As crianças faziam barulho correndo descalças atrás de um cachorro, que cabriolava como se soubesse que aquela era a sua parte no jog...

A carta na garrafa

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As crianças faziam barulho correndo descalças atrás de um cachorro, que cabriolava como se soubesse que aquela era a sua parte no jogo. Uma delas trazia presa no short o que parecia ser a carcaça de um celular. E depois o jogo ficava mais pesado, elas jogavam pedras no cachorro, que procurava escapar do bombardeio, mas logo retornava, porque talvez não tivesse mesmo pra onde ir.

A mulher segurava nos braços duas crianças, aparentemente da mesma idade. Mas, não pareciam gêmeos. Eram muito diferentes. “Por exemplo, o senhor sabe, a dor não foi inventada para os ricos. Foi inventada para os pobres, que nem a gente. Mas, não é uma dorzinha assim, como uma dorzinha de unha, uma dorzinha de cabeça. É uma dor de vivente, de toda a vida, desde que a gente nasce, e vai pela vida afora acompanhando a gente. O senhor é uma pessoa distinta, não sente essas coisas. O senhor ri...”

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“O senhor vigie aí. Eu um dia vinha ali pelo cais e deu com ele, Jasão. Ele me olhou com aquela boca grande sempre aberta, como quem está sempre rindo, um peixe pegado no anzol, e me parou e disse assim, o senhor repare, disse que eu tinha um pedaço do mar dentro dos olhos. O que mais eu podia fazer? Minha mãe disse que aquele peixeiro era um raparigueiro fino, que eu ia sofrer muito. Mas, veja só o senhor, sofrer? Se a gente já sofria a dor de vivente desde nascer, eu disse pra mãe, a gente já sofre, mãe, desde que nasce, uma dorzinha a mais nem ia sentir...”

“Macélia, porque minha mãe disse que era pra lembrar das terras do estrangeiro de onde veio meu pai. Ele era um estrangeiro, que passou uns três dias e terminou me fazendo em minha mãe. Foi embora pra nunca mais. Mas, minha mãe dizia que eu devia apreender a amar e respeitar ele. Um dia ele podia voltar. Eu perguntava como ele era e ela dizia que bastava eu me olhar no espelho pra ver ele bem ali, com os olhos da cor de mar. Eu tinha orgulho quando minha mãe dizia que essa era Macélia, a filha do estrangeiro que um dia ia voltar.”

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“Eu nunca me incomodei muito quando sabia que Jasão andava pelos lados do porto, arreliando umas mulheres. Mas, aquela mulher me incomodou, o senhor entende? Aquela sirigaita tinha jeito de mulher que rouba marido, foi minha comadre aqui vizinha que avisou. Por exemplo, o senhor sabe, ela era mais nova que eu, andava toda se requebrando e os homens todos olhavam pra ela com toda cobiça. Me incomodou, mas eu imaginei que era que nem as outras. Eu deixei pra lá, até descobrir que a bichota estava grávida, e só podia ser de Jasão.”

“Eu me desesperei. Fui ver se era verdade, e era mesmo. Lá vinha a sirigaita se sacudindo toda e mostrando a barrigona, do tamanho quase da minha por aqueles dias. Era uma dor nova pra mim, o senhor entende? Não entende. O senhor nem é mulher e nem é pobre que nem a gente. Mas, passei toda a minha gravidez com aquela coisa atravessada dentro de mim, quase tomando o espaço do filho que carregava dentro também. O senhor não queira sentir uma dor assim...”

“Minha comadre foi quem teve a ideia, depois que eu encontrei o retrato da bichota dentro da carteira de Jasão. Então, minha comadre me ajudou a escrever uma carta pra Nossa Senhora. E eu escrevi assim, meu Deus, eu não aceito essa mulher grávida, pois eu sei que é o diabo do mal, pra destruir a minha família, eu não estou aceitando essa situação. E pedi pra Deus levar aquela infeliz,
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era um problema que eu colocava nas mãos Dele. E pedi, eu pedi, que Ele levasse ela com menino e tudo para o sal e o sangue do mar...”

“Eu fiz mesmo. E depois a gente colou a foto daquela bicha na cartinha, colocou tudo dentro de um frasco da avon, que era o que a gente tinha. Então, fui com minha comadre até o mar e jogamos nas ondas. E fizemos umas orações. E no outro dia, o senhor repare bem, a gente voltou e o mar estava cheio de frutas, umas maças verdinhas e vermelhinhas, novinhas ainda, eu só não peguei porque minha comadre disse que era pecado. Mesmo se fosse pra matar a fome. E tinha um monte de velas, e flores por toda a parte, essas coisas que o senhor disse ter encontrado, quando andava naquela dia pela praia.”

“A santa andava enfastiada naquele dia, eu comentei com minha comadre, estava devolvendo tudo de volta. Mas, a gente ficou feliz porque a gente não encontrou o frasco da avon com a carta. Que foi o que o senhor encontrou, não foi? Mostra ai... Era essa carta mesmo. Tá meio rasgada. Sim, foi porque entrou água no frasco. Eu disse pra minha comadre que a gente tinha de usar uma garrafa com uma rolha firme. Ela disse que não, a gente não podia dar trabalho pra santa. Ela tinha de abrir pra ler o que tinha dentro.”

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“Mas, ela não abriu, nem leu. Tanto que a sirigaita nem morreu, nem perdeu o filho. O senhor assunte bem. Foi o senhor que abriu e leu, então não podia dar resultado. Só se o senhor foi enviado pela santa. Foi? Pois então. Aí, a bichota teve o filho bem pertinho do tempo que eu tive o meu, esse aqui no braço. Meio doentinho. Mama sem muita força, e eu tenho tanto leite... Esse outro não, mama com força, até dói meus peitos. É sabido, o danado. Vai crescer mais forte...”

“Mas, eu não tinha paz, o senhor imagina aí. Até que um dia, eu não me aguentei. Peguei uma faca de peixe, escondi assim dentro dos panos e fui na casa dela. E quando bati, ela abriu a porta, e o senhor vigie ai, ela deu uma risada na minha cara. O senhor pode acreditar. Eu fiquei cega, cega mesmo. Eu senti todas as raivas do mundo de uma vez só. Uma raiva de estrangeiro, que era o que minha mãe dizia quando eu me zangava algumas vezes. Mas, era muito pior do que nunca senti antes. E nem lembro mais como aconteceu...”

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“O senhor tenha cuidado, que essa cadeira é em falso, pode derrubar o senhor. Aí, depois, Jasão apareceu todo ensanguentado e se entregou, disse que só fez aquilo pra não morrer, porque ela queria matar ele. Ficou preso, apanhou muito. Até que um dia eu fui na delegacia, levei as crianças todas e disse pro delegado que ele ia terminar matando a gente tudinho de fome, porque Jasão era quem trazia o peixe pra gente comer. E disse que ele era inocente, que não tinha matado a sirigaita. E ele ficou achando que eu era doida. E depois de um tempo, soltaram o pobre do Jasão.”

As crianças continuam fazendo muito barulho, agora uma delas simulava usar o celular, e dizia umas coisas meio estranhas, e depois batia com um pedaço de pau no cachorro, que tentava escapar da tortura, mas voltava e se enroscava nas pernas das crianças. Então vi que os dois meninos começaram a chorar quase ao mesmo tempo, e ela nem cuidou de minha presença. Abriu a parte de cima da blusa, tirou os dois seios para fora e começou a amamentar os dois de uma vez só.

“Se eu pensei em deixar Jasão? Pensar, pensei. Mas, e quem ia trazer o comer das crianças? Amor? Acho que nem existe mais. Outro dia, ele me disse que o pedaço de mar dentro dos meus olhos não estava mais verde, estava cinza. Não, a gente não precisa mais de amor pra estar junto. Naquele dia, Jasão chegou em casa, me olhou com aquela boca grande sempre aberta, como quem está sempre rindo, um peixe pegado
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no anzol, ele trazia um menino enrolado nuns panos e disse assim: Macélia, a gente vai ter que criar o menino. Você sabe que ele está sem mãe...”

“Eu pensei em não aceitar, mas outra dor veio de dentro de mim, o senhor sabe, era uma dor de remorso, uma culpa tão grande que o senhor não pode mediar. Então, eu botei o menino nos braços e ele me olhou nos meus olhos cinzas, no dizer de Jasão, e eu só fazia chorar, e dei de mamar pra ele. E hoje gosto demais dele. É como se fosse meu filho. Deus me perdoe, até às vezes penso que amo ele mais do que os outros. Deus me perdoe. Não! O senhor não precisa dar dinheiro, não... Mas, se está insistindo, pelo menos a gente vai ter uma mistura melhor pra comer. Eu não devia ter escrito o endereço na carta pra Nossa Senhora. Mas, minha comadre disse que se não colocasse, a santa não ia me encontrar. E, assunte aí, foi o senhor quem encontrou a gente...”

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