Dica de leitura Título: O AMIGO Autora Sigrid Nunez Editora Instante (2019)

Uma sugestão de leitura: 'O amigo'

Dica de leitura

Título: O AMIGO
Autora Sigrid Nunez
Editora Instante (2019)
Na minha recente passagem por João Pessoa, encontrei o poeta e agora acadêmico Gil Messias, que me presenteou com o belo romance de uma escritora que eu não conhecia. Nada mais exultante do que descobrir um bom autor ou autora; é como uma nova paixão.

Li esse romance com poucas pausas: ainda em João Pessoa, no avião e, finalmente, no silêncio do meu apartamento.

Sigrid Nunez Amazon
Sigrid Nunez é americana, filha de mãe alemã e de pai panamenho de origem chinesa. Não deixa de ser um bom coquetel em suas origens. Estudou e lecionou em prestigiosas universidades americanas e é detentora de vários prêmios literários. Ela também escreveu sobre Susan Sontag — Sempre Susan —, e o filme O quarto ao lado, de Almodóvar, é baseado em um de seus romances: O que você está enfrentando.

O romance começa com uma professora-escritora narrando a lembrança da última conversa que tivera com um amigo escritor antes do seu suicídio. A narração se desenvolve através de seus pensamentos, como uma conversa mediada pela memória, pelas lembranças e vivências dos dois. É uma fala solitária, em forma de solilóquio, dirigida àquele homem, como homenagem póstuma. Há também diálogos com as esposas 1, 2 e 3, como ela as chama. Além disso, herdara um dogue alemão que pertencera ao amigo. A história gira, em parte, em torno da sua relação com esse cão, de nome Apolo — um belo pastor dinamarquês, entregue por uma das mulheres do escritor, que não quis ficar com o animal. O leitor logo perceberá quem é o “amigo” do título.

GD'Art
Os suicídios de outros escritores da vida real — que criaram personagens suicidas e depois tiraram a própria vida — também vêm à tona.

Mas o livro é, na verdade, uma reflexão sobre a escrita. Uma frase parece impor-se: “Vença a página em branco!” A autora desenvolve uma série de questões sobre como escrever, o que escrever, por que escrever, e trata dos procedimentos da escrita. Fala sobre as dúvidas, os medos e os métodos para enfrentá-los. Cita autores que vêm complementar suas reflexões. Toda uma gama de escritores é convocada em um amplo painel da literatura, servindo de diálogo com seus temas, como ecos que ressoam de um texto a outro. São paisagens sentimentais, diria, que nos ligam ao mundo literário, como um espelhamento infinito — fluxos e refluxos sobre o tema. A autora parece desenhar um território da escrita. E comenta: “Se a leitura aumenta a empatia, parece que o ato de escrever leva um pouco dela embora.”

A lembrança de um diálogo com o amigo-escritor lhe vem quando ele falava sobre como se tornar um flâneur, deambular para observar a rua. Cita o mantra do amigo:
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“Se não posso andar, não posso escrever.” E o de Simenon: “Todos os meus livros vieram até mim enquanto eu caminhava.”

Achei curiosa a observação do escritor quando comenta que, para a mulher, deambular até atingir a abstração só seria possível na idade madura, momento em que ela se tornaria invisível. Só assim deixaria de ser alvo de importunações masculinas. Quando jovem, o jeito seria perambular com o pretexto das compras.

Ela então comenta: “Mas, hoje o que mais vejo nas ruas são os moradores de rua.” O que me leva a refletir sobre a cidade do Rio hoje: a impressão é a de que há “corpos” por toda parte. Em estado de penúria extrema, enrolam-se em cobertores e andrajos e dormem profundamente, entorpecidos pelo álcool. Chova, faça sol, calor ou frio, jazem diante das portas dos bancos, em esquinas, nas ruas, em todo lugar.

O amigo com o qual ela “dialoga” em sua memória era escritor, professor e mulherengo. Três casamentos e muitos casos com alunas: tinha a sala de aula como um campo erótico. “Um grande professor é um sedutor.” Os problemas advindos dessa relação a fazem citar Coetzee — cujo livro Desonra trata do tema — e George Steiner em Lições dos mestres:

“O erotismo encoberto ou declarado, fantasiado ou encenado, está entremeado no ensino [...] Esse fato elementar foi banalizado por uma fixação no assédio sexual.”
George Steiner Lior Mizrahi
O romance se desenvolve através de suas reflexões sobre essa grande amizade, que parece também se insinuar no campo do amor. A personagem vai meditando sobre a vida do autor e suas relações. Recorda a concepção que ele tinha de seus primeiros leitores e a ideia de que eram inteligentes — mas hoje alguns leem de forma descuidada, ou com uma compreensão muito distante do que ele havia escrito. Dizia que a ascensão da autopublicação foi uma catástrofe que causara a morte da literatura, ou da cultura. Mas Sainte-Beuve, o crítico literário francês, já escrevia em 1839: “Escrever e publicar é cada vez menos especial. Por que não eu?, todos se perguntam.”

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A diferença dos alunos de hoje, pensa a personagem-professora, é que se desinteressaram da literatura. Acham que o livro está morrendo, que a literatura está morrendo, que o prestígio do escritor desapareceu. E então ela se pergunta: por que, ainda assim, todos querem ser escritores?

A autora cria um capítulo final surpreendente, ao se perguntar: “Como a história deve terminar?” Esse se abre para uma reviravolta plausível, totalmente inesperada, que surpreende o leitor. Não falarei sobre ela, para deixar ao leitor o sabor dessas páginas.

Faço, porém, um breve comentário sobre uma discussão que a autora apresenta a respeito do conceito de literatura hoje:

“Não estamos mais vivendo no mundo de Tchekhov”, diz a personagem que reflete sobre a escrita. A figura do escritor sempre esteve ligada ao prestígio. “Hoje essa imagem parece, de alguma forma, suspeita.” E se pergunta por que
Anton Tchekhov Christie's
aqueles que almejam ser escritores hoje os veem de forma tão negativa. “Os escritores são privilegiados, e há a ideia de que pessoas privilegiadas não deveriam estar escrevendo. A não ser que encontrem uma maneira de não escrever sobre si mesmas, porque isso só aumenta a supremacia branca e o patriarcado. Escrever é uma atividade elitista. Mas surge um dilema: os privilegiados não devem escrever sobre si mesmos, nem sobre outros grupos, porque isso seria apropriação cultural.” É o “lugar de fala” que se questiona. Como se agora só fosse possível dar voz aos desfavorecidos. Só haveria espaço para eles.

Em resposta a essa realidade, a personagem explica por que deixou de lecionar:

“A literatura não pode cumprir seu papel em uma cultura como essa. O fato de a escrita ter se tornado tão politizada me perturba, mas meus alunos estão muito bem com isso. Alguns querem ser escritores exatamente por causa disso. E, se você tentar falar com eles sobre a arte pela arte, eles tapam os ouvidos.”

É um belo livro! E traz para a discussão um tema complexo da atualidade literária: os valores tradicionais que definiam o que é literatura parecem oscilar, e a própria figura do escritor é questionada. Aparentemente, é um movimento que tenta desestabilizar as antigas regras eleitas pelos cânones, aquelas que determinavam as chamadas “obras de grande valor literário”.

Essa autora me trouxe uma genuína alegria, com preciosas reflexões sobre a escrita. Ela é uma ótima escritora. Quando gosto de um autor ou autora, procuro ler tudo deles. É o que farei dessa vez.

A Gil Messias, merci mille fois por me apresentá-la.

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  1. Anônimo7/9/25 08:06

    Lúcia, você escreveu um texto que poderia - e pode - perfeitamente estar incluído no livro como prefácio ou posfácio. A qualidade da leitora atenta e sensível está ali expressa com todas as letras. Certamente é de leitores como você que a literatura sobrevive e pode sobreviver. E a literatura, como a arte em geral, é elitizada sim, mas no melhor sentido da palavra e não como a entendem os simplórios que insistem em ver luta de classes em tudo. Coitados, permanecem no século XIX e se julgam pós-modernos! Fiquei muito feliz por tê-la apresentado a Sigrid Nunez, autora que merece ser conhecida e amada. Obrigado por tudo. Francisco Gil Messias.

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  2. Anônimo7/9/25 10:35

    Rsrs obrigada Gil. Que orgulho ter lhe conhecido...um amigo citou Proust sobre essa questão
    dizendo que não se tratava da arte pela arte, mas da arte vir em primeiro lugar. Lúcia

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