É o jurista, escritor e acadêmico da ABL Joaquim Falcão, não por acaso pernambucano, quem chama a atenção para o tema na apresentação...

Joaquim Falcão e o individualismo arrogante de São Paulo

joaquim falcao mario andrade arrogancia paulista
É o jurista, escritor e acadêmico da ABL Joaquim Falcão, não por acaso pernambucano, quem chama a atenção para o tema na apresentação que escreveu para a republicação do Manifesto Regionalista, de Gilberto Freyre (Editora Massangana, Recife, 2016). Para quem já leu outros textos de Falcão, não é novidade suas opiniões e argumentos a respeito dessa questão e de outras assemelhadas. Sem nenhum bairrismo, ele continua firme – e convincente – em sua defesa de Gilberto Freyre contra o boicote uspiano,
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o que, de certo modo, implica na opção pelo Manifesto Regionalista (pernambucano) de 1926 face ao Manifesto Modernista (paulistano) de 1922. Essa opção, devidamente justificada, tem outras implicações, como veremos a seguir.

O embate, sabe-se, não é novo. Está completando por esses dias um século de desencontros desinteligentes. Desinteligentes, ao meu ver, mais por conta dos paulistas, principalmente de certos uspianos, que do pernambucano de Apipucos. Houvesse menos preconceito geográfico e cultural, contra o Nordeste em geral e contra o sociólogo do Recife em particular, e um pouco de lucidez para se reconhecer e proclamar o valor das contribuições intelectuais de Freyre, para além de alguns de seus posicionamentos políticos, e tudo – ou quase tudo – estaria resolvido, numa civilizada e necessária confraternização da inteligência brasileira como um todo.

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Gilberto Freyre (1900—1987), escritor, antropólogo, jornalista, poeta e pintor pernambucano ▪ Fonte: Fundaj
São Paulo, a partir do momento em que se tornou o centro econômico do país, e ainda antes de substituir o Rio de Janeiro como centro cultural do Brasil, sempre se considerou, não sem uma certa prepotência, a locomotiva nacional, atrás da qual vinham e vêm, ou deveriam vir, quase submissos, os diversos vagões estaduais, maiores e menores. Daí, de modo geral, não serem simpáticos os paulistas para os demais brasileiros, os quais, com razão, desprezam o nariz empinado daqueles outros; daí, surgir vez por outra movimentos separatistas, objetivando tornar São Paulo um país independente, como se se bastasse a si mesmo. Quem quiser que negue, mas que é um fato, é, sem prejuízo do justo reconhecimento da importância do grande estado sudestino, cujo progresso, aliás, tanto deve aos brasileiros de outras regiões e aos imigrantes estrangeiros.

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São Paulo, 1920s: Parque do Anhagabaú e Teatro Municipal ▪ Fonte: SP Antiga
Talvez essa arrogância toda seja o revide do presente contra o passado provinciano da capital paulista face ao inegável cosmopolitismo do Rio de Janeiro, tanto enquanto capital do país, quanto depois. O jornalista e escritor Ruy Castro afirma que foi exatamente devido a esse provincianismo paulistano que a Semana de Arte Moderna de 1922 aconteceu lá, pois o Rio já era moderno àquela altura e portanto não precisava de promover um movimento nesse sentido. Esta tese irritou muitos paulistas, como seria de esperar.

Mas vejamos o que escreveu Joaquim Falcão: “Um quase antirregionalismo, um esboçado individualismo tem sido a marca de São Paulo”. E completa: “São Paulo não é regional. Nem se acredita regional.
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Joaquim Falcão, professor, advogado e escritor carioca. ▪ Fonte: YT Itaú Cultural
São Paulo não faria a defesa dos regionalismos. Nunca fez. São Paulo sempre foi ator principal na guerra econômica entre estados. Na guerra fiscal, diríamos hoje. O ego paulista repudia, por vantagem quase arrogância de vencedor, o regionalismo”. Mais clareza, impossível.

E ele faz outra observação interessante – e verdadeira: o Sudeste, onde São Paulo está inserido, não constitui realmente uma região em termos culturais, mas apenas em termos políticos e geográficos. De fato, não há uma identidade entre os quatro estados sudestinos, assim como, em linhas gerais, existe uma identidade nas demais regiões do Brasil. E vou além: talvez nem haja – ou haja pouca – identidade entre os próprios paulistas, tão misturados que foram – e são - aos estrangeiros das mais variadas origens, tanto na capital como no interior.

Falcão ainda distingue os dois manifestos, o de 22 e o de 26, para dar primazia ao segundo, sob o incontestável argumento de que o primeiro foi um “documento importador de vanguardismos europeus” e este último um “documento de exportação de tradições e invenções tropicais”. Veja-se a imensa diferença entre ambos. São complementares? É possível. Mas muitos paulistas uspianos só têm olhos para uma das partes, aquela que lhes diz respeito, confirmando assim a propalada arrogância bandeirante.

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Natal-RN, 1929: Mário de Andrade, durante viagem ao Nordeste, na casa do escritor Câmara Cascudo ▪ Imagem: Adamastor Pinto
Mas sejamos justos: existem paulistas legais, é claro. Conheço alguns. O próprio Mário de Andrade, que, segundo o crítico Hildeberto Barbosa Filho desejava ser “o professor do Brasil”, no sentido de “reinar” intelectualmente sobre o resto do país, interessou-se em conhecer e explorar as demais regiões brasileiras em busca do Brasil profundo, inencontrável que era – e é - na Avenida Paulista. Entretanto, no geral, prevalece o individualismo, não raro esnobe, apontado por Joaquim Falcão.

A fértil inteligência nordestina (Joaquim Nabuco, Oliveira Lima, Tobias Barreto, Pedro Américo, José Américo de Almeida, José de Alencar, Raquel de Queiroz, Graciliano, José Lins do Rego, Celso Furtado, Ariano Suassuna, Josué Montello, João Cabral de Melo Neto, Câmara Cascudo, Augusto dos Anjos, Rui Barbosa, Castro Alves, Mauro Mota, Joaquim Falcão, Cícero Dias, Manuel Bandeira, Gilberto Freyre, Aloísio Magalhães, Marcos Vilaça, Jorge Amado, João Gilberto, Barbosa Lima Sobrinho, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gilberto Amado, entre muitos, muitos outros) deve dar nos paulistas metidos a besta uma dor de cotovelo danada. E é bom que seja assim, para que se convertam à humildade e à coletiva e mestiça brasilidade que une todos nós.

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