Ela é a matriarca de uma grande família. Uma mulher alta, esguia, elegante nos mínimos gestos. Percebe-se que disfarça sua autoridade com uma certa gentileza, mas o limite é passado pela caraterística do olhar. A chegada aos noventa anos, não a abateu como se temia...afinal, enfrentou todos os revezes da vida, mudanças, viuvez, problemas de saúde, com invejável controle das emoções. O tempo passou, mas como sempre, não impunemente. A rapidez de raciocínio aos poucos, deu lugar a pequenos lapsos de memória, que o seu inconsciente se apressava em justificar. Ainda havia a crítica da parte consciente em relação à que se perdia...assim o Alzheimer entrou na vida de Dona Anita”.
“As águas verdes da memória, onde tudo cai. E é necessário remexer. Algumas coisas, tornam a subir à superfície” (Jules Renard).
”A luta do homem é a luta da memória contra o esquecimento” (Milan Kundera).
Os chamados lapsos, podem ocorrer em pessoas muito ansiosas, em portadores de transtornos metabólicos ou endócrinos, de alterações do sono, de depressão, etc. O que dirige o viés para um processo demencial, é a clínica, sempre soberana, os exames complementares de imagem, uma anamnese cuidadosa, auxiliada pelos familiares, a evolução crescente dos períodos de esquecimento, o envelhecimento, e a observação atenta dos acompanhantes.
“Memória não é com efeito, senão uma certa concatenação de ideias, que envolvem a natureza das coisas externas ao corpo humano” (Espinosa).
Com o diagnóstico fechado, o tratamento iniciado, com medicação oral e adesivos, a família amorosamente, pois assim foi formada, estruturou a nova rotina: visitas diárias de filhos e netos, conversas para incentivar as lembranças, jogos e palavras cruzadas, cuidadoras disfarçadas de secretárias, e um geriatra humano e afetuoso para administrar a equipe.
“Notai o atirador mais hábil! O tiro mais certeiro! O mais sublime alvo do tempo, A alma sem memória! ” (Emily Dickinson).
Logo ao lado da porteira, um angico secular, guardava nos galhos mais altos, uma colmeia de abelhas, e, quando chovia, as flores brancas se tornavam um buquê receptivo, seguido por: um Facheiro azul, que se destacava, uma aroeira vermelha (conhecida como pimenta rosa), um juazeiro, à sombra do qual, um balanço convidativo ondulava com o vento, um umbuzeiro gigante, mas com a copa acessível para as crianças escalarem em busca dos seus frutos, uma faveleira com suas folhas instáveis. Um caminho limitado por coroas de frade levava a canteiros com arbustos e trepadeiras. De formas circulares e ovais, um de jitiranas rosa e roxa que exalavam um discreto perfume, um de Violeta da caatinga, um de Malva Branca, um de beneditas, as bromélias trelosas escapavam das divisas e subiam nas pedras, felizes na superfície acidentada. A caroá, tonalizava o conjunto de vermelho. Impossível de controlar, o Guarujá se espalhava pelos campos, acordando florido toda manhã, sem precisar ser cultivado…
”Digo meu filho que esse jardim, era o viço da vida vingando,
digo meu filho que esse jardim, era o branco dos dentes brilhando”
(Gonzaguinha).
Por nada perdia a hora da brisa da tarde, bordando uma toalha de mesa com motivos florais que ela mesma desenhara…
”A memória é a costureira, e por sinal bastante imprevisível. A memória faz correr a agulha para dentro e para fora, para cima e para baixo, para cá e para lá. Não sabemos o que vem a seguir, ou o que virá depois” (Virgínia Woolf).
Ultimamente, com a saúde precária, algumas sequelas de “quedas” domésticas, o esquecimento crescente, foi se distanciando do seu Éden, onde antes passava meses seguidos...a necessidade acomodou-a na cidade do asfalto e do barulho, do ar... condicionado, da ausência do seu jardim...vivenciando o rodízio dos filhos e netos diariamente. O filho mais velho e mais amado, morava em outro estado, e a via nos finais de semana, quando a pegava para viajar para fazenda. Ela possuía uma vaga lembrança, e repetia: é hoje que ele vem? Separe minha roupa...e assim, várias vezes ao dia... Sempre ele sentava junto à sua cadeira - trono, num banquinho feito de um tronco de árvore morta... e ela sorria observando as flores…
”Nada é para sempre dizemos, mas há momentos que parecem ficar suspensos, pairando sobre o fluir do tempo” (José Saramago).
Ela não soube, todos optaram pelo silêncio. De que adiantaria ferí-la tanto? Se a lucidez era tão momentânea e fugaz? Que verdade cruel poderia beneficiá-la? Quando queria ligar para o filho querido, outro filho atendia, e informava; no sábado irei buscar a senhora... e ela acrescentava: vamos “naquele lugar? Já não sabia nominar...e do outro lado da linha; Claro, mamãe, nos sentaremos para admirar suas flores...
“Há-de à memória chegar-me
Voz d’outros ventos segredar-me
Que tudo já teve um fim
Prefiro que não me digam nada
Que tenho pavor em mim
Da lucidez desafinada” (Rosa Fogo).
No dia prometido, o filho foi levado, coube tanto sentimento numa caixinha...a família o transportou com respeito e saudades para atender seu último desejo: Que suas cinzas fossem jogadas no jardim de Dona Anita....
E, no vento da tarde, que sempre trouxe alegria, as lágrimas foram vertidas ao mesmo tempo que o pó, num ritual de paz e despedida.
No seu apartamento, alguém fica inquieta, e pergunta à cuidadora; onde está aquele rapaz? Ela responde embargada: ele foi para a fazenda. Rapidamente Dona Anita retruca: Sem mim? E a acompanhante responde: sim, ele vai morar lá definitivamente...um largo sorriso ilumina o rosto enrugado: Vá pegar meu vestido, eu também quero morar lá... me leve para casa! ao cumprir a ordem, escuta a pergunta: o que é isso? O rapaz dos cavalos vem? Como é o nome dele?
“Lembrar é fácil para quem tem memória, esquecer é difícil para quem tem coração” (Shakespeare)