“Tentei expressar a alegria,
mas também a solidão e a melancolia
que se sente no alto das montanhas,
de onde se avistam grandes distâncias”
Delius
Delius
No romance A Sinfonia Pastoral, de André Gide, as belezas da Natureza são contadas à menina cega na tentativa de descrever com palavras o mundo e a vida que ela não enxerga. Como a audição se depura nos desprovidos da visão, seus ouvidos passaram a perceber tudo o que lhe era dito como se olhos fossem.
P. Bonnard, 1930
É de se supor a dificuldade de alguém que nada enxerga para imaginar com exatidão, apenas a partir da palavra, a formidável diversidade de coisas que o mundo proporciona aos olhos saudáveis. Embora há quem com eles as enxergue, mas nem tão bem as veja.
As descrições do pastor Jacques, embaladas com o carinho e o cuidado que dispensava a Gertrudes, desde que se comoveu com o drama da situação em que a encontrou e decidiu acolhê-la, foram capazes de moldar sua imaginação com fidelidade. Pois além de partir do fisiológico, seu olhar era transmitido de alma para alma.
P. Bonnard, 1932
Infelizmente, no romance de André Gide, ao vir a enxergar por meio de uma cirurgia, a moça cega se decepciona com o mundo que vê, tão diferente do que lhe havia sido ensinado por seu protetor.
Bonnard, 1923
A capacidade com que notáveis compositores são dotados para transportar às partituras o que sentem e fazer com que o assunto chegue ao ouvinte, de maneira fiel ao que imaginaram, consolida-se como linguagem livre dos limites vernaculares que sectarizam a comunicação entre os povos. A música é recepcionada imaterialmente e, sem necessidade de intermediação alguma, transmite seus signos diretamente à intimidade de onde brotam as emoções. A liberdade com que exprime o que quer dizer, uma vez que as notas dos pentagramas se difundem em sons formalmente abstratos, torna a linguagem musical ainda mais rica de significados. Foi isso que Gertrudes “viu”, quando apenas ouviu o que está transcrito por Beethoven nas melodias da Pastoral .
Paisagem na Música
A compreensão da paisagem através da música foi consubstanciada brilhantemente em obras românticas, incidentais e impressionistas. No prelúdio do segundo ato, o italiano Umberto Giordano consegue criar uma congelante atmosfera, intensamente russa, onde se desenvolve a ardente paixão de sua ópera “Sibéria”.
Ferdinand Hodler, 1907
Na suíte orquestral “O Mar”, altas ondas cantam à deriva de uma manhã de verão, tal como descritas pelo próprio compositor britânico Frank Bridge: “brisas mornas a brincar sobre a extensa superfície de águas ao sol”.
Ferdinand Hodler, 1915
Em um poema sinfônico, o músico Arnold Bax pincela os contornos do Castelo de Tintagel em universo sonoro pluriarticulado de sutilezas e bravuras tímbrico-dinâmicas, que se estendem da maré calma à preamar, com bela impressão do oceano a banhar as falésias da Cornualha, na Inglaterra. Outra exaltação à excelência da diversidade florestal foi modelada por Arnold Bax em sua peça sinfônica “A Floresta Feliz”, inspirada num poema em prosa do escritor teatral britânico Herbert Farjeon. Uma fantasia evocativa de ambiente rústico protagonizado por airosos camponeses e um sátiro, bem ao estilo do fauno que Debussy usou em seu bucólico “Prelude après midi d’un faune”.
A Finlândia, berço de origem épica, foi decantada em sagas mitológicas e fielmente retratada por Jean Sibelius. No poema sinfônico “Finlândia, Op. 26”, melodias em ebulição crescente sugerem as belas paisagens, assim como as lutas nacionais históricas de seu povo.
Ferdinand Hodler, 1878
Na metade do século passado, o russo Boris Tchaikovsky dramatizou musicalmente, em uma suíte orquestral, o romance “A floresta murmurante”, do escritor conterrâneo Vladimir Korolenko (1853-1921), em que um personagem morador das matas é explorado por um déspota e cruel escudeiro. Seus lamentos são confessados com veemência no coração de uma grande floresta da Bielo Rússia, mesclando-se às veneráveis paisagens inscritas na música que com a mata “murmura” Pinheiros centenários
Ferdinand Hodler, 1885
Já em 1984, Boris Tchaikovsky entoou os ventos uivantes da Sibéria no poema homônimo, para orquestra, com gélidas lufadas a soar ardorosamente nas cordas. Apesar da ênfase da declamação paisagística especificada no título, a obra também explora a alma interior, uma intenção característica do compositor.
Vários outros exemplos musicais se notabilizaram por esta capacidade de desnudar paisagens aos ouvidos. Assim tornaram a música capaz de devolver a visão a muitos que a perderam, e induzir os que enxergam a fechar os olhos para enxergar melhor o que escutam, cientes de que há muitas maneiras de contar uma história, narrar um fato, descrever uma cena, e compor romances sem palavras.
O Apóstolo da Natureza
Mas houve um compositor que fez desta proeza a marca principal de sua obra, a ponto de se tornar conhecido como “O Apóstolo da Natureza”: Frederick Theodore Albert Delius!
Nascido em Bradford (Yorkshire, Inglaterra) desde muito jovem demonstrou seu talento e inclinação para a música, atividade que não
O jovem Delius, 1870s ▪ G. Britânica
Aos 22 anos, ele foi enviado para a Flórida, nos Estados Unidos, a fim de cuidar de uma grande plantação de laranjas da família, entretanto, a estratégia parece ter sido frustrada e até mesmo tê-lo inclinado a reforçar latentes tendências artísticas. Seus olhos se encantavam muito mais com as paisagens dos arredores de Jacksonville do que com os pragmáticos afazeres administrativos.
"Na Flórida, ao sentar e contemplar a natureza, aos poucos aprendi como deveria eventualmente me encontrar”, escreveu à época, e lá começou a dar asas à intuição para as primeiras composições. A influência afro-americana local despertou-lhe interesse por antigas canções dos escravos, que mais tarde exploraria nas variações compostas para grande orquestra, coral e barítono, que intitulou “Appalachia”, antigo nome indiano para a América do Norte.
A casa onde Delius viveu, em Solano Grove, Florida, no início do século XX. / Fonte: Wallfam.
A Casa de Delius, transformada em museu e ambiente para a prática musical.Hmdb
Quando estava escrevendo a biografia de Delius, a romancista e musicóloga norte-americana, Gloria Jahoda, visitou a casa de Delius e disse sobre o que viu em seu livro “A outra Flórida”: “Pinheiros agitavam-se em bosques úmidos, pica-paus voavam pelas copas das árvores, tudo isto se juntou às imagens de índios e gente nativa para surpreender a Europa com a música de Delius”.Bergen Library
Embora breve na vida do compositor, este período americano foi altamente criativo e marcou o início de suas composições, às quais dedicou todo o tempo livre. Antes de retornar à Europa, Delius deixou a fazenda e se mudou para o estado da Virgínia onde teve aulas de música. Após breve passagem por Nova York, conseguiu o que sempre quis: estudar na Alemanha, precisamente no Conservatório de Leipzig, um dos mais proeminentes núcleos musicais europeus da época, e lá começou a ter seu talento conhecido e reconhecido.
A forte admiração pela música de Edvard Grieg, de quem se tornou amigo, promoveu grande afinidade com a Noruega, o que incentivou o notável compositor a intervir pessoalmente junto a seu pai para finalmente convencê-lo de suas grandes potencialidades e permitir-lhe seguir a carreira musical. Delius intensificou seu trabalho como compositor, passou a ser convidado para reger suas obras em outras cidades europeias e se estabeleceu na França, onde se casou e viveu predominantemente em Paris, com sua esposa,
Nascida em Belgrado, descendente de artistas e músicos, a exemplo de seu avô, o grande pianista e compositor Ignaz Moscheles, Jelka foi sua companheira até o fim dos dias, nada fáceis na última década. A sintonia artística entre os dois se dava por afinidades com a literatura e a música, que emergiram desde que começaram a se encontrar em eventos dos quais participavam amigos notáveis como os compositores Gabriel Fauré, Maurice Ravel e Florent Schmitt, os artistas Auguste Rodin, Camille Claudel, Paul Gauguin, Henri Rousseau, Edvard Munch, principalmente ao descobrir interesses comuns pelas obras de Grieg e Nietzsche.
A empatia intelectual entre Delius e Jelka foi contributiva, sobretudo nas peças que incluem drama e poesia de autores comumente apreciados pelo casal, e presentes em muitas de suas obras como Walt Whitman, Henrik Ibsen, Paul Verlaine, Friedrich Nietzsche, William Shakespeare Alfred de Musset, May Morgan, William Ernest Henley, Jens Peter Jacobsen, Hans Christian Andersen, Holger Drachmann, Ludvig Detlef, Bjørnstjerne Bjørnson, John Olaf Paulsen, Theodor Kjerulf, Andreas Munch, Thomas Nashe, Ben Jonson, Alfred Tennyson, Aasmund Olavsson Vinje, Ernest Christopher Dowson, Percy Bysshe Shelley.
A casa em que viveram Jelka e Frederik Delius em Grez-sur-Loing, França.
Com exímia habilidade, ele lapidou peças que acariciam a alma dos que veem e dos que não veem, com sonoridade e harmonias que se ajustam às imagens para imprimir significados musicais muito mais profundos. Composições que revelam segredos sussurrados mais aos ouvidos do que aos olhos.
A. Normann, 1918
Definitivamente foram as montanhas, sobretudo as norueguesas, que o arrebataram com mais vigor, desde cedo, e pontuaram partituras soberbamente nutridas de admiração pela imponência dos altos relevos.
Diante de “Songs of high hills” (Canções das altas colinas), por exemplo, desmorona-se o Delius religiosamente cético, como se dizia, e em sua personalidade sobrepõe-se a sublime devoção pelos encantos naturais. O grande maestro britânico Sir Thomas Beecham, talvez o condutor que mais exaltou e regeu Delius, descreveu “Songs of high hills” como “uma sequência mágica de sons e ecos, tanto vocais como instrumentais, que culmina em grande explosão de timbres que parecem inundar toda a paisagem”. Nesta peça, as vozes cantam sem letras, impostas para ovacionar os cumes com mística reverência.
Carl Oesterley, 1887
Thomas Fearnley, 1839
Em ambas, o resultado foi realmente extraordinário e correspondeu à confissão do próprio autor: “Tentei expressar a alegria e o êxtase sentidos nas altas montanhas e retratar a melancolia solitária das altitudes mais elevadas em suas vastas extensões”.
Peder Balke, S.XIX
É fácil perceber que às monumentais belezas da Noruega, país em que compartilhou amizades e afinidades com o músico Edvard Grieg e o dramaturgo Henrik Ibsen, é que Delius particularmente manifesta todos os louvores. A exemplo do que fez Grieg com o poema teatral “Peer Gynt”, ele musicou “Paa Viderne” (Sobre as montanhas), ambos de autoria de Ibsen, obra prima que conta a história de quatro personagens que escalam os picos montanhosos dos fiordes para brindar à liberdade e “despertar do pesado sono da vida”.
Embora o poema de Ibsen exponha-se dramático como uma tragédia operística, a intenção criativa de Delius destina-se a reproduzir musicalmente o deslumbramento que a paisagem acima das nuvens é capaz de promover, e uma perfeita simbiose entre música e poesia acontece nesta longa e inspirada narrativa poética, na qual Henrik Ibsen confessa a magia sentida no alto dos montes:
“Minha vida no vale deixei para trás.
Aqui em cima nas alturas há liberdade e Deus
Lá embaixo todos os outros estão tropeçando.”
Fearnley, S.XIX
“Aqui eu vejo o mundo
na mais ampla perspectiva,
aqui sinto a brisa feito luz,
aqui eu encontro a liberdade,
aqui está Deus!”
Hans Gude, 1878
Hans Gude, 1848
Salientemos que os poetas, escritores, pintores e dramaturgos noruegueses igualmente impressionaram-no. A Suíte para música incidental “Folkeraadet” consolida esta sintonia, pois foi escrita para encenar a peça teatral (de mesmo nome) de autoria do poeta, dramaturgo, jornalista e crítico de arte Gunnar Heiberg, nascido em Oslo.
Gunnar HeibergKrohg, 1900 ▪ Nationalmuseum, Estocolmo
As artes plásticas e a literatura estão idem presentes em sua criação, compartilhada com a esposa. Além de pintora bem sucedida e influente, Jelka Rosen mantinha estreita relação com o ambiente artístico da época. Alguns pintores famosos, amigos do casal, produziram memoráveis retratos de Delius a exemplo de Edward Munch, Ida Gerhardi, Ernest Procter, Paul Gauguin, James Gunn, Jacob Kramer e Martin O'Neil.
Acredita-se contudo que Henrik Ibsen e Walt Whitman tenham gozado de maior empatia, o que se verifica na dimensão dada à musicalização de sua poesia. Embora tenha prestigiado o poeta James Flecker ao compor a aplaudida música incidental para o romance “Hassan”, de mesmo nome.
O exemplo de “Sea Drift”, escrito para orquestra e vozes, baseado em poemas da coleção "Leaves of Grass", de Walt Whitman, está repleto de imagens de amor, do mar, da morte e da separação protagonizada por um casal de pássaros habitantes da costa marítima, descritos pela observação de um garoto com expressividade avassaladora. O menino se embevecia à espreita de
Walt Whitman ▪ Fonte: LoC
Em “Prelúdio e Idílio” e nas “Canções de adeus” (Songs of Farewell), há mais uma intensa conexão de Delius com a poesia de Whitman, o que parece sugerir que é nas obras corais e orquestrais que encontramos a essência de sua visão filosófica. Considerada como um “sim à vida”, é a consagração do êxtase experimentado na contemplação de quem do alto se eleva para transcender ao paraíso em que se consuma:
Ó segredo da terra e do céu...
Eu permaneço como se estivesse
no bico de uma poderosa águia,
em direção ao mar, absorvendo, vendo…
Alegria, companheiro de bordo, alegria!
Satisfeito com minha alma na morte eu choro…
Agora o adeus à costa, terra e vida, final e adeus...
Whitman
Whitman
A exacerbação do romantismo cenoplástico se alvoreja igualmente no Concerto para Piano e Orquestra , tal como no “Caminho para o Jardim do Paraíso”, interlúdio orquestral que separa a 5ª e 6ª cenas de sua ópera “Romeu e Julieta na aldeia“ (A Village Romeu and Julieta), baseada na novela homônima do escritor suíço, Gottfried Keller, em que os amantes parecem dançar a noite inteira antes de morrer. Há momentos que espelham a sublime incandescência sonora da paixão de forma contagiante.
Frank Dicksee, 1884
"O Jardim em Grez"Jelka Rosen
Em inúmeras composições Delius descreveu a vida e suas emoções como ninguém. O verão e a primavera excitavam-no com a alegria que tão bem se escuta em “Uma canção de verão” (A Song of Summer) a dispor cores do crepúsculo em filetes de luminosidade que se ouvem nos sopros, trompas e harpas a dialogar em versos. Os corais nas “Canções do Crepúsculo” mais parecem preces em forma de poesia, às luzes que se despedem com o Sol na voz dos solistas. A despeito da simplicidade do título, na peça “Um arabesco”, para grande orquestra, barítono e coral, Delius aborda emoções mais intensas sobre perdas amorosas, mas sempre inserindo-as nos benefícios que a observação da natureza pode trazer. "Um arabesco" é baseado em um poema favorito, de autoria do poeta dinamarquês Jens Peter Jacobsen, que o conclui com a esperança de que na arte reside a imortalidade como sentido da vida. A presença da literatura poética na paisagística obra de Delius está sempre a evidenciar crença na redenção do ser humano por meio da força da poesia e dos encantos da natureza .
A diversificada cenografia paisagística exerceu magnetismo cativante em toda a trajetória de Delius, como um dístico carimbador de seu estilo de vida: “Não quero escrever se não for beleza e alegria”. Um estado de espírito que o estimulou a viver os prazeres da liberdade, da boemia, da vanguarda, muitas vezes brotados da felicidade que via emanar das belezas da natureza.
"Les Meules"Jelka Rosen
Nos concertos para violoncelo e orquestra; para violino e orquestra; e para piano e orquestra; e no concerto duplo (Violino, violoncelo e orquestra) evidencia-se total domínio do instrumento solista, sobretudo os de cordas.
"Jardim de Verão"Jelka Rosen
À poesia, ao amor e ao romance, Delius dedicou um nicho especial além de “Songs of Farewell” e “Cynara”, música para barítono e orquestra, com poemas do inglês Ernest Dowson. Sob influência da experiência americana na gestão do laranjal da família, Delius também escreveu o poema orquestral “Hiawatha” baseado no folclore americano, com texto do grande poeta americano Henry Longfellow, “The Song of Hiawatha”, em torno de uma história indígena de amor e perdas ambientada em desoladas regiões norte-americanas, onde o elo do homem com a natureza é mais intenso e vibrante. O que resultou em uma metáfora musical icônica para Delius, que se esmerou em belas cenas, como a que se refere ao trajeto de Hiawatha ao remar sua canoa em direção ao pôr do sol, onde pretende renovar vida e esperança, e desaparece para sempre.
Várias óperas completam esta singular coleção de dramas ardentes de paixão como “Fennimore e Gerda”, “Irmelin”, “Koanga”, “Margot la rouge”, “A fonte mágica”, além de “Romeu e Julieta na aldeia”, já citada. “Fennimore e Gerda”, ópera orquestral que funde cenários e paixão ardorosa, possui passagens de deslumbrante força lírico-dramática.
Delius em Grez-sur-Loing
Soube, como poucos, projetar cenas urbanas como fez na grande homenagem a Paris, cidade que o acolheu na fase mais produtiva de sua vida pessoal e profissional. A peça “Canção de uma grande cidade” (The Song of a Great City) frequentemente executada pelo mundo até hoje, espelha qualidades parisienses vistas de diversos ângulos. Sua importância histórica, seu povo revolucionário e defensor das liberdades, seu crescimento metropolitano que lhe conferiu o título de “cidade luz”, sua vida artística e festiva que atrai e encanta tanta gente (que o diga Hemingway) e, acima de tudo, o esplendor da iconográfica beleza, majestosamente retratado por Delius nesta música que tão bem explora desde o requinte das filigranas à imponência cultural e arquitetônica da capital francesa.
Além da “Canção para uma grande cidade”, a alegria que parece habitar o coração de Delius evidencia-se singularmente na polca para piano “Zun Carnival”, e em “Brigg Fair,“ poema sinfônico que brinda a história de uma tradicional feira inglesa que acontece desde 1205 em Brigg (Lincolnshire). A obra se inspirou em uma antiga canção folclórica que o empolgou ao escutar o arranjo do compositor australiano Percy Grainger, a quem pediu permissão para orquestrá-la.
Grainger e Delius
No Réquiem, percebe-se implícita a influência dos filósofos Nietzsche e Schopenhauer, algo de William Shakespeare, da Bíblia e do texto da “Canção da Terra”, de Gustav Mahler.
Delius
Com quase duas horas de música, a “Missa para Vida” celebra com veemência a voluptuosidade do existir. É a pura e esfuziante alegria que se sente e se escuta neste vibrante trabalho, que, com a “Dança da Vida”, Delius arremata a jubilosa trilogia em homenagem aos prazerosos elixires que enxergava no viver, consubstanciando corajosa atitude em rejeitar as fés organizadas, o alento que desejava para as gerações futuras.
Ao coroar-se com o título de “Apóstolo da Natureza”, nosso compositor se glorifica como um visionário estoico que acreditava na renovação perpétua por meio do contínuo regresso da primavera, todos os anos, como símbolo de sua música. Música rapsódica, meditativa, narrativa, que não está subordinada às regras tradicionais, e fugiu de qualquer enquadramento conceitual ou formal da época, e quem sabe até dos dias atuais.
"Delius no Jardim" Jelka Rosen
Paradoxalmente, o destino lhe foi cruelmente irônico e o fez perder a visão! Seu espírito de liberdade e a ânsia de viver intensamente o expuseram a contrair sífilis, numa época em que tal diagnóstico soava como sentença de morte lenta, precedida de muito sofrimento físico. Após se instalar, a doença progrediu vagarosamente, impôs-lhe limitações, o uso de muletas, e intensificou-se nos últimos catorze anos de vida, deixando-o paralisado e completamente dependente.
Jelka e Delius
Recluso em sua casa de Grez-sur-Loing, a 80 quilômetros de Paris, acompanhado e assistido por sua esposa Jelka, definhou pouco a pouco, mas apenas fisicamente. O espírito continuava abraçado à música, muito acima dos limites impostos pela doença, sorvendo mentalmente as belas paisagens, o que sempre fez dele um ser sobrehumano. Para escrever, contava com Jelka, a quem ditava as novas composições, embora nem sempre pudesse contar com sua ajuda, uma vez que sua saúde era precária e obrigavam-na a se ausentar para tratamentos externos.Delius e Eric Fenby
Em introdução a um de seus vídeos, o canal “The Delius Channel” descreve: “Nenhum homem prova maior amor do que doar seis anos de sua juventude a um compositor cego e moribundo, permitindo a conclusão do trabalho de sua vida". Eric escreveu “Delius como eu conheci”, considerado entre os célebres livros de memórias sobre músicos, em que relata sua dolorosa, exasperante, mas gratificante missão, história sobre a qual se produziram vários filmes e documentários.
Foram seis anos movidos por elevado grau de generosidade e abnegação que o jovem Eric Fenby dedicou de sua vida para que Delius continuasse a enxergar mesmo sem ver. Uma prova de que a música é sem dúvida um meio de comunicação imbatível, capaz de transpor todos os limites e barreiras palpáveis que possam vir a ser impostas a alguém. Uma prova de que por meio da Arte que se sagrou como Divina é possível continuar a ver e sentir o que é divino.
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Nota do autor
Após escrever e publicar este texto, recebemos mensagem (abaixo) de meu irmão, Carlos Romero Filho, em que além de nos lisonjear com o prazer de sua leitura, nos lembra do grande Villa-Lobos, a quem me penitencio pelo lapso em não citar um dos maiores representantes da música erudita brasileira. O que nos fez recordar de mais duas coisas, afora as que ele pontuou: a sensação de deslumbramento místico, daqueles em que vemos e sentimos a imagem de Deus, quando estivemos em uma reserva indígena em (Pitinga-AM) e desfrutamos a oportunidade de adentrar a floresta e nos deparar, estupefatos, com sua magnífica imensidão frondosa. A outra, foi a recordação de que nosso pai costumava ouvir “A Floresta do Amazonas”, extraordinária obra que decanta em rica tessitura sinfônica e vocal todas as belezas e mistérios de uma das grandes maravilhas do mundo com uma soberba homenagem ao povo indígena. Muito obrigado, meu irmão, penitencio-me perante sua oportuna menção a Villa-Lobos, de quem papai dizia: “Se ele tivesse nascido na Alemanha, teria sido tão famoso quanto Beethoven”.