O recente transcurso do 160º ano do nascimento de Epitácio Pessoa, ocorrido em 23 de maio, é o que me traz essa história. Pois bem, dez anos atrás, quando do sesquicentenário do homem, uma mensagem caía no meu celular. Nela, o procurador geral do Ministério Público de Contas da Paraíba Marcílio Franca (em viagem, então, à Europa) pedia-me para reservar um exemplar do Jornal da Paraíba contendo entrevista na qual eu tratava de uma pesquisa sua e do artigo que ele havia produzido, ainda em 2007,
Marcílio Franca@mfranca
acerca de algo que maculava a figura de Epitácio. No artigo em questão e na nossa conversa, Marcílio contestava a existência do “decreto de branqueamento” da Seleção Brasileira de Futebol que, por determinação presidencial, teria ido sem atletas negros à Copa América de 1921, travada na Argentina.
Ao compor meu texto, eu me lembrei da pergunta lançada aos quatro ventos, em janeiro de 1978, pelo governador paraibano Ivan Bichara Sobreira, de quem reproduzi o espanto: “Que ares tem Umbuzeiro?”. Ivan aludia ao fato de a pequena e pobre cidade do interior paraibano haver parido três das maiores expressões do mundo jurídico, político e cultural do País. Num dos alpendres da Fazenda Prosperidade, o governador falava dos umbuzeirenses Epitácio (presidente da República, de 1919 a 1922), João Pessoa (o governante cujo assassinato foi inscrito, nacionalmente, nos acontecimentos políticos de 1930) e, por fim, Assis Chateaubriand, o “Rei do Brasil”, como o descreve o biógrafo Fernando Morais.
Epitácio Pessoa
João Pessoa
Assis Chateaubriand
De Chateaubriand, diga-se que foi o criador dos Diários e Emissoras Associados, a maior corporação da história da imprensa no Brasil, se somados, no auge de sua expansão, 34 jornais, 36 estações de rádio, 18 de televisão, uma agência de notícias, uma editora e quase 20 revistas, em meio a elas “A Cigarra” e a imbatível “O Cruzeiro”.
Em 2015, volto a lembrar, a Paraíba festejava os 150 anos do nascimento de Epitácio, motivo da minha recorrência ao tema suscitado, salvo engano, pela editora Nara Valusca. As homenagens – entre as quais as do Tribunal de Justiça e da Assembleia Legislativa do Estado – davam-se com louvores aos feitos do paraibano que foi Chefe da Nação, legislador e diplomata com atuação no comando da delegação brasileira junto à Conferência de Versalhes e, depois, na Corte Internacional de Haia.
Na Paraíba, os pronunciamentos tinham, entre outras, as vozes do ex-secretário geral do Itamaraty Marcos Azambuja e do embaixador do Timor-Leste no Brasil Gregório de Sousa, convidados de honra para as celebrações que duraram alguns dias. Na matéria do Jornal da Paraíba, observei que Epitácio Pessoa estaria a dever a Marcílio o reparo a uma mancha na biografia: aquela que o vinculava à proibição, por decreto, de negros no time de 1921.
Seleção brasileira de futebol na Copa América (Copa Sulamericana) de 1921, realizada em Buenos Aires. ▪ DP
A história do “decreto de branqueamento” atribuído ao ex-presidente, “por razões de prestígio patriótico”, chegara ao conhecimento de Marcílio Franca quando da leitura de um artigo escrito, em 2006, para o magazine francês “L’Equipe” pelo cientista político Pascal Boniface, também diretor do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas de Paris. Incomodado, nosso amigo pediu a Pascal, por escrito, maiores informações sobre a matéria. Mas ficou sem resposta, a não ser a de que o articulista estava de férias, fora da cidade.
Decidiu, então, procurar por conta própria o decreto que, se existente, aproximaria Epitácio dos propósitos com os quais Hitler editara a infame “Lei para a Proteção do Sangue e da Honra Alemães”.
Sua consulta à base de dados da legislação federal mantida pelo Senado não o levou ao suposto decreto nem a qualquer ato jurídico neste sentido. Sequer, a uma mísera portaria.
Marcílio convencia-se, então, de que Pascal fora induzido ao erro após a leitura da versão francesa do livro “Futebol ao Sol e Sombra”, do jornalista uruguaio Eduardo Galeano. Assim, decidiu verificar o texto original, em espanhol, oportunidade na qual observou que o próprio Galeano crivou o termo “mandato de blancura”. Ou seja, não um decreto, mas alguma ordem, ou determinação pessoal.
Com apego à precisão da linguagem, coisa bem típica dos juristas, ele via a coisa mudar de figura, conforme conta no artigo que produzira no ano seguinte, muito antes, portanto, da nossa conversa sobre o assunto. Mas, teria Epitácio ordenado, de fato, a exclusão de negros do time convocado para as disputas na Argentina por esse, ou qualquer outro modo? – perguntou-se.
A continuidade das buscas o levou a uma crônica publicada num dos dois volumes das “Obras Completas”, de Lima Barreto. Este mesmo, o autor do “Triste fim de Policarpo Quaresma”. Fora texto produzido um dia antes da estreia do Brasil naquela
Seção de esportes do Jornal Correio da Manhã, na edição do dia 17.09.1921.
Copa América. Nele, o escritor menciona a ordem de Epitácio para vetar a participação de negros na Seleção, mas atribui a informação a outra fonte: um suelto d’O Correio da Manhã, edição de 17 de setembro de 1921.
Pronto, Marcílio não teve mais dúvida de que Epitácio foi vítima de campanha difamatória do jornal carioca que então capitaneava a oposição ao Governo Central. Em dois editoriais colhidos pela biógrafa Laurita Pessoa Raja Gabaglia e aos quais nosso amigo recorreu em defesa de sua tese, Epitácio é tratado como “alucinado”, “tirano de opereta”, “réprobo”, “comediante” e “enfermo dominado pelo delírio de mandar”.
Já fora da Presidência, Epitácio processou, com êxito, o jornalista Mário Rodrigues então condenado por crime de imprensa a um ano de prisão, além de multa pessoal por injúria e calúnia. E Marcílio observa:
“É neste cenário muito distante da isenção jornalística e da objetividade factual que se dá a notícia mencionada por Lima Barreto e reproduzida, desde então, na historiografia do futebol brasileiro”.
Lima Barreto (1881—1922), jornalista e escritor carioca. ▪ Fonte: Wikimedia
Naquela Copa América de 1921, o time branco do Brasil perdeu para o Uruguai e a Argentina (a campeã), mas voltou para casa com a taça de vice. Era formado por Kuntz, Telefone e Barata; Laís, Alfredinho e Dino; Zezé, Candiota, Nonô, Machado e Orlando Torres. Kuntz, a grande revelação nacional, ganhou o título de “El Coloso” e um tango com este nome. Para Epitácio sobrou a má fama.