Muitos de vocês, meus queridos, jamais saberão do inferno de uma paixão, de uma agonia sem remédio a torturar o peito, minuto a minuto, sem pausa. Por mais que os poetas lhes digam que padecer dessas dores é melhor do que estar vazio, evitem o quanto possam, até o último suspiro, as armadilhas do amor. E deem-se por felizes. Não acreditem neles.
Poeta amiúde inventa suas dores, ou toma para si as dos outros. Não sei por que, mas eles adoram fazer isso. Venderiam a peso de ouro essas aflições? Não, posto que se dedicam a uma arte que pouco remunera, se a conversa e seu rumo apenas se ativerem ao que publicam e vendem. Consideram-se bem pagos, aí sim, é com a ebulição dos sentimentos e a comoção daqueles que os leiam, vírgula a vírgula, ponto a ponto.
Carinhas esquisitos, deles assim eu diria se não me fosse ainda maior a esquisitice de não poder ignorá-los, de não deixar de com eles me envolver e devorar, quase sem fôlego, o que me entregam. Talvez, também, sejam bruxos.
Mas, repito, viver bem é viver sem o padecimento de uma paixão não correspondida. Paixão, ou amor, não importa. Conta-se que são coisas diferentes. Amor seria paz, calmaria. Seria ser feliz com a felicidade daquele, ou daquela que se queira mesmo sem a retribuição devida e necessária. Paixão, se assim for, é turbulência, é tempestade com trovão e raio a arder no coração até quando retribuída, justa e sinceramente. Melhor, então, reafirmo eu, é viver sem isso.
Revi, nesta madrugada, um casca-grossa a morrer por dentro desde o momento em que o piano fez soar as notas de uma canção proibida. E é, exatamente, por conta disso que agora travo, aqui, esta conversa.
A vida, felizmente, me poupou das paixões avassaladoras. O que então discuto é a dor alheia. É a do proprietário de um Café suspeitíssimo. Pois bem, aquele sujeito de cara sempre amarrada, um expatriado sem sabida razão, um sem-passado, um cínico, empalideceu e teve as pernas bambas quando aquela por quem fora abandonado, anos antes, em Paris, entrou no seu agradável estabelecimento. Se é que assim pode ser descrito aquele antro de jogatina, de alcaguetas, de seres impuros, de gente desonesta, de grupos prestes a pular com punhais nas gargantas uns dos outros.
De um lado, a plenos pulmões, “O Guarda no Rio Reno”, o hino patriótico da Alemanha nazista e, do outro, a Marselhesa. E o dono, em sua pose de ferro, a impor neutralidade. Pois sim... Eis, ali, um porte de aço em cima de pernas bambas tão logo se viu diante daquela que ainda lhe queimava o peito. Diante dela e do marido a si, então, apresentado.
O casal lhe aparecera com o objetivo de comprar duas “letters of transit”, ou seja, as cartas de trânsito, os passes que garantiriam viagem segura desde o Marrocos até uma Lisboa ainda não invadida no decurso da Segunda Grande Guerra.
Revi tudo isso com lençol e travesseiro no sofá e com o sentimento da primeira exibição em tela de cinema. Sem a neutralidade política nem a pose forçada de Rick, o dono ocasional dos passes, voltei a torcer – estupidamente, pois já conhecia a história e seu final – para que ela ficasse. Salvaria das garras de Hitler o homem com quem casara, líder da resistência tcheca ao nazismo, e se renderia, aliviada, àquela velha paixão.
Voltei a me surpreender com o já visto ataque de decência do cara que eu conheço de velhos carnavais. Liberou a moça em vez de retê-la. Ofereceu os passes de que ela e o marido necessitavam para a viagem a Portugal e, de lá, aos Estados Unidos, berço da liberdade no conceito, também, da Warner Bros., na fase áurea de Hollywood, aquela de 1942, ano de lançamento do filme e de fogo cerrado no palco da guerra.
Paixão tanto aperreia e consome quanto pode, instantaneamente, modificar um caráter. Paixão é coisa de doido. E Rick termina o filme na companhia do corrupto capitão Louis Renault (este, sim, pediria favores sexuais em troca das tais cartas) ambos com passos lentos rumo ao imponderável.
Na vida real, a trama quase esbarra na censura de Joseph Breen, moço contratado para enquadrar o enredo nos bons modos da conservadora sociedade americana dos anos de 1940. Ainda bem que o capitão Renault ganhou essa batalha.
Antes do fim da guerra, “Casablanca” abiscoitou o Oscar de 1944 nas categorias de melhor filme, melhor direção (a de Michael Curtis) e melhor roteiro (para Julius Epstein, Philip Epstein e Howard Koch). Estátuas, então, para três das oito indicações, somadas as de melhor ator (Humphrey Bogart), melhor ator coadjuvante (Claude Reins), melhor fotografia (Arthur Edeson), melhor edição (Owen Marks) e melhor trilha sonora (Max Steiner).
As enganações ficaram por conta do tamanho de Bogart, menor do que a estonteante Ingrid Bergman e, por causa disso, obrigado, quando junto dela, a calçar sapatos do tipo plataforma. Também, pela frase nunca dita àquele pianista: “Play it again, Sam”. Não importa. “As time goes by” voltou a tocar ali e, de vez em quando, ainda toca no rádio para multidões em êxtase.