A primeira parte de Os Miseráveis chama-se Fantine ; o Livro Primeiro da primeira parte intitula-se Um justo (Un juste), cujo objetiv...

J’ai voté la fin du tyran

os miseraveis victor hugo tirania
A primeira parte de Os Miseráveis chama-se Fantine; o Livro Primeiro da primeira parte intitula-se Um justo (Un juste), cujo objetivo é fazer um perfil de Charles-François-Bienvenu Myriel, bispo de Digne, aclamado pela população como Monseigneur Bienvenu (Victor Hugo tem um modo especial de estruturar os seus romances: divide-os em partes; cada parte em livros, e cada livro em capítulos).

os miseraveis victor hugo tirania
GD'Art
De acordo com o perfil traçado, que mostra a grandeza espiritual de Monseigneur Bienvenu, é compreensível que a população tenha escolhido este nome, em lugar de Myriel. Suas ações sempre em favor dos mais necessitados afirmam que ele não é bem-vindo (bienvenu) apenas no nome. São as estratégias da criação literária a serviço do escritor.

Dos 14 capítulos que constituem o Livro Primeiro (todo este Livro tem 70 capítulos), o Capítulo X – O bispo em presença de uma luz desconhecida (L’évêque en présence d’une lumière inconnue) merece um destaque por abordar os acontecimentos políticos decorrentes da Revolução Francesa, tema de grande importância para a narrativa do romance como um todo. Os elementos históricos, portanto, estão postos, neste Livro Primeiro, e serão desenvolvidos no decorrer da narrativa, que se estende de 1789 a 1832 – da Revolução Francesa às infrutíferas barricadas contra Luís Filipe, o último rei de França. A Revolução e o Período do Terror (1793-1795) são apenas referidos, mas dão sustentação a dois momentos históricos que constituem a essência da narrativa: a Batalha de Waterloo (18 de junho de 1815) e as barricadas de 1832 (5 e 6 de junho). Lembremos que a narrativa de Os Miseráveis inicia no outono de 1815, logo após a derrota de Napoleão, e Waterloo, um pouco antes do verão daquele ano.

os miseraveis victor hugo tirania
GD'Art
Homem de origem nobre, Monseigneur Bienvenu deixa a França após os eventos que culminaram com o Período do Terror. Quando retorna, já morta a esposa e sem filhos, ele entra para o sacerdócio. Posteriormente, Napoleão o faz bispo de Digne, função que ocupava desde 1806. Apesar de bispo, Monseigneur Bienvenu (inspirado no verdadeiro bispo de Digne, entre 1753 e 1834, Charles-François-Bienvenu de Mollis) rejeita todos os privilégios, comodidades e luxo, que cabem a um prelado, e destina toda a sua renda aos pobres. Não contente, ele transforma em hospital o luxuoso e amplo palácio episcopal e toma o hospital como residência – “uma casa estreita e baixa, de um único andar, com um jardim”
os miseraveis victor hugo tirania
GD'Art
(Les Misérables, Oeuvres completes, Roman II, Paris, Robert Laffont, 2008, Primeira parte, Livro I, Capítulo II, p. 7, tradução nossa). Concentrando toda a sua atenção em cuidar dos mais pobres, ele não fazia parte do alto clero da Igreja – “Monseigneur Bienvenu, humble, pauvre, particulier, n’était pas compté parmi les grosses mitres” (Monsenhor Bienvenu, humilde, pobre, de hábitos privados, não estava entre as grandes mitras, Capítulo XII, p. 43).

Monseigneur Bienvenu vivia o verdadeiro cristianismo, consciente de que o seu apostolado se fundamentava na caridade e na busca de vencer-se a si mesmo, fazendo-se melhor para o outro, sobretudo o outro mais necessitado – “Ele visitava os pobres, quando tinha dinheiro; quando não tinha mais, visitava os ricos”, Capítulo V, p. 18). Em resumo, dir-se-á que, devotando a sua vida para guardar as almas de seu rebanho, ele não só dá tudo o que tem aos indigentes e aos doentes, mas também deixa sua casa aberta a quem dele precisar, estabelecendo uma nuance entre a porta da casa de um padre e a de um médico: “A porta do médico nunca deve estar fechada; a porta do sacerdote deve estar sempre aberta” (Capítulo VI, p. 22).

os miseraveis victor hugo
GD'Art
É com esse espírito de grandeza que Monseigneur Bienvenu vai visitar G., o convencional, que habita as montanhas de Digne, e está no fim da vida, necessitando de um médico. Não há nesse Livro Primeiro de Os Miseráveis momento mais claramente político do que o Capítulo X. O personagem G., sendo convencional, é “quase um regicida” (p. 31). Como convencional, ele participou do regime instituído em 1792, que fundou a primeira república francesa (21/09/1792), votou pela execução de Luís XVI (entre 15 e 21 de janeiro de 1793) e instituiu o Período do Terror. O cidadão G. não votou pela morte do rei e da monarquia, mas afirma, de modo peremptório, que contra a tirania – “J’ai voté la fin du tyran” (Eu votei pelo fim do tirano, Capítulo X, p. 33).

A visita de Monseigneur Bienvenu coloca frente a frente dois adversários, que se respeitam; um, defende a piedade; o outro, a revolução e o seu ideal, a igualdade. Para G., “a revolução francesa é o mais poderoso passo do gênero humano, depois do surgimento do Cristo”; “é a sagração da humanidade” (p. 34). É, antes de tudo, o importante debate entre o Estado laico e a Igreja. Aquele não deve abolir esta, mas também não deve ser tutelado por ela. O convencional G. é defensor do estado republicano, que só se constrói com uma luta incessante pelo fim da ignorância, tendo nos seus fundamentos a ciência, único modo de abolir a miséria e proteger os mais pobres.

os miseraveis victor hugo tirania
GD'Art
Embora em campos diferentes, os dois estão corretos. Monseigneur Bienvenu, mais do que um bispo preocupado com os paramentos e privilégios, é um verdadeiro cristão, capaz de dar a vida pelos excluídos e miseráveis, acolhendo-os e, realmente, andando ao seu lado, vivendo uma vida humilde e cheia de renúncias. Por sua vez, G. é um revolucionário que proclama a necessidade de destruir o grande tirano de qualquer nação: a ignorância. Entenda-se, portanto, que o tirano contra quem G. votou era a ignorância, monstro capaz de engendrar “a realeza, a autoridade tomada na falsidade, enquanto que a ciência é a autoridade tomada na verdade”. Com essa concepção, G. tem a convicção de que “o homem não deve ser governado senão pela ciência” (p. 33), porque se a ignorância pare a realeza, a ciência pare a república.

G. põe sua vida e energia em defesa da ciência; Monseigneur Bienvenu o faz pela consciência. A síntese está na resposta de G.: “A consciência é a quantidade de ciência inata que temos em nós”. É isso que leva o espírito republicano a “mais do que destruir os abusos, modificar os costumes” (p. 34). Ao final da visita, Monseigneur Bienvenu “redobra de ternura e de fraternidade pelos pequenos e pelos sofredores” (p. 38).

os miseraveis victor hugo tirania
GD'Art
O Capítulo X procura o equilíbrio entre a ação política e a espiritualidade, o que o torna um dos mais políticos e significativos de Os Miseráveis, resultando numa repercussão decisiva no espírito de Jean Valjean, guiando-o para a defesa dos pobres e injustiçados, como Gavroche, e dos estudantes revolucionários, como Marius, mas defendendo, como ação política, os meios não-violentos para que as mudanças aconteçam.  A luz desconhecida, em cuja presença Monseigneur Bienvenu esteve, é a consciência da necessidade de prestar auxílio a quem necessita, e a inclusão da ciência como imprescindível para que mudanças estruturais ocorram. Afinal de contas, consciência é, literalmente, a partilha do conhecimento, unindo matéria e espírito, e, como afirma G., “mais do que destruir os abusos, é necessário modificar os hábitos” (Plus que détruire les abus, il faut modifier les moeurs, p. 34).

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE
  1. Anônimo5/7/25 06:59

    Ciência e consciência se complementando para mudar o mundo para melhor. Seu texto, Milton, como sempre, informa e forma o leitor. Parabéns. Francisco Gil Messias.

    ResponderExcluir
  2. Anônimo5/7/25 09:05

    Despertei agora, e li esse seu cativante texto.
    Forte abraço.
    Astenio.

    ResponderExcluir
  3. Anônimo5/7/25 09:35

    Obrigado, Dr. Astenio!

    ResponderExcluir
  4. Anônimo5/7/25 09:36

    Forte abraço!

    ResponderExcluir
  5. Anônimo5/7/25 09:44

    Grande Victor Hugo. Excelente texto.

    ResponderExcluir

leia também