O que de proveitoso acontecia ali, viu-se, de uma hora para outra transformado em mais uma acerba traição entre companheiros de viagem pla...

Minaretes de lama (Cap. 01)

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O que de proveitoso acontecia ali, viu-se, de uma hora para outra transformado em mais uma acerba traição entre companheiros de viagem planetária. Uma traição tida, pra variar, como irrelevante na história, que é sempre escrita por vencedores. Para acúmulo de toxicidade, naquele momento a covardia dava-se entre consorciados do reino animal, e não entre meros indivíduos de mesma espécie, como sói acontecer. Sim, nós, os porcos, vítimas da ingratidão e impiedade humanas.

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phoenix-rising
Tanto esforço feito em manter limpo o entorno das primitivas aldeias humanas, esquecidas no passado neolítico dos que viriam a ser nossos mais constantes carrascos, acabou por nos colocar – no conceito desses mesmos verdugos – numa situação de débito perene com noções, mesmo elementares, de asseio e higiene pessoal.

A punhalada foi particularmente dolorosa para quem, como nós, de certa maneira, entendêramos nosso papel naquela aliança pré-histórica e estratégica como de reconhecido valor utilitário para ambos, no sempre manter a higiene local, vasculhando no lixão depositado no espaço posterior aos roçados em torno da aldeia.

No começo as coisas até que correram bem, e conforme íamos devorando praticamente tudo que ali se encontrava, deixávamos de ser molestados, e a partir dali sendo bem vindos pela periferia das futuras cidades.

Não que não gostássemos de fazê-lo. Aliás, que fique claro desde já, foi nosso o pontapé inicial dado para que tal associação viesse a acontecer, um dia. No cair da noite nos aproximávamos, cautelosos, embora àquela altura irremediavelmente atraídos, fisgados pelo cheiro que emanava das clareiras e penetrava serpeando pelos bosques, qual uma fita, fina e invisível.

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Nicola Parish
Aquele cheiro vinha anunciar, para um faro privilegiado como o nosso, as gostosuras cuja perenidade impedira que as mulheres da aldeia as tentassem conservar dentro de suas cabanas, razão pela qual tantos monturos crescendo próximos às plantações. Numa rápida pincelada, eis o princípio da nossa desventura.

Se aqueles agricultores fizeram, de início, alguma vista grossa de nossa presença nas cercanias, foi por enxergarem nela um inesperado, porém providencial antídoto contra a proliferação de moscas, mosquitos e do mau cheiro que emanava das sobras em decomposição, sem falar que a cooperação interespécie avançou tão logo os humanos perceberam, nos excrementos deixados por nós, ao fim de cada turno, a fertilidade trazida pra suas roças.

Éramos, sem saber, um aliado com o qual não tinham eles contado quando resolveram permanecer, teimosamente, no cultivo à terra enquanto seus irmãos partiam em hordas para a tradicional caçada pelos campos, onde passavam a maior parte do ano vagando por acampamentos improvisados em árvores, penedos e grutas. E aqui aproveitamos para dissipar um conceito mal difundido pelo senso comum, e tacitamente endossado pela maioria das religiões humanas, o de que a aldeia humana preexistiu aos roçados. Ora, a aldeia é só um dos tantos frutos brotados da agricultura. A filha primogênita.

Lwtt
Acontece que estas duas obras, a agricultura e a aldeia, viriam a se complementar num processo mediado, sempre, por alguma fonte d’água. Na melhor das hipótese um rio, uma fonte de abastecimento vital para existência tanto da aldeia quanto das plantas cultivadas em seu entorno.

É possível dizer desse rio/amálgama que fosse ele um mais antigo Jordão, e que ora vinha batizar Riqueza, filha do casamento entre agricultura e aldeia. Diferentemente da lenda cristã, porém, aquela filha bonita não debutaria na sociedade da época, pois trazia o destino de ser raptada ainda mocinha.

Avançando-se mais no tempo, constata-se porém, que, apesar dos inúmeros artifícios empregados depois, no objetivo de criar vilas e povoados a partir de certas abstrações líricas do tipo Pedra Fundamental, por ex (numa hora, ungida pelo pioneiro em trânsito, noutra através da eleição de promontório religioso; monumento à batalha, etc.), aquela primeira derivação agrovílica, não deixou nunca de ser a primeira, mais natural e eficiente forma de se estabelecerem sociedades, e através destas obter-se prosperidade.

Durante, porém, um tempo quase inaveriguável em que nossa presença, como uma sombra, gozou de algum prestígio junto àqueles pioneiros humanos sectários, não esquecemos nunca de ser gratos aos nossos consorciados, cuja só aparente generosidade, apesar de tudo, nos dispensava em grande parte do esforço, muitas vezes brutal, de escarafunchar o chão em busca de raízes e tubérculos, e isso desde o primeiro encontro nosso com o primeiro acúmulo de lixo – marca registrada da vida aldeã.

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O. Darbonville
De forma que podíamos agora economizar um pouco de focinho, àquela altura já de ponta achatada por milênios dedicados à dieta basicamente vegetal, num mundo selvagem cujo topo da cadeia alimentar estava ferozmente representado por carnívoros feito o leão e o tigre, para quem o odor adocicado de nossa carne, farejado à distância, era um convite à degustação.

Humanos, porém, não levariam em conta que as continuadas crises de pele de que passamos a sofrer, depois de literalmente atirados por eles na lama – quando, posteriormente, nos submetem a um terrível confinamento prolongado até dias de hoje –, evoluiriam para a sarna crônica da qual padecemos agora, e cuja coceira, na falta de assistência, nos faz deitar e rolar, esfregar dorso contra o chão, como praticamente a única forma de alívio que podemos contar contra os horrores dessa dermatite, e sem ao menos reconhecerem os humanos dolo algum de sua parte, nesse – para nós - trágico processo.

Essas e outras doenças de natureza crônica haveriam, pois, de nos ficar como eterno pagamento pelo benefício levado por nós àquela primitiva forma de vida na aldeia, mesmo que a princípio nada soubéssemos de dilemas fitossanitários a que estivessem os referidos aldeões expostos, quando, à noite, baixando o volume dos roncos, vagávamos famintos pelos arredores da aldeia.

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Trevor Cole
Mas um tempo chegou em que ninguém mais estranhava se um ou outro dos nossos, às vezes inadvertidamente levado pela curiosidade, à qualquer hora do dia ou da noite cruzasse o limite das plantações e acabasse penetrando pelos espaços sagrados da aldeia; farejasse pela porta de um casebre alguma mulher com sua cria, na tarefa matinal de repassar às novas gerações os aprendizados da vida; algum velhinho, cujo milagre de longevidade o permitisse ainda mostrar-se útil no tecelanato de cestos ou redes de pesca.

Alguém servindo de remendão para tosca sapatilha de couro; para corda de arco; artesania de osso para fins diversos, etc, de forma que até gozávamos do tácito direito de eventualmente aparecer na aldeia praticamente vazia de homens e mulheres adultos, e de adolescentes que tinham ido para o campo, para cumpria de tarefas diárias mais pesadas.

A clausura, ou sectarismo voluntário dos humanos, determinante para o fim do nomadismo, iria estender seu benefício a várias outras espécies, e uma primeira vítima de tais ‘’benefícios’’, fomos nós porcos, sem dúvida. Mas não tardaria para que os próprios deuses abandonassem o recinto sagrado de grutas ou rochedos inexpugnáveis a danos causados por animais de peso, e viessem alojar-se nas cabanas aldeães, num contato familiar e quase promíscuo com seus adoradores, que não tardariam a enxergar nessa privatização da transcendência, uma quebra no poder de arregimentação social, e começariam a erguer, geralmente no centro das aldeias, moradias mais condizentes para hóspedes ilustres como aqueles.

Éramos já então semi-domesticados, mas pulsava ainda em nós os apelos de uma vida livre e selvática, lembranças de um tempo, àquela altura ainda recente, em que podíamos correr livres por campos e florestas, e quase nenhum predador dispunha de velocidade suficiente para nos alcançar mediante corrida a céu aberto.

Tínhamos então, de tempos primevos, o que hoje - de forma bem simplificada - se reconhece como um corpo sarado.

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Annie Spratt
Mais que isto, a competição desenfreada entre as espécies, acirrada pela era pós-glacial, fizera com que grandes predadores perdessem tamanho diante da debâncle dos grandes almoços ( herbívoros como o Titanotylopus, por ex.), obrigando-os a uma mudança de foco que acabou fazendo com que a barra pesasse finalmente pra nós, suínos, animais até então considerados de pequeno porte, e que se viam agora obrigados a desenvolver novas e eficientes destrezas na arte da autodefesa, se é que pretendiam continuar, por mais tempo, farejando trufas no subsolo.

Foi um tempo bastante difícil, em que a velocidade da adaptação se tornara o fiel da balança entre a vida e a morte, e não foi outra coisa senão uma invejável sede pela vida que abriu em nós o caminho para novos e surpreendentes eventos fisiológicos adaptativos, de cuja força podemos hoje dizer ter sido capaz, num tempo relativamente curto, de nos formatar o corpo segundo um design perfeitamente aerodinâmico, comparável a um projeto industrial avançado, semelhante àqueles traçados, muitos anos depois, por humanos numa prancheta.

A visão de um ataque defensivo em massa contra um predador como uma leoa, que houvesse capturado, num descuido, um leitão, por ex, era a de vários projéteis em alta velocidade, sincronizados e partindo de pontos diversos. Cada um daqueles vetores, furtivos à visão, era um bólido em forma de fuso, ou broca, e no todo era como se uma chuva de flechas, partindo de variados lugares, se dirigisse a um único ponto. Uma chuveirada capaz, muitas vezes, de fazer o bicho abandonar a presa e correr da luta, ferido de morte.

Mas não foi por acaso que, um tempo depois de efetuada e consolidada aquela primitiva aproximação com a aldeia humana, percebemos que os grandes dentes que nos subiam pelas laterais do focinho para ganhar espaço acima de nossa cabeça, tinham começado a atrofiar-se, e nosso temperamento, antes irascível e temido por todos, dava os primeiros e perigosos sinais de tolerância.

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Tim Evanson
Ao que tudo indica, a convivência com o modo de vida humano e sua base numa divisão de trabalho que, nos primórdios do neolítico já lhes havia retirado das feições aquele aspecto animalesco e mais agressivo, em prol de uma característica mais reflexiva ou compassiva, parecia, decididamente, ter nos contaminado.

Tínhamos, sem saber, inaugurado um novo tipo de espécie biológica. Um tipo dual, digamos assim. Pelo menos capaz de encerrar em si, e em simultâneo, duas idades suinológicas.

Essa verdade nos chegou depois que alguns dos nossos, fugindo às armadilhas que os homens traiçoeiramente haviam de depois nos preparar, voltaram para a vida no seio da floresta, onde não tardaram a ver seus dois grandes dentes laterais recuperar a força de outrora e, desafiador, projetar-se no espaço outra vez, enquanto sentia seu pescoço retornar ao antigo e mais grosso diâmetro. O ventre se recolhia enquanto o humor voltava aos seus piores dias.

E como acontece até hoje com nós, porcos domésticos vivendo em pocilgas e que, por uma razão qualquer, logrem fugir de volta para o mato: em pouco tempo vemos recuperado o antigo e só aparentemente perdido status de javali selvagem, em seu formato característico de torpedo. Muitas teorias podem ser criadas na tentativa de explicar um fenômeno raro e estranho como esse, mas por ora, continuemos nosso relato.

É chegado o momento de contar que o nosso infortúnio começou pra valer em consequência da volta definitiva dos caçadores para a aldeia, e das pressões que passaram a exercer contra nós, suínos, em função das intermináveis desavenças provocadas pelo retorno deles com seus novos companheiros de caça, os cães, recém domesticados pelos campos abertos.

Assim como nós, tinham sido também os cães atraídos pela sobra comestível produzida pelos humanos, e, no caso específico deles, por despojos de caça e restos de comida deixados em volta das fogueiras, na vastidão dos campos abertos. 

* Continua no próximo capítulo. Aguardem!



Alberto Lacet é artista plástico e escritor

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