A sociedade contemporânea apresenta um paradoxo: enquanto promove a hiperconectividade e o acesso quase irrestrito à informação, simultaneamente gera um grave sentimento de desamparo e um crescente narcisismo, que se configura como uma brutal resposta defensiva. Esse fenômeno revela as contradições do projeto civilizatório deste século e suas repercussões na constituição subjetiva dos indivíduos.
Natalia Blauth
O desamparo se manifesta como uma condição estruturante da experiência humana. Ele é observado desde as primeiras vivências na maioria dos bebês, quando se expressa pela incompletude do organismo e pela dependência do outro. Essa condição primordial, que nunca é completamente superada, é revisitada ao longo da vida, especialmente quando os referenciais simbólicos que sustentam o laço social entram em colapso ou são destruídos. Por exemplo, o sujeito contemporâneo, assim, se vê desprovido dos suportes identificatórios que tradicionalmente ofereciam sentido à existência. Esse desamparo intensificado encontra, no narcisismo, uma resposta defensiva predominante.
Unsp
O narcisismo nos dias atuais tornou-se uma estratégia de sobrevivência psíquica em um mundo que orienta o indivíduo para a intensificação do próprio bem-estar como a única alternativa de existência, desconsiderando a solidariedade e a responsabilidade social. Nesse processo, o sujeito com grave deficiência emocional, diante do desamparo gerado pela fragilização dos laços sociais, se refugia em um narcisismo defensivo que, paradoxalmente, apenas amplifica seu egoísmo, isolamento e vulnerabilidade.
Em A Cultura do Narcisismo: Uma Era de Expectativas Decrescentes (1979), o historiador norte-americano Christopher Lasch observa que, atualmente, se consolida uma "ética da sobrevivência narcísica", que, ao priorizar o bem-estar
individual, enfraquece ainda mais as possibilidades de solidariedade, ou seja, de uma construção coletiva da dignidade humana e do sentido da vida.
A dinâmica circular entre desamparo e narcisismo gera expectativas decrescentes quanto aos novos valores morais, que refletem a degradação do comportamento coletivo. O esvaziamento do sentido da existência, a precarização dos vínculos sociais e a intensificação da violência, na forma de negação da diferença e da alteridade, destroem os princípios da responsabilidade social.
Para evitar esse colapso, é necessário reconhecer o desamparo como uma condição inerente à existência humana e promover a construção de novos laços sociais que não neguem a diferença. Nesse sentido, é imprescindível resgatar a solidariedade e os vínculos sociais como instrumentos para a gestão do desamparo.
Tobias Gonzales
O cidadão contemporâneo, portanto, é desafiado a um paradoxo: reconhecer sua condição de desamparo sem sucumbir ao narcisismo defensivo; afirmar sua singularidade sem negar a alteridade; e construir vínculos significativos em um cenário de fragilização institucional. Trata-se de reinventar o próprio senso de cidadania, não mais como um pertencimento passivo a uma comunidade, mas como um processo ativo de construção de laços sociais que reconheçam tanto a vulnerabilidade quanto as potencialidades humanas.
Nesse desafio, a superação do narcisismo contemporâneo não ocorrerá pelo retorno nostálgico a identidades fixas e hierarquias rígidas, mas pela construção de uma ética da alteridade que reconheça o desamparo como uma condição compartilhada e, a partir dele, estabeleça novas formas de solidariedade e responsabilidade mútua.