Nos primeiros anos do século 16, começaram a circular na Europa notícias acerca das novas terras descobertas pelos portugueses e sobre a abundância que nelas existia de uma madeira que tinha um grande valor comercial na época em virtude da sua utilização no tingimento de tecidos. Pouco tempo depois, a costa do Brasil passou a ser frequentada por traficantes franceses em busca do pau-brasil para as tecelagens do norte da França.
Capitanias Hereditárias, no século XVI.
A grande extensão do litoral brasileiro tornava praticamente inviável para os lusitanos coibir o contrabando do chamado pau-de-tinta.
Uma das regiões da costa brasileira mais cobiçadas pelos traficantes normandos era a que ia das imediações do rio Paraíba até a Baía da Traição, uma área que, em 1534, com a instituição das Capitanias Hereditárias, fazia parte da Capitania de Itamaracá. Um escrito de um padre jesuíta do final do século 16 expunha uma das razões para o interesse dos contrabandistas pela madeira existente na costa paraibana:
“O pau dessa capitania é o mais e o melhor que se sabe [...] e um só pau dá 5 (tintas), de que a primeira e a segunda são muito escuras, a terceira e a quarta são as melhores [...] Das outras capitanias o pau não dá mais que duas tintas”.
Ilustrações do livro "Singularidades da França Antártica, a que outros chamam de América", de André Thevet, publicado em 1557 ▪ As gravuras de Jean Cousin mostram a derrubada do pau-brasil, por indígenas, e o carregamente e transporte dos troncos em embarcações francesas.
Outro fator de grande relevância para explicar a grande incidência do tráfico do pau-brasil em terras paraibanas foi a aliança que os traficantes gauleses firmaram com o grupo indígena Potiguara que habitava a região e que os auxiliava na derrubada das árvores e no transporte da madeira para os navios. Embora as incursões francesas à Paraíba possivelmente possam ter iniciado anos antes, somente em 1549 se tem o primeiro registro documental do contrabando de madeira na área. O episódio foi relatado pelo aventureiro alemão Hans Staden que fazia parte da tripulação
Hans Staden ▪ c.1525—1576
de um navio português que navegou de Pernambuco para retirar pau-brasil na foz do rio Paraíba:
“Como partimos de Pernambuco, atingimos a terra dos Potiguaras na Paraíba e encontramos um barco francês, com o qual travamos batalha.
Navegamos quarenta milhas até um porto de nome Paraíba, onde carregamos pau-brasil e onde queríamos nos abastecer de mais mantimentos junto aos indígenas. Ao chegarmos, encontramos um barco da França que estava carregando pau-brasil. Nós o atacamos e esperávamos tomá-lo; porém eles danificaram nosso grande mastro com um tiro e escaparam. Entre os nossos houve alguns mortos e alguns feridos. Após o que decidimos retornar a Portugal”.
Durante certo tempo, os Potiguara do litoral paraibano viveram sem conflitos com os portugueses que vinham também retirar pau-brasil na região. Em 1574, essa paz foi rompida pelos indígenas. O levante Potiguara principiou com o ataque a um engenho que estava sendo construído às margens do rio Tracunhaém e teria sido, segundo a narrativa de Frei Vicente do Salvador, uma represália a duas ações praticadas pelos portugueses. A primeira delas, a retenção por Diogo Dias, o dono do engenho que estava em construção, de uma filha de um líder Potiguara. A outra, bem mais plausível, o ataque efetuado pelo capitão-mor de Itamaracá a três naus francesas que estavam carregando madeira na Baía da Traição, investida que, segundo Frei Vicente, “matou alguns franceses,
Jean Cousin, S.XVI
e lhes queimou muito pau que tinham feito, no qual o assalto se havia também achado Diogo Dias”. E o frade franciscano acrescentava: “Foi esta guerra dos Potiguares [...] na era de mil quinhentos setenta e quatro, e dela se seguiram tantas, que duraram 25 anos”.
A partir daí, os Potiguara passaram a impedir o acesso dos portugueses às terras paraibanas e a gravidade da situação fez com que o assunto fosse levado a D. Sebastião, rei de Portugal que “receoso de os franceses se situarem e se fortificarem no rio Paraíba”, determinou ao governador–geral do Brasil que “fosse ver e eleger sítio para uma forte povoação, donde se pudessem defender deles e dos Potiguares”, conforme a narrativa de Frei Vicente. As expedições que foram organizadas, na Bahia e em Portugal, para a conquista da região não tiveram êxito e, segundo um relatório jesuíta contemporâneo, continuou “a ladroeira e colheita de 20 e 30 naus francesas que todos os anos ali carregavam” com a ajuda dos “negros pitiguares”, o que fez com que os franceses “vieram a fortificar, a seu modo, no mesmo rio Paraíba”.
Armada EspanholaEng. Sch.
Em 1581, quando Portugal já se encontrava subordinado ao reino espanhol, foi organizada na Espanha uma grande frota com destino ao Atlântico sob o comando do general asturiano Diego Flores de Valdés. Embora a expedição tenha ficado conhecida como a Armada do Estreito, porque um dos seus objetivos era estabelecer povoação e defesas no Estreito de Magalhães, a jornada tinha também um objetivo militar, o de afastar corsários e traficantes, principalmente franceses, que incursionavam pela costa brasileira e a região do rio Paraíba era um dos alvos da expedição desde a sua preparação.
Há alguns anos, um manuscrito referente à Armada do Estreito, que passou três séculos desconhecido, foi encontrado em um antiquário londrino e comprado por uma biblioteca norte-americana (Huntington Library). Editado, inicialmente, em Londres, pela The Hakluyt Society, o material foi adquirido e publicado na Espanha, em 2023, pela Editora da Universidade de Salamanca com estudo introdutório da historiadora paraibana Sylvia Brandão Ramalho de Brito.
Sylvia Brandão Ramalho de Brito, historiadora.
La Relación de Pedro de Rada El Manuscrito Olvidado de la Armada del Estrecho de Magallanes, o manuscrito do escrivão-mor da Armada do Estreito, é um relato de todo o percurso da jornada de Valdés e esclarece aspectos da história do Brasil e, particularmente, da conquista da Paraíba pelos espanhóis.
Sylvia Brito, no lançamamento do do livro La Relación de Pedro de Rada El Manuscrito Olvidado de la Armada del Estrecho de Magallanes, em Salamanca, Espanha, com a participação do professor José Manuel Pérez, diretor do Centro de Estudios Brasileños, e de Jacobo Sanz, diretor da Editora da Universidade de Salamanca.
No prefácio da obra, o historiador José Manuel Santos Pérez, diretor do Centro de Estudios Brasileños da Universidade de Salamanca, ressalta a importância do manuscrito de Pedro de Rada para uma nova interpretação histórica acerca da presença dos espanhóis na Paraíba:
Prof. José Manuel Santos Pérez
“Este fue el inicio de la conquista de un território, Paraíba, que pasó a ser capitania real, en el que, gracias a las investigaciones de Sylvia Brito, hoy sabemos que la expedición española cumplió una orden real para que se llevara a cabo ese esfuerzo conquistador en esta zona estratégica al norte de Pernambuco, a diferencia de la interpretación clásica de que el Forte Velho se fundó de manera casual o fortuita. Las razones que llevaron a Felipe II a centrarse en esta región pudieron tener que ver con la constante presencia francesa, con la necesidad de ‘pacificar’ a los índios potiguares aliados de los franceses,
y con el hecho de que el Cabo Blanco, cercano a la desembocadura del río Paraíba, es el paraje más oriental de las Américas y por lo tanto, lugar fundamental desde el punto de vista estratégico”.
O general Diego Flores de Valdés chegou a Pernambuco com destino à Paraíba, em meados de abril de 1584, Em Olinda, Valdés se reuniu com as pessoas principais do lugar solicitando a colaboração de todos na expedição para a Paraíba. No relato do escrivão-mor da Armada Pedro de Rada, Diego Valdés discorreu sobre a importância da conquista da região:
“para el bienestar y quietude de todos ellos y dos demás moradores de la villa e tierra, expulsar a los franceses de la Paraíba y poblar e sostener aquel puerto y tierra, sometiendo a los índios Potiguares por ser tan belicosos, porque no era fictício para la reputación de Su Majestad que los franceses siguieran controlando aquel puerto y reteniendo a estos índios bajo su voluntad y sujeción [...] y como ahora que tenia aqui la armada y gente suficiente les aseguró que pacificarián la tierra y expulsarián a los franceses de lo logrado les ayudaria y haría um fuerte em la parte más conveniente y les dejaría en él la gente para la guarnición [...] y de esta manera se resolveria la situación que por tantos años se habia resistido a una solución.”
Página do manuscrito do escrivão-mor da Armada do Estreito.
Após as providências que foram tomadas em Pernambuco, a expedição partiu para a Paraíba, onde chegou, conforme a narrativa de Pedro de Rada, no sábado 7 de maio: “a las tres de la tarde fondeamos em nueve brazas um poco más allá de Cabo Blanco”. No dia seguinte, a expedição chegou à foz do rio e, no relato de Rada, “vimos dentro de la Paraíba navios franceses que los tenían varados junto a tierra de lo qual se alegro mucho toda la armada”. Ao chegarem os espanhóis “a media légua de donde estaban los cuatro navios franceses, três de ellos juntos y uno aparte” foram alvejados a partir de um baluarte que os franceses haviam construído em uma das margens do rio. Nas palavras de Rada: “Y desde el baluarte que tenían hecho em tierra nos dispararon con muchas piezas de artilleria [...] Y como nuestra artilleria les debía hacer mucho daño y los franceses tenían pocos recursos para defenderse, prendieron fuego a
Jean Cousin, S.XVI
sus tres navios y a las casas em que habitaban, y dejaron de disparar su artilleria desde el baluarte”. Pelo relato de Rada sabe-se, através de informações que foram obtidas com um índio de Pernambuco que havia sido capturado pelos traficantes de madeira, que os franceses haviam abandonado a barra do Paraíba e fugido por terra para a Baía da Traição.
Antes do conhecimento do manuscrito do escrivão-mor da Armada do Estreito, se sabia que a primeira obra feita pelos europeus na Paraíba fora o Forte de São Filipe e São Tiago construído pelo general Diego Flores de Valdés na margem esquerda do rio Paraíba. Não havia, até então, maiores informações sobre o baluarte e as casas que foram edificadas pelos franceses na barra do Paraíba e que são descritos na Relación de Pedro de Rada. Vale ressaltar que o referido baluarte não era uma fortificação de pequenas dimensões como se pode constatar pela própria narrativa de Rada:
“Fuimos marchando hasta llegar al baluarte de los franceses sin encontrar ninguna defensa porque todos se habían huido. Hallamos ocho piezas de artilleria de hierro fundido e algunos versos con los que nos habían disparado y los aparejos de los navios que habían quemado y hasta novecentos quintales de palo brasil y pipas de cerveza sin estrenar y otras menudencias de poco valor y cinco hombres muertos que les matamos con artilleria”.
Como se observa no relato de Rada, a fortificação francesa possuía oito peças da artilharia em ferro fundido, além de alguns “versos”, que eram armamentos giratórios utilizados no século 16 e que serviram para atacar os espanhóis
Página inicial do manuscrito: Tabla del derrotero y discurso del sucesso que tuvo la Armada Real de Su Mg. Que fue a las costas del Brasil y estrecho de Magallanes de que fue por capitán general Diego Flores de Valdés que partió de Sanlúcar de Barrameda a 25 de septiembre del año de 1581 hasta 17 de julio de 1584 que volvió a la baya de Cádiz.
comandados por Valdés. No baluarte também estavam os apetrechos de navegação das embarcações que foram queimadas e depositados novecentos quintais de pau-brasil. Considerando que o quintal utilizado na época no reino de Castela correspondia a 46,03 kg, o baluarte armazenava cerca de 41 toneladas de madeira que seriam embarcadas nos navios franceses que se encontravam no local.
A Relación de Pedro de Rada é um valiosíssimo manuscrito histórico, composto de 194 páginas escritas (no formato 300 x 210 mm), que inclui relatos sobre os primeiros tempos da presença dos europeus na Paraíba. Além da narrativa detalhada dos episódios dos confrontos que ocorreram entre a expedição de Diego Flores de Valdés com os franceses e Potiguara o manuscrito trata da construção por Valdés do forte de São Filipe e São Tiago e tem anexos preciosos como o do ato de investidura do capitão da fortificação e as instruções por ele recebidas de Diego Valdés, como se vê a seguir:
“Instrucción y orden que ha de guardar y cumplir el Capitán Francisco de Castrejón, alcaide del fuerte nombrado San Phelipe y Santiago que está haciendo y acabando por de Su Majestad del Rey Dom Phelipe, nuestro señor, em el puerto de Santo Domingo de la Paraíba”.
Apesar da grande relevância historiográfica da Relación de Pedro de Rada para o país, considerando que a expedição de Diego Flores de Valdés passou a maior parte da sua jornada na costa do Brasil, o manuscrito do escrivão-mor da Armada do Estreito, inexplicavelmente, ainda não mereceu uma edição brasileira.
Nota do autor: Esse texto é uma adaptação do artigo que será publicado na próxima edição da revista da Academia Paraibana de Engenharia – APENGE, editada sob a coordenação dos engenheiros Otávio Falcão e Sergio Rolim Mendonça.