Depois de voar com o coração apertado por causa do apagão aéreo, do medo latente do terrorismo em Londres (à época) e de me deslocar de car...

Minha janela para Cardiff

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Depois de voar com o coração apertado por causa do apagão aéreo, do medo latente do terrorismo em Londres (à época) e de me deslocar de carro até Cardiff, enfim, cheguei... o lar doce lar. Era a casa da minha irmã Teca, que reside no País de Gales há mais de 30 anos. Um país que pouco conhecemos e tendemos sempre a chamá-lo por Inglaterra,
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para desespero dos galeses, que têm língua própria (welsh) e a cultura celta em seus rastros históricos.

As casas na Grã-Bretanha são diferentes das nossas... Tem a vitoriana com chaminé, a detached, a terraced, o estilo bangalô, a thatched house, cottage... Ih! Tenho que consultar o meu livrinho de Inglês I! A casa onde Teca mora é vitoriana (daquelas que vemos nas histórias de Charles Dickens), grudada com a vizinha de um lado, mas contemporânea por dentro, com sótão (dos filmes de Jane Eyre, sem as madwomen) e bay windows (aquelas janelas com três lados de vidro, típicas da arquitetura britânica). Há um jardim com plantas exóticas e um canteiro de lavanda... e eu, na minha curiosidade, coloquei um punhado da flor lilás na carteira para prolongar o perfume. O recanto é decorado com obras de arte paraibana. Quadros e desenhos de Flávio Tavares, cerâmicas de Maria dos Mares, telas de Isa do Amparo e José Carlos (de Olinda), cabaças de José Palhano e cerâmicas do nosso artesanato se mesclam com a onipotência de um lustre de Murano.

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O vilarejo, Penarth, do outro lado da Cardiff Bay, tem casas lindas, com ramas nas paredes, lampiões nas ruas bucólicas e gaivotas grasnando no pier, logo ali na esquina, de onde se avista a Inglaterra. A estação do ano era verão, mas de verão tinha pouco. Fazia friozinho ameno, chovia fino e o céu estava cinzento, ou com cor de mingau, como dizia meu pai. Tudo me fazia acreditar que realmente estava na Grã-Bretanha. No domingo, uma surpresa! Nos classificados do Sunday Times havia um anúncio de venda de terrenos em Pipa-RN. Os Britânicos invadindo nossa praia.

A refeição da manhã era digna de uma princesa – de Gales! Cereais com frutas vermelhas (blueberries, raspberries, strawberries), croissant e café fresco. O almoço ocorria nos cafés dos arredores ou em casa, num quintal com duas palmeiras tropicais, ao som de Mart'nália, com salada de queijo de cabra, sanduíches de atum, quiches, omeletes de champignon e capucchinos, como não?!

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Cardiff (Caerdydd em galês), com cerca de 350 mil habitantes, é uma das capitais mais jovens da Europa. Há cem anos, o porto da cidade era o polo do comércio de carvão, tornando-se o maior exportador do mundo desse produto. Hoje, suas docas, todas revitalizadas, compõem o complexo da Cardiff Bay, um lugar de puro charme, com restaurantes, canteiros floridos, vista da baía, repleta de barcos de pesca e de passeio. Juntinho do porto, o Millenium Centre, complexo cultural onde são apresentados concertos, balés, óperas e musicais, destaca-se com sua arquitetura metálica e arrojada.

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No âmbito esportivo, o Millenium Stadium é o coração do esporte predileto dos galeses, o rugby, e também do futebol. O comércio da cidade é sofisticado: Laura Ashley, Acessorize (e a loucura das bijoux), Gap, Howells, Top Shop, Benneton, Marks & Spencer, H&M. Mas o meu fraco eram as lavandas inglesas, os sabonetes de limão e os cartões de arte. Quem resiste às comprinhas de liquidação? Os prédios espalhados pelas arcadas seguem o estilo vitoriano, com telhados envidraçados, aninhando pequenas boutiques.

Outra famosa atração no centro de Cardiff é o Castelo, construído em 1081. A edificação tem seus maravilhosos entornos, jardins bem cuidados, com banquinhos para descanso e leitura, trilhas entre chorões frondosos, córregos, gente que passa calmamente, gente que parece apressada... e nós com um andar wandering about, tranquilo, simplesmente a degustar a paisagem.

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Pegando o trem na estação da esquina, em 15 minutos estávamos no centro das arcadas de Cardiff. Ruas de pedestre, carrossel, um céu azul, um vento frio, um almoço na praça e um violão a tocar "Here Comes the Sun" e o "Tema de Lara" (Dr. Jivago). Senti uma certa nostalgia no ar, mas só "uma certa", pois logo logo tirei minhas cerejas frescas do saco... e a cada dentada um prazer…

Porém, não só de lojas se faz uma viagem. Adorava ir ao supermercado Tesco. Meu cunhado não entendia como podia gostar desse programa... Perdia-me entre as prateleiras de alcachofras, de chutneys de manga, de sorvetes de pistache e de vinhos fascinantes...
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Era, sim, um programa agradável! Sem falar que podia renovar meu vocabulário da língua inglesa, ouvi-la no seu cotidiano, com sua musicalidade própria e ver as pessoas no seu dia a dia de compras domésticas. Depois passava na farmácia e perfumaria Boots para comprar hidratantes, uma tesourinha, uma nécessaire – coisas de uma turista acidental…

Desde a chegada, fiz passeios pelos arredores (povoados por carneirinhos), falei português com meus sobrinhos, que devem achar as tias enlouquecidas e fiquei feliz por estar todo o tempo com minhas irmãs, trocando figurinhas sobre João Pessoa e Penarth, comendo tortas galesas ou batlva (docinhos gregos), seguidos por queijos ou guloseimas feitas em casa. Os jantares foram tantos: roast lamb (típico dos domingos britânicos), salmão com aspargos frescos; lentilhas ao molho curry; erva doce e alho poró no forno, com cuscuz marroquino e berinjelas; pasta de húmus (de grão de bico), presunto de Parma, queijo brie, salada fresca ou até mesmo uma galinhada com feijões variados. Um vinho rosé bem gelado ou tinto encorpado e lá ia eu pelos caminhos da gastronomia simples e sofisticada. Claro que os chás também entram na história, muitos: bergamota, jasmim, verde, ou simplesmente o tradicional, com um pingo de leite.

Esse mergulho nas "coisas de lá" contrastavam com as "coisas de cá", algumas das quais havíamos levado na mala: um saco de castanha, café extra forte São Braz, passa de caju e chocolates Sonho de valsa. E mais: trilha sonora da novela das oito, que incluía Elis Regina e a filha de Martinho da Vila; Chico Buarque e suas cidades; calendário com desenhos de Flávio; colares de Larissa Uchoa; uma camiseta da Amazônia; enfim... souvenirs do Nordeste, do Sertão, do Brasil. No meio da mala, uma tristeza dupla e a visita do Sétimo Selo: as perdas do cinema – Antonioni e Bergman. Naquele momento, os morangos já não eram mais silvestres nem as mulheres tão apaixonadas assim. Blow Up! E, de repente, uma bola de tênis no vazio.

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O silêncio de Penarth e das vizinhanças era intrigante. Não se via ninguém nas ruas. As casas não têm portão nem muro alto nem câmeras. Andávamos sozinhas à meia-noite, eu com um medo intrínseco brasileiro de encontrar um Jack, o estripador... mas, a caminho de casa, deixei-me levar pela escuridão.

Um dia nos perdemos. Tomamos o trem errado! Existe alguma coisa mais lúdica do que se perder em viagem? Quando percebemos, estávamos no meio do nada. De repente senti-me uma menina assustada e embriagada pelo prazer do desconhecido. Meia-volta volver e cantando amor febril chegamos em casa lá pelas 8 da noite, sol claro e o meu fuso um tanto (des)compensado. O jantar era uma moussaka grega com tzazik (salada de pepinos com iogurte). Não ouvimos Zorba nem quebramos os pratos, mas o mundo ficou pequeno e o céu, aos poucos, no seu lusco-fusco, indicava que a noite vinha. E eu? Era só estrelas...


Ana Adelaide Peixoto Tavares é doutora em teoria da literatura, professora e escritora

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