para fora da bolinha em que vivemos.

Ali, o escriba das letras que em fim de tarde saltam de brancas algodão para alaranjadas é feliz ao ser chamado carinhosamente de 'bobo' e até mesmo 'idiota'. Ele sabe que ter a capacidade de decifrar a grafia das páginas azuis é possível para todos, mas só poucos alcançam as páginas e conseguem redigir e acrescentar novos capítulos. Geralmente as crianças o fazem com mais desenvoltura, mas, geralmente, perdem a capacidade a medida que ganham altura e, teoricamente, se aproximam das folhas de azul celestial. Quanta ironia!

E no livro de páginas azuis o final, o "The End", será sempre sinônimo de recomeço, de reviver, de reescrever. Garantia de volta do algodão doce acompanhado de um sorriso. Apenas um hiato para mais uma aventura, nunca um desfecho, porém um salto para mais alto, um afastamento para um abraço.


Clóvis Roberto é jornalista e escritor E-mail

Meu Mundo-Sertão é repleto de mistérios, de belezas ocultas que se descortinam devagar, apenas para aqueles mais sensíveis, que não têm pr...



Meu Mundo-Sertão é repleto de mistérios, de belezas ocultas que se descortinam devagar, apenas para aqueles mais sensíveis, que não têm pressa, que se deixam levar. Fui para o Mundo-Sertão, desci a boca do Cariri, através da PB 138 (por Catolé de Boa Vista). Não tive a sensação tão esperada de após passar pelo distrito de São José da Mata e na entrada do sítio Tambor, a 704 metros de altitude, descer aquele corredor margeado pelas serras do Maracajá e do Engenho até a Praça do Meio do Mundo. É a partir dali que me sinto adentrar neste mundo mágico, repleto de sortilégios, mas não tive aquela costumeira e a esperada sensação.

Não fui pelo caminho habitual através da rodovia transamazônica porque desejava trilhar pela estrada que nos conduz a Catolé de Boa Vista, e em seguida ao município de Boa Vista, já na BR 412. Esse caminho já fiz algumas vezes, mas totalmente no asfalto ainda não. Segui. Estava na companhia dos amigos historiadores Erik de Brito (Neto) e Josemir Camilo que atenderam prontamente ao meu convite de participar da Reunião Ordinária do Instituto Histórico e Geográfico de Serra Branca em comemoração ao aniversário de 59 anos da cidade.

Partimos ao entardecer. Na boquinha da noite passávamos pelo tranquilo distrito de Catolé de Boa Vista; mais à frente, após passarmos por Boa Vista, já a caminho de São João do Cariri, vimos, como um sinal, um clarão, um relâmpago que parecia ser lá pelas nascentes do Rio Paraíba, em Monteiro. Minutos após sentimos um forte cheiro do mato, marmeleiros e juremas pretas parece que haviam entrado pelos dutos do ar condicionado nos inebriando, como é possível? Neto e eu nos olhamos, eu sorri. Aquilo era só mais um sinal da natureza chamando a contemplá-la. Desliguei o ar, desci os vidros, diminui a velocidade. Noite de lua cheia! Mata, serrotes, rodovia, tudo iluminado. Aproveitando a soledade de nosso carro, desliguei o farol. Nada de artificial em genuínas sensações e sentimentos. À margem direita da estrada, na famosa muralha do meio do mundo cacheada de blocos rochosos, o alumiar da lua beijava o contorno das serras, dava forma aquele horizonte, um sol de prata “prateando a solidão”, cenário mágico, luar do Mundo-Sertão.

Neto e eu nos deslumbrávamos a cada momento, contemplávamos as estrelas, vi a ursa maior, um êxtase difícil de quantificar. Naquele momento acho que o Prof. Josemir Camilo, que só observava o nosso movimento, pensava que aqueles garotos tinham endoidecido, talvez seu habitué metropolitano não permitira tal desfrute. Ora, já dizia Pedro Nunes, quando se aprende a amar o Mundo-Sertão, chega dá gosto pisar em cima dele, sentir o chão estremecer, mergulhar em seus mistérios, e assim fazemos quando a vida nos leva pr’aqueles rincões.

Em São João do Cariri, paramos em Roque Santeiro para comer uma fatia de bolo de mandioca com queijo coalho (dali mesmo!) bem assado, acompanhado de café puro e forte. Sentei na primeira mesa e, vez em quando, fitava ao longe as curvas do rio Taperoá, refletindo a lua e nos provendo uma brisa úmida e fria, vinda do sul.
Cheiro de terra molhada anunciava chuva próxima…
Chegando a Serra Branca, a lua faceira cintilava na Serra do Jatobá - a Serra Branca. Um espetáculo, aquela cena. Já na cidade, chegamos ao destino, a Escola Vasconcelos Brandão. Professor Zé Pequeno, na calçada a nos esperar, nos chama: – Thomas, vamos entrar, tá chuviscando!

Um fino chuvisco, sem a densidade de uma neblina, não incomodava, ao contrário: – Zé, vamos prosear por aqui, contemplar o luar, esse chuvisquinho p’ra banhar nossa alma, e ali conversamos um pouco... ao mesmo tempo que via o movimento ao longe, nos arredores da praça, afinal era um sábado e, além do mais, festivo para Serra Branca.

“Não há, oh gente, oh não, luar como esse” do Mundo-Sertão...


Thomas Bruno Oliveira é historiador e jornalista / e-mail.

Chegar em Londres para mim é uma experiência mais afetiva que geográfica. Reporto-me aos tempos dos meus doze anos de idade e da Cultura I...



Chegar em Londres para mim é uma experiência mais afetiva que geográfica. Reporto-me aos tempos dos meus doze anos de idade e da Cultura Inglesa (a primeira, uma casinha na Av. D. Pedro I), quando e onde comecei a estudar Inglês, com Mr. Barlow e D. Nair. Como não re-viver a primeira vez que vim, ver e falar de perto, a língua que aprendia nos livros e com os Beatles nos anos 60! E já foram tantas vezes! E a vez maior, quando morei na Universidade de Warwick em 1986/87. Naquela experiência, tantos sentimentos contraditórios. Uma parte de mim, cosmopolita e querendo conhecer os mundos. Outra parte, tendo que lidar com as escolhas! O difícil caminho das mulheres e das mães. Eu fiz as minhas. E assumi as consequências. As saudades também. Chegar em Londres é sempre um susto. Uma sensação de dejá vù . De outros tempos da juventude, agonias e felicidades tantas.

Perguntaram-me o que dessa vez, eu queria ver em Londres? Nem eu sabia. Nunca quero muito. Simplesmente estar nessa cidade. Queria perambular. E foi o que fiz: Almoçar no Borough Market, ouvindo aquele Senhor com um sotaque esquisito vendendo morangos frescos, no meio daqueles tons ocres do mercado, que parecia cenário de filme, e/ou dos romances de Charles Dickens. Depois caminhar pelo Bankside, avistando a Torre de Londres de um lado, a paisagem cinzenta (não seria Londres se assim não o fosse). Passar em frente do Globe Theatre, me lembrar de Vitória Lima e as aulas sobre Shakespeare. Seguir, por entre pubs, turistas, até chegar a Tate Modern. Esse, meu lugar favorito das artes. Uma exposição especial de Picasso (The EY Exhibition Picasso 1932 - Love Fame Tragedy), e ficar deslumbrada novamente com sua obra e esse ano específico chamado de “ Year of Wonders”. Vi montes de crianças pintando pessoas com olhos dis-formes. Criança que visita museu, com certeza terá outros olhares/ângulos quando adulto. Penso. Do sexto andar, do café, a vista do Tâmisa. E aquele cenário de uma Londres futurista com seus novos prédios gigantes: O Shard (em forma de pirâmide), o Gerky (em forma de ovo), e o Walkie Talkie (um tijolo!). O novo se contemporizando com a tradição da arquitetura gótica de Westminster e das Houses of Parliament.

Atravessei a Millenium Bridge. A ventania quase leva minha sombrinha com as cores da bandeira inglesa, que havia comprado na London Eye, por entre turistas outros. Uma moça cantarolava com sua voz delicada. Mais ventania. Mas como resistir ao Tâmisa? Seguia, e numa das pontes, um latino tocava “Despacito” na sua sanfona. O eco daquela música, varreu de mim qualquer preconceito. Parei. Ouvi. Dei-lhe uma moeda. E me emocionei. Quase dancei! Depois, ao longo do Queen´s Walk avistava o London Pride e os barcos naquelas águas caudalosas. Quase pude ver uma tela de Turner e seus mares escuros. O Big Ben em reforma estava vestido, se escondia de mim, mas a ponte de Westminster, com seus Double Decks circulando, tudo me remetia aos sonhos de menina e a Cultura Inglesa. No meio do caminho vi uma estatua de Sir Lawrence Olivier, um edifício da London School, com o nome de Virginia Woolf, e as aulas de literatura Inglesa também vinham pelo caminho. Mrs Dalloway passeava!

Mas sou fascinada por mercados. E Londres é a cidade dos mercados: Notting Hill/Portobelo, Peticoat, Broadway Market, Borrough Market, Camden Town e tantos outros. Gosto de circular por esses lugares no meio da rua. Saborear comidas exóticas. Provar roupas diferentes. Broches. Chapéus. Echarpes. E mais, aquela multidão diversa de todos os lugares do mundo. Essa é a magia.

Portobelo Road no Sábado. Aquela cerejeira em flor branca me esperava. Tantas lojas, brincos, prata, âmbar. De novo ficava zonza. Não sabia o que comprar. Tantos anos indo ali. Julia Roberts era eu! E escutava Charles Aznavour cantando She. Sentei num dos banco típico. Tomei café com Brownie. E entrei na livraria do filme esperando encontrar Hugh Grant...

Seguimos para desbravar Shoreditch, o bairro descolado da cidade. Nova área revitalizada. Grafites. Bansky pelas paredes. Chuva. Mind the Gap. Comprei o cartão Oyster para poder rodar nos undergrounds. Viajar é para os fortes. Léguas de andanças. Muitas escadas para ir num Roof Terrace (levada pela minha sobrinha Natália), – baladas de sábado à tarde! Domingo foi em Brick Lane. Chove Chuva, mas mesmo assim, mercados de comida, vestidos e flores.

Oxford Street é decadente? Talvez. Para mim, ver os Double-decks é uma volta aqueles livros da língua Inglesa. Uma cena de cartão postal. Assim como Carnaby Street, a loja Liberty, Totterham Court Road (estação que serviu de abrigo nos tempos da Guerra), Regent Street. Passear pelas lojas, entrar e sair pelas grandes Department Stores.

Em Covent Garden gosto de tomar um chá. Ouvir os artistas de rua. Comprar cartões, souvenirs, ouvir um moço cantando ópera, ir até a Neal´s Yard e ficar embriagada com o cheiros de lavanda, lima da Pérsia, hortelã e bergamota. As cores daquela esquina, me lembram da exuberância de Frida Khalo: vermelho, verde e roxo! Todos se sentam na pracinha para contemplar o exagero daquela encruzilhada perdida naqueles tons de cinza da cidade. Na esquina do tube station, os motoristas do tuk tuk sorriem. Mais flores lhe dão as boas vindas à esse mercado que um dia já foi para cavalos. A Crabtree & Evelyn me convida para aromas de abacate e laranja. Não resisto. E aquele moço de smoking e chapéu coco, me vende uma bolsinha vintage feita por ele. Conversamos sobre corte e costura! Logo eu, que não sei dá um ponto. Sem nó!

Uma amiga de infância, Silvia Helena, me convidou para um Gin and T, num outro Roof Terrace com vista para a St. Paul´s Cathedral. E de lá, vi Londres aos meus pés. A felicidade existe ! falou Mrs. Dalloway! Em As Horas!

Da estação de Paddignton segui (como nos filmes), para Cardiff, para encontrar meu refúgio em Penarth (no Vale de Glamorgan, endereço de fadas e duendes), na casa da minha irmã, Teca, que tem cheiro de alfazema e cartões de boas vindas. A cozinha com aromas outros, gulodices (mirtilos e Pavlova; samosas e espinafres frescos; mais Gin and T!). Beleza, placidez, aconchego, palm tree, e um pé de louro no quintal (trouxe umas folhas na mala para por no meu feijão). Até retalhos da calçada de Copacabana tem no seu oitão, quadros de Flávio Tavares e Isa do Amparo, para que ela sinta um pedaço do Brasil iá iá.

A vizinhança? um silêncio só! Fazia frio, galhos secos de fim de inverno. Lojas de caridade, Café Number One! cheio de poemas de Eliot e Byron. Uma Senhor lê o jornal e toma seu chá. O Brasil pegando fogo com notícias tristes e eu, tão longe, vendo aspargos frescos, soldadinhos de chumbo e ruas de Oliver Twist. Flanando por essas ruas de casas com bay windows. Tudo tão plácido! Lixo reciclado. Pessoas que falam baixo. Lampiões acesos em plena luz do dia e um sol fraco que não esquentava. Tinha a sensação que estava morando ali, tamanha era a distancia da minha casa.

Cenas da natureza tem o poder de nos sugerir certos valores – os carvalhos, dignidade; os pinheiros, resolução; os lagos, calma – e, de maneira discreta, podem agir como inspirações de virtude. ( pensamentos de William Wordsworth em A Arte de Viajar, Alain de Botton).

Fiz passeios por Cowbridge, Ogmore-by-Sea e Southerndown, ali eu era a Filha de Ryan ou A mulher do Tenente Francês. Thatched houses, ruínas castelos, penhascos, daisies, daffodils, ventos, névoas, brumas, céus, seixos, gaivotas, hills, horizontes infinitos, mares gelados e uma sombra marrom do lado de lá – a Inglaterra !.Ovelhas no countryside, e, aos sons cortantes das gaivotas, me reportava para outros tempos.

Viajamos pela região de Cotswolds, (cenário do filme O amor não tira férias , 2006, com Jude Law e Kate Winslet). Cidadesinhas medievais; um mercado do ano de 1.100. Uma cottage chamada de Horse and Groom, com lareira e paredes centenárias . Lugarejos com nomes compostos: Bourton-on-the-Water, Stow-on-the-Wold, Burford, Moreton Marsh, Chipping Camden…. Riachos, ruelas, recreios! Não sabia mais para onde focar a beleza. Nenhuma máquina seria capaz de captar as lojinhas, as ovelhas, os trecos nas portas das casas, os casais fazendo trecking pelas trilhas, as tea houses. E tantas outras belezas e iguarias. Pensei em Harry Porter ou nas histórias de Jane Austen. Os recantos Britânicos são indescritíveis. Os verdes, os cinzas, e os horizontes perdidos nas estradinhas fora dos circuitos das motor ways.

Pensei no filme Thelma & Louise, Teca e eu, naquele seu carrinho branco e preto, livres por entre as lanes, as off roads, por entre as florzinhas amarelas dos campos de canola....uma felicidade. Sem tempo , mas com direção. E sem a violência do filme, claro! Voltaríamos logo para casa. O pub nos esperava. E quem sabe outras aventuras, espantos e diários.

Viajar é bom. Voltar também. Registrar, re-contar, e fazer diários, para mim. Somente.


Ana Adelaide Peixoto Tavares é doutora em teoria da literatura e escritora.

Quanto de dor já escorreu nas frestas Quanta coragem foi ali bradada Quanto de lágrima foi derramada Por entre as tábuas que aqu...


Quanto de dor já escorreu nas frestas
Quanta coragem foi ali bradada
Quanto de lágrima foi derramada
Por entre as tábuas que aqui nos emprestas?

Quantos momentos de folguedos festas
Quantas vitórias  fúteis declamadas
Quantas paixões, quão tórridas noitadas?
Quantas tramóias, tramas desonestas?

É testemunha a mesa e suas tábuas
Do ser humano que acumula mágoas
E as impregna com a sua dor...

Porém não raro, deixa ali gravados
Comuns vestígios dos apaixonados
Os mais bonitos versos de amor...

* (Ouvindo o bom “Fado das Mesas de Tábuas” na, ainda melhor, companhia do Mestre Sonetista Fernando da Cunha Lima.)


Stelo Queiroga é engenheiro e poeta E-mail

Esta história me foi contada pelo inesquecível Romero Peixoto, meu amigo querido, companheiro do xadrez do Esporte Clube Cabo Branco,...


Esta história me foi contada pelo inesquecível Romero Peixoto, meu amigo querido, companheiro do xadrez do Esporte Clube Cabo Branco, da qual foi testemunha ocular.

Ia ser o noivado do ano. Filho de tradicional família paraibana, o jovem cirurgião dr. Augusto de Almeida Filho finalmente decidira se casar.

O dr. Augustão, como era carinhosamente chamado pelos seus discípulos, na juventude tinha se destacado por três características: aluno estudioso, sendo o melhor da sua turma; personalidade forte, o que o fazia se impor sobre os demais; e pavio muito curto, que o fazia brigar quase todas as manhãs, na saída do colégio Pio X. Foi assim no ginásio e no científico.

No curso superior, revelou-se um acadêmico brilhante, concluindo Medicina com louvor. Partiu, então, para Harvard, onde se especializou em cirurgia digestiva. Após passar três anos, pavio mais curto, retornava a João Pessoa, tornando-se o maior partidão entre as moças casadoiras da época.

Pois não é que o dr. Augustão se embeiçou pela Fatinha!? Garota linda, charmosa, rostinho coquete, mascando chiclete, era uma rosa de bonita. E muito prendada. A sua beleza tinha o DNA da mãe: dona Ilda era belíssima! Tanto que ela foi a primeira Miss Paraíba.

A filha do Seu João Celso, grande comerciante, correspondeu ao flirt do dr. Augustão. Namoraram, e após um bom tempo decidiram se casar, para alegria das duas famílias.

Representante da Alta Sociedade local, a dona Ilda entendeu que o pedido-de-mão da sua filha, logo por dr. Augustão, tinha que ser um acontecimento marcante. E decidiu organizar um jantar em grande estilo para marcar a data.

Convidou, entre outros nomes da nata da sociedade: o comendador e industrial Renato Monteiro; o comendador Aluisio Ribeiro Coutinho; o industrial José Nilson Rolim; o economista Pavlov Baltar; o industrial do sorvete, Manuel Tropical; o famoso urologista dr. Jacinto Londres de Medeiros, com grande clientela na rua Maciel Pinheiro; o gerente do Banco do Brasil, David Trindade, com a sua Margot; o arrebatador tribuno Mocidade; o presidente do Tribunal de Justiça, Desembargador Sarmento; o arcebispo Dom José Coutinho; o major Ciraulo; o governador João Ramalho; o engenheiro Fernando Dias; o prefeito da Capital, dr. Luis de Oliveira Lima; o bardo Manuel Caixa-D’Água; o comendador Romero e Terezinha Peixoto; o grande dermatologista dr. Arnaldo Tavares, com a sua esposa Otaviana; o advogado famoso Tiburtino Rabelo de Sá, acompanhado de sua discreta esposa, dona Toinha. E completou a lista com a socialite Isabel Bandeira Brasileira e com Agá, o mais presente cronista social da sua época.

Assinava o jantar dona Carmélia Ruffo. As empadinhas, os pastéis açucarados e os pastéis-de-nata não poderiam ser de outra senão da dona Nisa Siqueira. Organizou o serviço o ágil garçom Forzinho.

Na grande noite, como seu pai se encontrava enfermo, o dr. Augustão tomou como padrinho o seu irmão médico dr. Ney Almeida, cirurgião há muitos anos radicado no Rio de Janeiro, e que viera tão sòmente para o evento.

Lá chegando, o noivo apresentou seu irmão aos futuros sogros, ao governador, ao prefeito, ao bispo, ao engenheiro, ao industrial, ao major, aos três comendadores, ao gerente; e a todos os demais presentes.

O dr. Ney recebeu de Forzinho uma dose de Old Parr e sentou-se na roda. Homem bem humorado, o dr. Ney, muito espirituoso, logo soltou uma piadazinha leve, tipo balão-de-ensaio; ou uma isca, como querem outros.

Bonachão, amante da boa comida e do bom whisky, o Seu João Celso (logo o pai da noiva!), que adorava uma piada, foi justamente quem mordeu a isca.

E logo iniciou-se um delicioso duelo: um contava uma piada, o outro respondia com outra pior. O outro replicava, e assim por diante.

Versaram sobre tudo que é tema: piadas de bêbado, de doido, de corno, de bicha. Piada de crente, de católico, de apostólico, de romano; de gregos e troianos, de turcos e judeus.

E para desespero dos noivos, a cada rodada caía mais o nível das piadas, num crescendo (ou num descendo!) qual um Bolero de Ravel picante.

A noiva assombrada correu para dentro de casa e contou à mãe o que estava acontecendo. Esta apressou os trabalhos e chamou todo mundo para o jantar.

Mas, para desespero dos noivos, a dupla de humoristas continuou a desfilar seus piores repertórios à mesa. Dr. Augustão, vermelho, suava às bicas. Foi quando um beliscão por baixo da mesa, dado por dona Ilda, fez o Seu João Celso se tocar. Então ele disse:

“Dr. Ney, vamos parar por aqui, pois, o senhor sabe, a mesa é um lugar sagrado...”

E, para horror do dr. Augustão, seu irmão respondeu:

“É uma pena, pois só de “c*” ainda tenho umas seis...”

O dr. Augustão mergulhou debaixo da mesa, de onde só saiu depois do último convidado.


José Mário Espínola é médico e escritor E-mail

Nunca devemos desprezar a coragem de construir a História com “H” maiúsculo. É preciso não deixar que os acontecimentos mudem os rumos das ...


Nunca devemos desprezar a coragem de construir a História com “H” maiúsculo. É preciso não deixar que os acontecimentos mudem os rumos das coisas projetando um porvir reacionário e retrógrado. Há a necessidade de trabalhar transformações de idéias objetivando formar conceitos novos, sem perder a consciência das responsabilidades inerentes a uma democracia. Gestar o futuro a partir da análise reflexiva e crítica dos acontecimentos sociais, políticos e econômicos, em obediência aos valores morais e éticos que se afirmaram na transferência de gerações.

O engajamento cívico em favor das causas que interessem ao país é, antes de tudo, uma atitude de cidadania. No entanto, é inaceitável que os envolvimentos em projetos de mudanças sociais, se façam de forma irresponsável, guiados por interesses escusos, pressionados por campanhas midiáticas patrocinadas pelos que ambicionam o usufruto de benefícios em detrimento das demandas coletivas. A História com “H” maiúsculo preza pela desapaixonada visão interpretativa dos fatos, aproveitando-os como norteadores de uma posteridade que sirva a todos e honre nossas tradições.

Os acontecimentos emblemáticos da contemporaneidade, na análise dos seus significados, devem produzir narrativas de caráter histórico que engrandeçam e valorizem a cultura do nosso povo. Elaboremos uma memória social e politica válida, de maneira que nossos descendentes se orgulhem do protagonismo que exercemos na atualidade. Que as ações do hoje sejam compreendidas no futuro como determinantes na edificação de um Brasil cada vez melhor.

Façamos então bom proveito desse clamor por moralidade no exercício do “fazer política”, mas prioritariamente nos comprometendo a combater as velhas práticas que caracterizam o comportamento nacional, já conhecido no mundo inteiro como “o jeitinho brasileiro de querer levar vantagem em tudo”. Urge uma revolução cultural, mudanças rápidas e radicais nessa forma viciada e corrupta de atuar enquanto atores sociais. Só assim, iniciando com a cobrança de nossas próprias posturas, poderemos exigir dos outros que ajam em consonância com as regras morais e éticas que nos livrarão definitivamente da chaga da corrupção.

Não joguemos por terra a oportunidade de escrever a História com “H” maiúsculo, atacando um bem conquistado através de muita luta, que é a democracia. Na História com “H” maiúsculo não se admitem retrocessos, volta às experiências que nos fizeram sofrer, fortalecimento de idéias que alienam e subvertem os conceitos que nos garantem o inalienável direito de agir e pensar livremente. A História com “H” maiúsculo não consegue registrar ocorrências que violem ordenamentos jurídicos ou preceitos constitucionais, no afã de atender interesses menores liderados por agentes políticos descomprometidos com as questões nacionais.


Rui Leitão é jornalista e escritor E-mail