Vou tratá-la assim, por nome muito diferente daquele com o qual o pai, a mãe e os padrinhos a levaram à pia batismal. Não quero confusão com possíveis parentes, embora eu não saiba, na idade em que hoje me encontro, da existência de ascendentes nem descendentes da moça vinda ao mundo para o desgosto dos seus e de si mesma. O filho único, fruto da terceira união mais estável, não resistiu à leucemia que o abateu em tenra idade.
GD'Art
Estava, portanto, sozinha no mundo quando a morte também a apanhou, já envelhecida.
“Essa, aí, não cansa de procurar encrenca. Até parece que não é feliz sem sofrer”, ouvi isso, certa vez, do meu pai, à hora do almoço, quando a conversa tinha como tema outro passo errado da prima. Estávamos em número de seis à mesa, contados os donos da casa, os três filhos pré-adolescentes que então éramos e o tio de quem mais gostávamos.
Zombar da desgraça alheia... Foi a primeira vez que eu atinei para a gravidade do termo. Meu tio puxou a fila dos risos: “Você percebe o absurdo do que acabou de dizer?”. E meu velho, quando já recomposto: “Não foi por maldade”, desculpou-se. Mantive minhas dúvidas.
Aprendi a gostar de Olga à medida que eu amadurecia e despertava os sentidos para as desventuras humanas, dessas das quais nenhum de nós estará livre, se a má sorte, numa de suas tocaias, nos pegar desprevenidos. Uma informação aqui, outra acolá, e fui montando a história dela. Mais do que isso: fui admirando sua insubmissão, sua coragem, sua alma de ferro.
GD'Art
Saíra de um relacionamento complicadíssimo. O marido abusador fugiu de casa ao ter o peito queimado por água fervente. Aprendeu que não é em qualquer mulher que se pode bater sem troco imediato. A dor o fez suspender a surra que nela aplicava e correr aos gritos para o socorro médico. Fuga sem volta, pois recomendada pela prudência. Poderia ter sido água quente no ouvido, na hora do sono. “A desgraçada é bem capaz disso”, assim garantia aos parentes e amigos que lhe recomendassem a reconciliação. Não houve queixa de nenhum dos dois lados à Polícia.
Casamento findo, Olga suportou o escândalo e a fama de cangaceira que dela afastaram os ocasionais pretendentes. O medo que a estes impunha na pequena cidade onde nasceu e viveu até os 23 anos era maior do que sua beleza.
GD'Art
E como era bela essa minha prima distante, porquanto em terceiro grau. Caí o queixo ao vê-la em plena juventude, há pouco, num velho álbum. Escrevo, então, sob o efeito do encantamento. Quem diria que o farrapo humano que me acariciou a face, nos meus 14 ou 15 anos, já foi aquele encanto de mulher aparecido numa fotografia amarelada de cinco por nove centímetros. Tinha ao fundo, as águas do Capibaribe e os sobradões da Rua da Aurora. Flores brancas num canteiro mais próximo emolduravam a paisagem e a modelo bonita, indiscutivelmente, bonita.
Sim, o Recife foi o pouso subsequente aos sopapos recebidos e à água quente atirada no lombo do traste que a levou ao altar. Ali, recomeçaria a vida com o abrigo inicial de uma amiga de infância a exemplo de quem também se fez garçonete do restaurante onde teve o primeiro emprego. Quando lhe foi possível, alugou a própria casa. Não era do seu feitio pesar nas costas de ninguém.
Meses depois, desasnada o suficiente para as idas e vindas às praças, aos parques e às festas, aprendeu que um espírito de ferro pode ter um coração de manteiga. Certa noite, o diabo pôs diante de si, olhos nos olhos, um moreno alto, atlético, encantador.
GD'Art
Ele e um trombone de vara tocado à perfeição. Quando uma frase musical mais dolente a fez suspirar, o secretário do demo desceu do palco até a mesa do clube do bairro onde ela estava com algumas amigas para soprar-lhe quase ao ouvido, suavemente, juras de paz e amor. Ato seguinte, ele a tinha nos braços e nos passos de um bolero.
Olga, felicíssima, passou, então, a viver assim: dois para lá, dois para cá, até que os sumiços do moço tornaram-se rotineiros. Vieram, então, os desentendimentos. Mas não havia agressões físicas nem verbais naquelas brigas. Foi quando ela, muito aflita, percebeu que a indiferença pode fazer mais estragos do que tapas e água quente.
É dela que tenho lembrado quando me chegam os acordes e a interpretação absurdamente sofrida de Elis Regina em “Atrás da Porta”, a incrível canção de Chico e Francis Hime. Esses dois, digo eu, fizeram um hino ao desespero em sua mais elevada expressão.
Há dor mais cruenta do que a revelada nestes versos: “Me arrastei e te arranhei e me agarrei nos teus cabelos, no teu peito, teu pijama, nos teus pés, ao pé da cama, para mostrar que ainda sou tua”?
Como na interpretação da qual nossa Elis costumava sair arrebentada, as provas de um amor sem freios, tão desmedido, dadas por Olga não lhe foram de qualquer valia. O trombonista ganhou o mundo sem mais notícia. Eu soube que ela, assim abandonada, jamais se recuperou da desilusão em tom maior, crescente, cada vez mais agudo. As concessões feitas ao terceiro homem com quem mais conviveu rendeu-lhe o filho doentinho. A morte da criança coincidiu com a dessa união. A outros tantos amores, a partir daí, ela apenas corresponderia com afagos de momento. Transformou-se naquelas mulheres que dizem sim por coisas à toa. Naquelas que, na manhã seguinte, riscam dos seus cadernos os parceiros transitórios. Vocês sabem, isso vem da canção de desamor que o mesmo Chico fez e Gal pôs no mundo. Teriam, por acaso, conhecido o coração de Olga, na fase dos calos?
Dizem da maria-sem-vergonha (Impatiens walleriana) que é uma planta espontânea, ou seja, que pode nascer sem que ninguém a plante. O mesmo acontece às maravilhas (Mirabilis jalapa), de idêntica beleza. A prima de quem me compadeço, nascida bela, teve a sorte das ervas daninhas que ninguém planta nem delas cuida. Pobre Olga.