Parado em uma das janelas do Grande Hotel, um caixeiro viajante observa o movimento da cidade em um dia de feira. Ele começa a escrever su...

Carta de uma cidade de outrora

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Parado em uma das janelas do Grande Hotel, um caixeiro viajante observa o movimento da cidade em um dia de feira. Ele começa a escrever suas impressões para enviar a seu pai, que anseia conhecer aquela afamada praça comercial, mas nunca teve oportunidade. A reputação do lugar era de um eldorado, tanto para ricos comerciantes como para pobres e flagelados da seca.

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Começou ele: Meu pai, aqui estou a negócios e essa verdadeira Canaã de forasteiros prospera à sua maneira. Pujante no comércio, bem desenvolvida nos serviços, cada vez mais crescente no beneficiamento de algodão e couro, mas lhe falta o básico para suportar sua grandeza. Ela cresce mais e mais a ponto de querer arrebentar o espartilho, sua vida já não se comportara em seu corpo. Pior que não havia governante que conseguisse receber com as devidas salvas todo aquele desenvolvimento.

Os recursos municipais são parcos, disso sabemos, ainda mais no interior, mesmo assim o senhor pode me perguntar se não há algo a fazer. Pois respondo-lhe que há, há sim, acredito! Esse lugarejo tem como destino o sucesso. Soube que um alcaide foi até a Veneza Brasileira de trem e tomou um navio para a capital da república, a fim de mostrar os vultosos números comerciais de sua cidade para angariar um volume mais generoso de impostos. Sequer conseguiu falar com o Presidente do país e voltou no mesmo navio no dia seguinte. Disse-me que na próxima vez tentará uma carta de recomendação do presidente da província, mesmo sabendo que é difícil, pois qualquer empenho de recursos para o interior iria desfavorecer a capital que está no litoral e onde é seu gabinete, logo recusaria. O indaguei se poderia conseguir essa carta com o presidente da província vizinha, já que a cidade tem uma ótima relação comercial com a capital das pontes. Me olhou com ar de contentamento. Mas isso foi na última vez que aqui estive e já tem alguns meses.

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Kyller Costa Gorgônio
Hoje vejo os mesmos problemas, aqueles corriqueiros, desde quando me iniciei nessa praça. Os dois principais são o parco abastecimento de água e o insuficiente fornecimento de energia. A água é provida já tem alguns anos, mas não é suficiente para todos. Uns poucos – abastados – a tem e os sete chafarizes não foram instalados de maneira justa, de modo que a população que vive mais afastada do centro, a mais pobre, como acontece na maioria dos lugares, tem dificuldades; abrindo espaço para os aguadeiros, homens de várias idades que comercializam água em lombo de jumento, pegando no açude de Bodocongó ou mesmo no Açude Novo, ontem mesmo vi uma verdadeira tropa deles na saída para o sertão.

A cidade tem um clima agradável; de dia é quente, mas não é insuportável e basta estar em uma sombra que o vento fresco nos beija o rosto. Ao cair da tarde e à noite, é um gostoso clima serrano, convidativo a tomar um conhaque e caminhar pela cidade. Aqui estou bem hospedado, esse prédio da foto que mando é o Grande Hotel, acho que uma das construções mais belas da paróquia (depois da matriz de N. Sra. da Conceição). Sua entrada tem apenas duas colunas segurando o gigante e seu primeiro ambiente, a recepção, é um salão circular que rasga todos os andares dando para ver o teto. Bem no centro da roda a gente fala e a voz reverbera em altura impressionante. É dali que a recepcionista chama as camareiras e demais funcionários, espetáculo à parte. Sua arquitetura é um tal de Art-Deco, coisas do estrangeiro. Quarto confortável e uma bela banheira que disseram ser última moda na Inglaterra. O ruim é que tem horário para usá-la, duas vezes ao dia, pela insuficiência d’água na cidade. Ter e não poder usar a hora que quiser foi o que me chateou.

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Bruno Coitinho Araújo
Mas meu pai, a coisa mais interessante que vi foi a noite. E nunca me furto a observar. A certa hora, a luz da rua é apagada para garantir energia às principais residências e casas de negócios, fazendo com que as ruas sejam abraçadas pela total escuridão. Até o fim da noite, se anda pela rua, mas com dificuldade. Foi quando eu trouxe os primeiros flash-lights – que o povo aqui chama de frachilete ou lanterna –, dei uns de presente a algumas pessoas e hoje vendo na faixa de quinhentos em cada vez que venho; já de elementos, as pilhas, são vinte caixas que recebo pelo trem e não está dando para quem quer.

Antes de ir ao carteado, fumo um cigarro e espio do último andar do hotel o bailar de luzinhas que mais parecem vagalumes. Uma teia de pirilampos que vagueiam pela noite da cidade, justamente as pessoas portando seus flash-light, alumiando seus caminhos. Satisfeito com os negócios, penso em alugar um sobrado desses novos e passar uns tempos por aqui. Benção? Beijo em mãe. Espero resposta.

Campina Grande, Parahyba, Outono de 1942.


Thomas Bruno Oliveira é mestre em história e jornalista

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