Em seu encontro com a Natureza, a ciência invariavelmente provoca um sentimento de reverência e admiração. O próprio ato de compreende...

Celebrando o Cosmos e a Memória na Paraíba de ontem e de amanhã

eclipse paraiba 2023 astronomia cosmo
Em seu encontro com a Natureza, a ciência invariavelmente provoca um sentimento de reverência e admiração. O próprio ato de compreender é uma celebração da união, da incorporação, ainda que numa escala muito modesta, à magnificência do Cosmos.
Carl Sagan

Fenômenos naturais inusuais, como passagem de cometas, ocorrência de eclipses solares ou lunares, que às vezes demoram gerações para tornar a se repetir nas mesmas proporções, muitas vezes geram fascínio, medo, curiosidade ou outro tipo de emoção, aqui acolá registradas em memórias escritas, orais ou imagens diversas. Em várias ocasiões, fenômenos dessa natureza estiveram associados à ideia de desastres, de cataclismos, de algo que prenunciariam o final dos tempos. Tudo aquilo que saía ou sai da “ordem normal das coisas” e que, normalmente,
G. Gallina, 1820s
são padrões que estabelecemos a partir de nossa percepção, parece romper os equilíbrios, mexer com nossos mais arraigados temores.

Em fins do século XVII, o célebre jesuíta Padre Antônio Vieira (1608-1697), então bastante idoso e residindo na Bahia, escreveu a sua Voz de Deus ao Mundo, a Portugal e à Bahia. Juízo do cometa que nela foi visto em 27 de outubro de 1695, e continua até hoje, 9 de novembro do mesmo ano, escrito no qual associa a passagem do cometa à voz de Deus, que serviria de alerta aos homens quanto às suas iniquidades e exigiria emenda de seus erros, caso não quisessem sofrer as mais duras penas. Nesse mesmo ano, mas numa outra perspectiva, bastante distinta da do jesuíta, Edmund Halley (1656-1742), astrônomo e matemático britânico, após anos de observações e cálculos, concluiu que um cometa que tinha sido avistado em 1682 e em datas anteriores teria uma periodicidade de 76 anos, de forma que retornaria em 1758. Em 1705 publicou essa previsão e em 1758 a ela foi confirmada, tendo o cometa sido batizado com seu nome. O astrônomo havia falecido alguns anos antes, mas seu nome ficou celebrizado desde então. Segundo Halley, os diversos cometas que a humanidade avistava em diversas ocasiões orbitariam o Sol e sua periodicidade poderia ser calculada cientificamente.

O astrônomo Edmund Halley e o jesuíta Antônio Vieira e ovoltaram suas vistas aos céus e, cada um à sua maneira, tentaram explicar o espetacular fenômeno da natureza.
Independentemente das perspectivas de visão e das interpretações, não restam dúvidas que o fascínio humano pela natureza – ou, pelo menos, daquelas pessoas que são capazes de se fascinar com algo que não seja dinheiro, algum objeto de consumo ou a estreiteza de seus dogmas – é fonte inesgotável de saber e desperta o estupor ou a curiosidade de quem os presencia.

Assim como cometas, eclipses também chamam a atenção das pessoas e, para alguns, prodígios como o “sumiço da Lua ou do Sol”, causa encantamento ou temor. São inúmeras as narrativas populares de “luas de sangue” ou “manhãs radiosas subitamente tomadas de trevas”
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"O Eclipse"Antoine Caron, S.XVI
que assustaram alguns ou despertaram o interesse na sua explicação racional, ou, em casos mais extremos, até teriam sido eventualmente o sinal para parar uma guerra. Segundo Heródoto, Tales de Mileto teria previsto um eclipse solar numa data correspondente no nosso calendário gregoriano ao dia 28 de Maio de 585 a.C., ou, nas palavras do historiador:

LXXIV – [...] Durante cinco anos, os Medos e os Lídios obtiveram, alternadamente, vantagens, e no sexto ano de luta aconteceu algo extraordinário, que motivou o término das hostilidades. Durante um combate em que os triunfos se equivaliam de parte a parte, o dia transformou-se inesperadamente em noite. Tales de Mileto havia predito aos Iónios esse fenômeno, fixando a data em que se verificaria. Os lídios e os medos, vendo a noite tomar inopinadamente o lugar do dia, cessaram de combater e procuraram, o mais depressa possível, fazer as pazes. Heródoto. História. Livro 1 Clio. Tradução de J. Brito Broca. Rio de Janeiro: Clássicos Jackson, 1952. p. 38-39.

Com maior grau de precisão ou fantasia, lenda ou experimentação científica, medo ou fascinação, esses fenômenos foram vistos e contados, das mais diversas formas. A cultura popular ou os estudiosos não deixaram de registrar esses acontecimentos. Na Paraíba, de uma maneira ou de outra, aqui foram avistados e sobre isso falamos agora, convidando a Memória dar a mão e fazer companhia à sua filha História.

Embora não possa repetir em palavras exatas, a minha mãe, Maria Violeta da Silva Pessoa, nascida em Esperança (PB), lembrava nitidamente de ter visto um eclipse Solar quando criança, por volta de seus 10 anos de idade. Recordava do espanto das pessoas em sua cidade natal e de sua mãe, a professora Maria Emília de Christo da Silva, explicando às crianças em suas aulas sobre o fenômeno que seria avistado em dias. Dado meu interesse infantil por Astronomia, dizia que minha avó, falecida três anos antes do meu nascimento, gostaria muito de me ter conhecido, para poder falar sobre ciência.

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Diccionario Prático Illustrado, da Professora Maria Emília de Christo, com o verbete Eclipse. Teria sido uma das fontes para falar às crianças de Esperança sobre o fenômeno?
Dizia mamãe que numa dada hora, com o dia bastante claro, as galinhas começaram a subir nos poleiros e os demais animais começaram a se recolher como se o dia estivesse findando. Logo foram vistas estrelas no céu e em mais alguns minutos, a claridade voltou, com aplauso de muita gente que havia se reunido para ver esse portento. Algumas pessoas que haviam duvidado dias antes, vieram admitir que a previsão fora certeira. Verificando aqui a data, penso que isso se deu no dia 01° de Outubro de 1940, quando um eclipse foi avistado na Paraíba.

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O Eclipse de 1940, avistado em torno das 11h30, em Esperança, ficou na memória da criança. ▪ Fonte:timeanddate
Anos depois, lá por 1984, uma prima da minha mãe, Hebe Henriques Bessa, lembrava do mesmo fenômeno e, sabendo de meu ingresso no Curso de Engenharia Mecânica, me presenteou gentilmente com “uns livros de ciência” de um seu tio, o Cônego José Vital Ribeiro Bessa, que exercia o ensino junto com o sacerdócio. Dias depois chegaram as minhas mãos os três volumes de A Chave da Sciencia, obra em três volumes, impressa em Portugal em finais do século XIX, com destaque para o fato de que as “Officinas Typographica e de Encadernação” eram “Movidas a Eletricidade”, como marca de uma grande inovação da época. Lá estava um compêndio didático do conhecimento científico com o qual o Cônego Bessa havia educado gerações de estudantes e, na parte de Astronomia, lá estava o eclipse, com movimentos dos astros, mas sem as “luas de sangue” ou outros portentos. A Chave apresentava uma concepção de um eclipse da antiguidade com a seguinte explicação: “Este phenomeno celeste foi pelos antigos explicado d’um modo muito extravagante”.

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Folha de rosto e parte do texto sobre o eclipse (p. 107). BREWER e MOIGNO. A Chave da Sciencia ou A explicação dos principaes phenomenos da natureza. Obra ampliada na ultima edição franceza por Henrique de Parville. E volumes. Traduzida em Português por José Quintino Travassos Lopes. Embellezada com mais de 400 gravuras. Lisboa: Livraria de Antonio Maria Pereira Editor, 1896.
Décadas depois, de maneira um tanto fortuita, buscando fontes para uma pesquisa sobre a antiga cidade da Paraíba, lá me aparece na Brasiliana Fotográfica uma impressionante imagem de uma Comissão Astronômica do Rio de Janeiro, em frente à Igreja de Nossa Senhora da Penha da Paraíba, onde viera observar um eclipse anular do Sol, em 23 de Fevereiro de 1868.

A fotografia, se não estiver enganado, seria uma das primeiras realizadas em território paraibano. Eventualmente, a primeira. Lá estão a inconfundível e tradicional igrejinha, que resiste aos séculos, com os cientistas posando à sua frente, portando todo o equipamento astronômico, preparando-se para registrar o eclipse.
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Eclipse observado da Igreja de Nª. Sª. da Penha na Parahiba do Norte, em 23 de Fevereiro de 1868. Disponível em Brasiliana Fotográfica.
Ao redor da fotografia central, uma série de representações das fases do eclipse, com 22 imagens do progressivo encobrimento do Sol pela Lua até o final do processo. Pelas informações, ficamos sabendo que às 11h53 o eclipse chegara à sua fase máxima.

Diante da imagem, vem à mente de qualquer historiador ou interessado por história: haveria mais documentação da referida viagem? Um relatório? A Comissão teria vindo à cidade? Haveria algum relato da visita? Haveria referências na documentação local? Tudo isso instiga o pesquisador e foi inúmeras vezes o nosso ímpeto de seguir aos arquivos, mas os outros imperiosos deveres do ofício inviabilizaram essa ideia, que espero poder por em prática tão logo possível. Certamente, aqui ou no Rio de Janeiro podem aparecer outras peças dessa viagem científica às terras paraibanas. Antes de empreender essa pequena história/memória, cheguei a entrar em contato com algumas pessoas ligadas ao jornalismo e à astronomia por aqui, mas parece que o assunto não despertou maiores interesses ou não havia possibilidade. Para não deixar o registro em branco, pusemos as mãos nesse pequeno texto.

De todo modo, para não ficar apenas na foto, uma breve e possível pesquisa em acervos digitais, desta feita na Hemeroteca Digital Brasileira, da Biblioteca Nacional, foi possível avançar mais um pouco. Dos periódicos paraibanos daquele ano, não conseguimos localizar quaisquer menções,
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Jornal de Commercio. Edição 14 de 1868, informando a proximidade da data do eclipse. Disponível neste link. Acesso em 02/10/2023.
mas em alguns do Rio de Janeiro aparecem notícias.

Na 14ª edição do ano de 1868 do Jornal do Commercio, informa-se em primeira página que o Imperial Observatório Astronômico da Corte comunicava que em 23 de Fevereiro daquele ano se verificaria aquele evento e que seu melhor ponto de observação seria um pouco ao Sul da cidade da Parahyba, ligeiramente ao Norte da Igreja de Nossa Senhora da Penha, dando especificações do fenômeno e informando: Maxima phase ás 11h53’43”, neste instante o centro da lua coincidirá com o centro do sol, do qual sómente ficará visível um annel luminoso de 1’5” de largura, e provavelmente guarnecido de um resplendor (coroa) que circundará o disco escuro da lua.

Dias depois, na edição 32 do mesmo periódico, era noticiada a partida da Comissão Astronômica para a Província da Parahyba do Norte, composta pelo Capitão de Fragata Antônio Joaquim Curvello d’Ávila, pelo Capitão-Tenente João Carlos de Souza Jacques, o Major Dr. Francisco Duarte Nunes. Dr. Adolpho Dilermando de Aguiar e Dr. Ernesto Augusto de Mavignier. Quase que certamente são cinco dos seis senhores que aparecem na foto em frente à Igreja da Penha alguns dias após essa notícia. Quem seria o sexto? Algum estudioso local?

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Detalhe da foto da Comissão Astronômica em frente à Igreja da Penha, com os integrantes prontos para iniciar suas observações.
O Diário do Rio de Janeiro, de 15/01/1868, repete as mesmas informações da edição 14 do Jornal do Commercio daquele ano, no alto da página principal. Num outro jornal, os residentes ingleses na Corte do Rio de Janeiro pareciam estar interessados nessa expedição, tanto que o periódico The Anglo-Brazilian Times, em seu segundo número de 1868, publicado em 23 de Janeiro daquele ano, informavam o eclipse, a ida da Comissão à Paraíba e apontavam dificuldades técnicas para tais observações, como o uso de lentes adequadas e o cuidado com observações solares, algo que os astrônomos e a imprensa costumam a destacar nessas circunstâncias.

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Os residentes ingleses no Rio de Janeiro também estiveram atentos ao belo fenômeno que seria visto em dias. Link. Acesso em 30/09/2023.
Certamente, seria interessante deparar com outras fontes que trouxessem maiores informações sobre a expedição e, quiçá, sobre a cidade da Paraíba naquele começo de ano. Uma carta, uma fotografia, um relatório, quaisquer dessas fontes poderiam trazer pequenas peças para o vasto e sempre incompleto quebra-cabeças da nossa história. Alguém do local registrou o fenômeno? Como a comunidade de moradores da Penha teria recebido aquelas pessoas e presenciado juntamente o eclipse? O que se comentaria na cidade pelos dias seguintes? Perguntas que talvez nunca terão respostas.

A ciência desencantou muitas coisas na vida, mas continua a alimentar outros tipos de encanto e de expectativas de porvir. Pode maravilhar e pode alertar. Carl Sagan nos lembra que nós, a Terra, somos um “pálido ponto azul” perdido nos confins do Universo:
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Fonte: Nasa
De uma forma ou de outra; O limite entre o espaço e a Terra é puramente arbitrário. E eu provavelmente sempre estarei interessado nesse planeta — é o meu favorito. Tudo que fizemos ao nosso lar repercutirá em nossas vidas. E podemos fazer coisas que em última instância impeçam a nossa própria continuidade como espécie. Não seria ocioso aqui o cientista do século XX dar a mão ao seiscentista Padre Vieira propondo que nos emendássemos e evitássemos os erros. A casualidade de um posicionamento favorável fez com que a foto de 1868 fosse registrada na Penha, lugar àquela época bastante afastado da velha cidade da Paraíba, mas, hoje, a cidade ameaça engolfar toda essa área em planos urbanos e empresariais ambiciosos e, no mínimo, temerários. Não custaria ouvir a ponderação do jesuíta e do cientista em cuidarmos bem de nossa casa e termos a devida prudência, caso contrário, ela poderá não subsistir para que as próximas gerações possam ver essas maravilhas da natureza. Nesse momento, o reino das águas da Amazônia enfrenta uma forte seca, dias atrás o Rio Grande do Sul viveu um violento tornado. Até quando vamos manter os ouvidos moucos a tais advertências? Ao nos depararmos com a maravilha, também temos de lembrar que tudo isso é um tecido finito e delicado, temos de manter a devida reverência para com a natureza e a criação.

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PxD
Passados 155 anos da vinda da Comissão Astronômica e 83 anos do eclipse presenciado pela minha avó, minha mãe e outros familiares em Esperança, está chegando a vez de nossa geração. Em 14 de Outubro de 2023, a natureza nos presenteará com mais um belo espetáculo e poderemos nos colocar em direto contato com a imensidão do Cosmo – no qual um eclipse desse porte chega a ser um pequeno grão de poeira na imensidão, mas é tão grande para qualquer um de nós – bem como com a memória de todos aqueles que puderam, em tempos e lugares diferentes, contemplar tão belo presente que a vida nos dá de graça de tempos em tempos: Tales, Antônio Vieira, Edmund, Antônio Joaquim, João Carlos, Francisco, Adolpho, Ernesto, José Vital, Maria Emília, Hebe, Maria Violeta... e segue a história...
Para a minha avó Maria Emília, que não me conheceu e a quem não conheci pessoalmente, mas que deixou essa história para ser contada. Para minha mãe Maria Violeta, que me presenteou com essa memória.

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  1. Excelente, Angelo. A Ciência, a Memória e a História entrelaçadas pelo olhar da Paraíba.

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  2. Parabéns professor. Excelente texto. Uma viagem pela história local, astronomia e memória afetiva.

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  3. Parabéns, Ângelo Emílio! Sua teia envolvendo memória, história, realidade e opinião é rica em detalhes, perfeita! Cativa o leitor!

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  4. Caro Professor Ângelo Emílio, a leitura do texto nos permite sentir o quanto somos parte desses fenômenos naturais que sempre se apresentaram a humanidade! Através do texto é possível nos responsabilizarmos um tanto mais por mantermos o equilíbrio ecológico de nosso planeta Terra, nosso atual lar! Vamos então, nos preparar para mais um belo espetáculo da Natureza que acontecerá, dia 14 de Outubro de 2023, desejando que o belo na natureza nos desperte para a preservação desta mesma Natureza que nos envolve como uma Mãe Gaia.

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