No próximo dia 1º de agosto deste 2025 fará cinquenta anos da morte de Virgínius da Gama e Melo. É uma data a ser lembrada pela Para...

Meio século sem Virgínius

virginius gama melo
No próximo dia 1º de agosto deste 2025 fará cinquenta anos da morte de Virgínius da Gama e Melo. É uma data a ser lembrada pela Paraíba, onde ele viveu, morreu e, com primazia, espalhou o brilho de sua inteligência. Uma inteligência e um talento, como crítico e romancista, reconhecidos aqui e no Brasil. Sua obra e seus prêmios atestam isso.

Lembro-me bem. Em 1º de agosto de 1975, manhã cedo, com meus inocentes dezenove anos, quase vinte, ia saindo para a universidade. Como de costume, liguei o rádio do carro e quase de imediato ouvi a notícia, dada com uma
virginius gama melo
Virgínius da Gama e Melo
A União
solenidade típica da época. Morrera Virgínius, para surpresa minha e de muitos. Senti na hora o impacto da perda do cronista de O Norte que lia com frequência, assim como do personagem urbano, quase folclórico, que da Churrascaria Bambu e da FAFI dominava a cena boêmia e intelectual da urbe ainda pacata.

De fato, a de Virgínius foi uma daquelas mortes que chegam a abalar uma cidade. Uma morte, talvez por repentina, que naquele dia pairou como uma sombra sobre os pessoenses, uma coisa pesada sobre aqueles que o conheciam, mesmo que só de nome e de jornal, como era o meu caso. Também contribuiu para esse clima a precocidade do óbito, pois o morto tinha apenas 52 anos, apesar de aparentar mais, para o que certamente ajudavam os óculos de grossas lentes de fundo de garrafa.

Houve quem atribuísse à boemia a morte precoce de Virgínius. Muitas madrugadas nos bares a beber e a conversar. É uma possibilidade mas não uma certeza. Os médicos dirão que sim, sempre pregando para os outros uma vida insípida de discutíveis virtudes, que eles mesmos não adotam na privacidade. Os abstêmios farão coro com os primeiros, esquecendo que não beber jamais foi garantia de longevidade para ninguém. E os carolas radicais, que trocam a vida presente pela futura, idem. Mas há os que pensam diferente. Os que defendem o prazer e a alegria (com moderação, é claro) como os melhores antídotos contra todos os males. E por aí vai a controvérsia sem fim.

virginius gama melo
Virgínius da Gama e Melo
A União
Quero crer que o menestrel não lamentou de todo a sua partida súbita. Não deixa de ser uma maneira leve de se despedir, sem o sofrimento das longas enfermidades. Principalmente quando se é sozinho, sem mulher e sem filhos, como era o caso dele, solteirão por opção ou por circunstâncias, comentadas estas à boca pequena. Sobre isso, não se pode fazer afirmações peremptórias. Só o menestrel sabia – ou algum confidente que manteve o bico fechado. Mas a realidade é que ele fazia algum sucesso com as mulheres, especialmente entre as alunas, provavelmente atraídas pelo charme intelectual que dele emanava abundantemente, segundo a versão de muitas. Sabe-se que os feios, quando inteligentes, têm o seu misterioso encanto. Woody Allen que o diga.

O concorrente direto de Virgínius na fascinação do alunado de Letras era seu primo Juarez da Gama Batista, este também mais bafejado pela cultura e pelo talento que pelos dotes físicos. Mas sem o charme da boemia, o que diminuía muito seu potencial romântico. Ao que parece, Juarez não bebia e, com certeza, não frequentava bares nem cultivava noitadas sem hora para terminar. Nem por isso, infelizmente, alcançou idade longeva, o que reforça os tentadores argumentos dos boêmios.

Falei acima em concorrência, mas é só uma maneira de falar, pois não acredito que os dois competissem entre si. E falo isso, esclareço, apenas por hipótese, já que não tive o privilégio de ser aluno deles nem de frequentá-los. Todavia, posso
virginius gama melo
Mário de Andrade
Fapesp
supor que estivessem acima dessas ninharias tão humanas. Por que concorreriam, se cada qual era senhor de seu reino próprio, com seus súditos particulares? É possível que essa hipotética competição acadêmica estivesse mais na cabeça dos seus respectivos alunos, numa não de todo improvável e inofensiva disputa tipo Marlene e Emilinha Borba.

O fato é que não se repetiu entre nós, na universidade e fora dela, o domínio intelectual que essa dupla notável exerceu, sem contestações, sobre uma geração inteira de estudantes de Letras e sobre a cultura paraibana como um todo. Um domínio que me faz pensar em Mário de Andrade em São Paulo, antes, durante e após a Semana Modernista de 1922. No nosso caso, um verdadeiro fenômeno provinciano. Um feliz fenômeno provinciano, que tanto enriqueceu a vida cultural da capital paraibana nos anos sessenta e setenta.

Virgínius foi um solitário. Fundamentalmente, um solitário. Mesmo que tenha vivido rodeado de gente. Carregava a solidão como quem carrega um trancelim (palavra antiga) no peito, por baixo da camisa, sem ninguém ver. Morava com umas tias idosas, como compete a quem não formou família própria. Arrisco a tese de que sua assumida boemia foi sua defesa contra a solidão das noites, assim como as aulas o defendiam de dia. Suas crônicas e seus artigos, ensaios e romances, tudo também foi forma de deixar de ser sozinho, entregando-se aos leitores como se estes fossem tábua de salvação.

virginius gama melo
Virgínius da Gama e Melo
A União
Por falar em aulas, um amigo, que foi seu aluno, não o aprecia como mestre. Alega que ele mais conversava que ensinava, gastando o tempo com tergiversações para além ou aquém do programa das disciplinas. Acredito. Mas suponho que meu amigo esteja sendo muito rigoroso, talvez por, sendo estudante muito responsável, aspirar tão somente ao que era previsto no programa citado, enquanto o professor ensinava por outros métodos o que não constava dos livros didáticos, numa pedagogia mais socrática que aristotélica, arrisco dizer. Não sei. É possível que meu amigo tenha razão. Mas o que imagino é que eu teria gostado de ouvir essas tergiversações virginianas, mesmo com prejuízo curricular.

Nosso decano Gonzaga Rodrigues escreveu linda crônica sobre a partida de Virgínius. Chama-se “Revoada” e consta de seu livro Um sítio que anda comigo (Edições Grafset, João Pessoa, 1988). Permita-me o leitor, para finalizar esta pequena homenagem, transcrever os parágrafos finais do texto gonzaguiano, que dizem tudo e mais alguma coisa, sem necessidade de acréscimos:

“Um dia antes de sua morte, saíra da casa de Pedro Gondim às duas da manhã, o táxi lá fora, esperando. — Vou numa condição: a de não ir para casa. Deixe-me na Praça Pedro Américo – ordenou ao motorista. Nesse tempo a praça era, realmente, de Pedro Américo, guardada de copas e povoada de pombos. Sem dispensar o táxi, saltou e foi sentar-se, encorujado, num banco solitário, indiferente ao frio, esperando a manhã como quem espera um novo nascimento. Veio a primeira luz e com ela a branca revoada de todos os pombos. Também de branco, feliz, Virgínius voava nessas asas. O motorista sem perceber, e Virgínius, em leve ascensão, compreendendo o pasmo do pobre motorista. A mesma atitude de compreensão que ele teve para com a arte e para todos que o procuravam”.

Obrigado, Gonzaga. E viva o menestrel.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE

leia também