O título é uma das frases impactantes do diário de Esther “Etty” Hillesum (Diário: 1941-1943; tradução de Maria Leonor Raven-Gomes, Lisboa, Assírio & Alvim, 2008, p. 86), jovem judia neerlandesa, que morreu, antes dos trintas anos, em Auschwitz.
Escrevendo seu diário – sete cadernos com registros entre 1941 e 1943 –, no mesmo momento em que o fazia outra judia famosa, Anne Franck, Etty Hillesum viveu o mundo em desintegração, vendo os amigos serem presos e serem, um a um, mortos. Não se desencantou, mas expressou a angústia e o conflito terrível que a dominava, através de uma profunda reflexão sobre a vida. E ela o faz escrevendo, buscando a melhor forma para expressar, de modo lúcido e denso, o momento de tensão, em que ela se vê tentando uma conciliação entre o ódio e o amor; o ressentimento e o perdão; a visão parcial da doutrina socialista com que fora impregnada e a visão holística do que é o ser humano:
“Costumava achar que os meus conflitos interiores se passavam da seguinte maneira, mas era uma explicação demasiado superficial: achava, quando se dava aquela luta voraz dentro de mim entre o ódio e os meus outros sentimentos, que essa luta era entre os meus
Etty (esq.), com seus pais e irmãos ▪ Fonte: Fund. Etty Hillesum.
instintos viscerais de judia ameaçada de aniquilação e as minhas ideias socialistas racionais e aculturadas que me ensinaram a não contemplar um povo na sua totalidade mas como uma parte boa enganada por uma minoria má. Portanto, um instinto primitivo em oposição a uma deturpação racional.
Mas vai mais fundo do que isso. O socialismo permite que entre por uma porta traseira o ódio contra tudo o que não faz parte do socialismo. Dito assim, é um bocado rude, mas eu sei o que quero dizer com isto.
A vida não se deixa prender num determinado esquema.”
p. 69-70
Querendo viver e expressando esse desejo de modo erótico, não necessariamente sexual, na relação com o seu terapeuta Julius Spier, e na força do que escreve, bem como das suas leituras diárias da Bíblia, Dostoiévsky e o poeta Rilke, Etty Hillesum escolhe o amor e o caminho de ver a humanidade como um todo, cujo destino bem pode ser a união universal:
“Este é um problema dos tempos que correm. O grande ódio contra os alemães, que me envenena a alma. ‘Eles que se afoguem, essa ralé, deveriam ser todos fumigados’.
Estas observações fazem parte da conversa do dia-a-dia e às vezes provocam-nos a sensação de que é impossível viver nesta época. Até que de repente, há umas semanas, me surgiu a ideia libertadora, hesitante e frágil como um rebento de relva que começa a nascer num terreno bravio rodeado de ervas daninhas: mesmo que só houvesse um alemão digno de ser protegido contra essa chusma bárbara, por causa desse alemão decente não se deveria derramar o ódio sobre um povo inteiro.
Isto não significa que uma pessoa deva ter uma atitude indecisa em relação a determinadas correntes, uma pessoa toma posição, indigna-se regularmente com determinadas coisas, tenta informar-se, mas o ódio indiferenciado é a pior coisa que existe. É uma doença da própria alma. O ódio não faz parte do meu feitio.”
p. 69
Constata-se que a sua luta diária não é só contra o mundo que desmorona, mas também com a expressão linguística. Como expressar em palavras a catástrofe em andamento que nos circunda? Eis aí o drama de quem escreve e que não se contenta com banalidades.
Julius Spier (1887–1942), psicoquirólogo alemão ▪ Fonte: JCK Nederland ▪ PD
Como explicar, nesse contexto, em que Etty vivia, que se ama uma pessoa masculina, mas não se ama, necessariamente, o homem que aquela pessoa é? O conflito íntimo que a envolve, na sua relação com Julius Spier, traz-lhe preocupações, pela consciência de que não é um conflito só dela, mas de muitas outras mulheres. Diante de tantos problemas reais e insolúveis, Etty se desdobra em mais um, envolvida em buscar a expressão escrita ou literária perfeita, como uma maneira de organizar-se e, assim, ajudar na organização de outras pessoas (4 de agosto de 1941, p. 99):
“Não há nada a fazer, tenho de resolver os meus problemas e continuo a ter a sensação de que, quando os resolver para mim própria, os resolvo também para milhares de outras mulheres. E por isso devo ‘explicar-me’ tudo. Mas a vida é bastante difícil, e sobretudo quando não se consegue achar as palavras.”
Etty Hillesum ▪ Fonte: FEH
Após passar por mais um dia de horror (14 de junho de 1941), com prisões indiscriminadas, com a separação de entes amados, Etty continua na sua jornada de procurar o sentido da vida, tomando a consciência de que cabe a cada um decidir consigo mesmo e com Deus, se a vida, após um terror sucessivo e frequente, continua ou não tendo sentido. O essencial é a busca, diante de tantas coisas ameaçadoras e sinistra, e a luta contra a impotência.
Etty Hillesum ▪ Fonte: FEH
No dia seguinte, Etty complementa com uma frase avassaladora para a verdade que ela estava vivendo. Apesar de todo um esforço, no sentido de tentar compreender o sofrimento da Humanidade, ela se deixa, em alguns momentos, tomar pela sensação de uma impotência aniquiladora: “Somos apenas barris ocos pelos quais flui a História Mundial” (15 de junho de 1941, p. 92). Sabendo, no entanto, que deve lutar contra a impotência, Etty mostra que devemos viver de acordo com as nossas limitações, não que isto signifique ausentar-se ou omitir-se diante das situações, quaisquer que sejam elas, mas tendo a consciência de que
“uma pessoa não pode ser constantemente um campo de batalha, é preciso sentir regularmente os pequenos limites próprios que a rodeiam, dentro dos quais a pessoa continua então a viver metódica e conscientemente a sua vida, cada vez mais madura e aprofundada pelas experiências que tem nos momentos ‘impessoais’ de contacto com a humanidade inteira.”
idem, p. 94
Isto dito por alguém que viveu um dos mais terríveis momentos da humanidade, sentindo o cerco fechar-se sobre si, vivenciando a perda de parentes, de amigos, de conhecidos e de desconhecidos, com o seu direito de ir e vir limitado aos guetos e ao que foi determinado pelos pogroms ganha um significado diferente
Países Baixos, 1940s: a cidade de Roterdã, após ataque forças nazistas. ▪ Fonte. Wikimedia
do que se pode atribuir a alguém que diga o mesmo, vivendo fora do turbilhão que ela viveu. Não era apenas a força do nazismo na sua expansão na Holanda e nas vidas violentamente subtraídas por um programa racional de segregação e, posteriormente, de genocídio (aqui o termo vai bem aplicado ao que ele significa), mas como os tentáculos do extermínio atingiam os que não aguentavam a pressão da violência cada vez mais ingente. É o caso do professor Willem Adriaan Bonger, que se suicida. Etty, que o encontrara e o acompanhara, colocando o braço à sua volta, no dia anterior, foi a última pessoa com quem ele falara. Apesar de sua habitual sisudez, “o enérgico Bonger estava tão indefeso, como uma criança” (25 de março de 1941, p. 84). É emblemática a resposta que ele dá a Etty, quando lhe pergunta se ele acredita que a democracia acabará saindo vitoriosa do embate contra o arbítrio, a prepotência e a violência (idem, p. 85):
Willem Bonger (1876—1940), criminólogo e sociólogo neerlandês ▪ Fonte: Wikimedia
O desalentador é que ainda viveremos várias e várias gerações até isto acontecer, pois a sede de controle e de poder continua a se manifestar, cada vez mais forte e mais manipuladora no seio do ser humano.
Um livro como este, que se junta a tantos outros relatos, deveria ser mais do que lido, deveria ser compreendido na sua essência, por quem julga os fatos acontecidos distanciados deles e em confortáveis gabinetes com ar condicionado. Etty, em lugar de tentar se esconder, faz-se voluntária por um ano, de agosto de 1942 a setembro de 1943, trabalhando num hospital improvisado no Campo de Concentração de Westerbork,
Países Baixos, 1940s: Campo de Concentração de Westerbork
criado pelas autoridades holandesas, em 1939, com a intenção de abrigar judeus refugiados da Alemanha. Com a ocupação nazista, o campo tornou-se um espaço de transição para outros campos de extermínio da Europa. A partir daí, cerca de 103.000 judeus foram exterminados em Westerbork. Em setembro de 1943, Etty foi enviada para Auschwitz, morrendo em novembro do mesmo ano.
A leitura de seu diário revela que há várias frentes para as pessoas lidarem com as adversidades, mesmo as atrozes. O primeiro embate, porém, é tentar lidar consigo próprio, reformulando a sua visão de mundo em busca de uma harmonia interior, que vise à melhora do mundo exterior, senão a sua própria melhora, com uma percepção que vai além do lamentar-se e esconder-se. Revelar-se a si mesma e buscar expressar de uma maneira piedosa o que se sente em relação ao outro parece ser a melhor forma de se lidar com a vida. Eis a lição de sua vivência realmente humanitária, traduzida nas últimas palavras de seu Diário (13 de outubro de 1942, p. 333) – “Gostaria de ser um bálsamo para muitas feridas.”
Fonte: Associazione Culturale Dioniso
Há pessoas que travam uma luta constante, dentro de si, vivem em luta contínua, mas por um mundo exterior, movidas por algum interesse ou por alguma causa menor, em estado permanente de agressividade contra o mundo. O que Etty nos desvela é que não podemos fugir da luta, mas a verdadeira luta sempre deve começar dentro de nós, conosco mesmos. Qualquer transformação do mundo exterior passa antes pela nossa própria transformação, o que demanda sofrimento, dor, lágrimas. Cada sofrimento, cada dor sentida e cada lágrima vertida tem um valor excepcional na transformação que intentamos. Não se muda o mundo abraçando causas ou vivendo em guerra permanente contra ele, o que vemos em pessoas, que, muitas vezes, vivem uma boa condição de vida. Muda-se alguma coisa quando nos mudamos. Quanto ao sentimento de culpa a respeito das desigualdades da vida,
Etty Hillesum ▪ Fonte: Wikimedia
que se pode sintetizar em “eu tenho muito e tem muitos que nada têm”, há duas alternativas possíveis: tratar a culpa, iniciando pelo processo de transformação do corpo e da alma, ou abrir mão do que tem em favor dos que não têm.
Etty passou por momentos terríveis de cerceamento da liberdade de ir e vir, de opressão, com prisões, desaparecimentos, mortes, suicídios, deportações, mas soube mostrar um caminho para o processo de cura: buscar compreender a si mesma, como primeiro passo para compreender e respeitar o outros, no difícil caminho que leva ao amor, rejeitando todo o ódio e ressentimento, não importando de onde eles viessem. O mundo transformado, a verdade restabelecida, a justiça revelada, a paz instaurada, tudo começa dentro de cada um de nós.
O mundo em transe de ser destruído não é apenas o mundo material, em que Etty viveu, ou o corpo social de que ela fez parte. É, sobretudo, o mundo interior, que precisa ser destruído no seu apego ao egoísmo e ressentimentos, para renascer aberto ao verdadeiro humanismo, que busca acolher todos os que sofrem e evita a generalização destrutiva e ruinosa.