Se vivo estivesse, o jornalista e diretor de cinema Linduarte Noronha (1930-2012) faria 95 anos em 2025. Já Aruanda , sua obra-prima,...

Linduarte Noronha: dois fracassos e um sucesso

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Se vivo estivesse, o jornalista e diretor de cinema Linduarte Noronha (1930-2012) faria 95 anos em 2025. Já Aruanda, sua obra-prima, celebra 65 anos. O documentário em curta-metragem retrata o cotidiano da comunidade quilombola que vivia na Serra do Talhado, no município de Santa Luzia, e é considerado um precursor do Cinema Novo — movimento cinematográfico que rompeu com o modelo comercial e alienante da época, em busca de uma arte crítica, engajada e autenticamente nacional. Motivos não faltam, portanto, para celebrar a vida e a obra do cineasta nascido em Ferreiros, Pernambuco, e radicado na Paraíba.

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Cenas de Aruanda, curta-metragem dirigido por Linduarte Noronha em 1960 ▪ Fonte: Youtube
Em 2024, o também cineasta e professor universitário Lúcio Vilar, fundador do Fest Aruanda, organizou o livro Luz, Cinefilia... Crítica!, lançado com selo da Editora A União. A obra reúne seis dezenas de colunas assinadas por Linduarte Noronha, publicadas no jornal A União ao longo de 11 anos: entre 1956 e 1967. Para chegar ao produto final, Lúcio revisitou um acervo de 900 edições do impresso, ao longo de três anos. O livro também inclui ensaios de docentes, pesquisadores, cineastas, jornalistas e críticos de cinema, que se debruçaram sobre a vida e a obra de Linduarte.

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Lúcio Vilar, professor, jornalista, cineasta e produtor cultural, organizador do livro Luz, Cinefilia... Crítica! (ed. A União, João Pessoa, 2024).
Outro projeto de Lúcio Vilar que visa preservar o legado de Linduarte Noronha é o documentário O homem por trás do Cinema Novo, com previsão de lançamento para 2026. O projeto pretende recontar a história de Aruanda e reconstruir a trajetória do cineasta. Para isso, uma equipe de doze pessoas refez os passos de Linduarte em Santa Luzia, reencontrando alguns dos personagens que participaram do curta. A montagem inclui ainda trechos de entrevistas concedidas pelo cineasta em janeiro de 2012 — ano de sua morte —, parte deles inéditos.

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Poster do curta Aruanda (1965). ▪ Fonte: Imdb
Ambas as iniciativas são louváveis e visam lançar novas luzes sobre o “legado eclipsado” de Linduarte Noronha, nas palavras do próprio Lúcio Vilar no prefácio de Luz, Cinefilia... Crítica! Para Lúcio, Linduarte é um “personagem que deixou um rico legado, porém, absolutamente desconhecido, exceto para as gerações contemporâneas que acompanharam sua atuação à época”.

Talvez um dos dados biográficos do cineasta que esteja nas sombras é o seu pendor literário, especialmente como contista. Linduarte era, de fato, muito afeito ao gênero conto — tanto que chegou a apresentar um programa radiofônico chamado Os Mestres do Conto, na Rádio Tabajara, onde foi admitido como locutor após um teste em 1947. Na mesma emissora, ele também apresentou os programas Concerto Noturno e Ondas Literárias, de acordo com o excelente perfil produzido pelo jornalista Marcos Carvalho, publicado na seção Quem Foi?, do jornal A União, em 28 de abril de 2024.

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Artigo Quem foi... Linduarte Noronha?, do jornalista Marcos Carvalho, publicado em A União, edição do dia 28 de abril de 2024. ▪ Fonte: A União Digital
Corria o ano de 1949. Linduarte Noronha tinha apenas 19 anos quando começou a colaborar com o recém-lançado Correio das Artes. Criado em 27 de março daquele ano, o suplemento literário de A União tinha como editor o poeta e jornalista pernambucano Edson Régis.

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1949: capa da primeira edição do suplemento literário Correio das Artes. ▪ Fonte: A União Digital
A jornalista Elizabeth Olegário é autora da dissertação Imaginário impresso e caracteres culturais: uma análise das narrativas do suplemento literário Correio das Artes na década de 1940, publicada em 2016, sob orientação do professor Wellington Pereira. Segundo Elizabeth, a criação do Correio das Artes teve o objetivo de “inserir a Paraíba no circuito artístico e cultural brasileiro, proporcionando maior diálogo entre seus artistas e os artistas de outras regiões”. Ainda segundo a pesquisadora, o novo suplemento “tornou-se, ao mesmo tempo, um desaguadouro e vitrine da produção literária e artística que circulava no estado”.

Linduarte remeteu dois contos de sua lavra para o Correio das Artes. O primeiro intitula-se Angústia, e foi publicado no nº 13, no dia 19 de junho de 1949. O segundo intitula-se Miragem, e foi publicado no nº 17, em 17 de julho do mesmo ano. Graças ao louvável esforço do jornal em digitalizar seu acervo e disponibilizá-lo ao público, é possível ler os dois textos do então jovem aspirante a escritor.

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Contos Angústia e Miragem, de autoria de Linduarte Noronha, publicados no suplemento Correio das Artes, em 1949. ▪ Fonte: A União Digital
Talvez animado com a boa recepção no suplemento literário local, o jovem Linduarte, então com 21 anos, submeteu outros dois textos de sua pena para o Concurso Permanente de Contos* da revista A Cigarra, de São Paulo, em 1951. Mas não obteve o mesmo êxito, como veremos.

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Sobre outro episódio semelhante envolvendo o Concurso Permanente de Contos da revista A Cigarra, ver meu texto Adalberto Barreto: O Tesouro da Pedra e o barulho d'A Cigarra, publicado no aqui Ambiente de Leitura Carlos Romero, em 2023. Nele, recupero a polêmica travada entre o escritor paraibano e a comissão julgadora do concurso, que duvidou da autoria de seu conto O Tesouro da Pedra.

As frustradas tentativas de tornar-se contista

A revista A Cigarra foi uma das mais longevas publicações da imprensa brasileira, tendo circulado por mais de seis décadas, entre os anos 1914 e 1975. A partir de junho de 1939, a publicação instituiu o Concurso Permanente de Contos, criado para “oferecer uma oportunidade a todos os principiantes das letras, e a todos que não tenham onde fazer publicar seus contos”.

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Logomarca da seção de correspondência do Concurso Permanente de Contos promovido pela revista A Cigarra, nas décadas de 1940 e 1950. ▪ Fonte: Biblioteca Nacional

Em 1951, ano em que Linduarte remeteu seus contos, A Cigarra tinha a expressiva tiragem mensal de 65 mil exemplares e integrava o edifício dos Diários Associados, conglomerado comandado pelo paraibano Assis Chateaubriand, o magnata da comunicação brasileira. Sob a direção de seu sobrinho, Frederico Chateaubriand — o Fred —, a revista vivia o auge de sua popularidade, figurando entre as mais lidas do país. Naquele período, o sucesso era anunciado no índice da revista com o lema: “O mensário de maior circulação no Brasil.”

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1951: Seção de correspondência da revista A Cigarra, edição nº 207. Na parte inferior (em destaque), a impiedosa resposta ao primento conto enviado por Linduarte Noronha. ▪ Fonte: Biblioteca Nacional
O julgamento da comissão do Concurso Permanente de Contos foi impiedoso. No nº 207, de junho de 1951, disponível na Hemeroteca Digital, foi publicado o seguinte parecer sobre o texto de Linduarte:

“Muito fraco. Mas muito fraco mesmo”.

Ele, contudo, não desistiu. No mês seguinte, enviou um novo conto para ser apreciado pela comissão. Dois números depois, na edição de agosto de 1951, saiu o novo parecer, igualmente severo:

“Ah, tenha paciência, mas o conto é uma bobagem”.

Infelizmente os textos que Linduarte remeteu ao Concurso Permanente de Contos de A Cigarra talvez nunca venham à lume. Resta que os críticos se debrucem sobre os dois contos publicados pelo Correio das Artes em 1949 para avaliar se o jovem Linduarte tinha futuro como contista.

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Capa do Correio das Artes, edição nº 13, de 19 de junho de 1949, na qual foi publicado o primeiro conto de Linduarte Noronha. ▪ Fonte: A União Digital.
Talvez tenha sido necessário que as suas aspirações literárias fossem tão duramente frustradas para que emergisse o talentoso repórter e o sensível cineasta que ele viria a ser — tendo como matéria-prima não a ficção, mas a realidade. E foi nas páginas da mesma Cigarra que, cinco anos depois, em 1956, Linduarte seria consagrado em um novo certame, o Concurso Permanente de Reportagens.


Perde-se um contista, ganha-se um repórter

Graças ao êxito do Concurso Permanente de Contos, A Cigarra lançou, em 1949, o Concurso Permanente de Reportagens. Em 1956, a tiragem da revista era bem menor mas, ainda assim, bastante expressiva: 45 mil exemplares. Linduarte, já mais maduro, aos 26 anos, enviou a reportagem Feira de Pássaros para avaliação da comissão julgadora. No nº 5, de maio, recebeu o parecer favorável à publicação, em termos bastante elogiosos:

“Ótimo o seu texto. Ótimas as fotografias. Poderia, porém, ter enviado maior número. Entretanto, a reportagem foi aprovada e deverá sair num dos próximos números de A Cigarra. Quanto ao outro caso, é como pensou: só aceitamos trabalhos inéditos. Aguarde a publicação de Feira de Pássaros”.

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1956: a reportagem de Linduarte Noronha sobre a cruel feira dos pássaros é aprovada pela revista A Cigarra. ▪ Fonte: Biblioteca Nacional
Não conseguimos localizar, nos números anteriores, a dúvida que Linduarte parece ter expressado quanto ao ineditismo dos trabalhos. Fato é que Feira de Pássaros foi publicada dois meses depois de aprovada, no nº 7 da Cigarra, em julho de 1956.

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Reportagem Feira de Pássaros, de Linduarte Noronha, vencedora do Concurso Permanente de Reportagens da revista A Cigarra. Publicada na edição de julho de 1956. Fonte: Biblioteca Nacional.
Na reportagem, Linduarte trata da “Feira de Quarta”, num dos pátios públicos de João Pessoa, onde existia “o mais original e típico mercado de pássaros do Nordeste”:

O passarinho sôlto pelos espaços azuis nordestinos [sic.], tem sempre sua vida em perigo. Ora a armadilha: alçapão traiçoeiro, a arapuca, prestes a aprisioná-lo — ora a baladeira elástica de algum moleque vadio ou o chumbo quente do caçador adulto. É constante a feroz perseguição a esses sêres inofensivos [sic.], decoradores da paisagem equatorial.

Com riqueza de detalhes, o repórter descreve o ambiente da feira — repleto de gaiolas, sons e cores — e os tipos humanos que a frequentavam: desde os “peritos”, negociadores experientes e técnicos no assunto, até os “pilungas”, curiosos e aproveitadores que perturbavam o comércio:

São os mesmos vadios que nada fazem, nem compram, sempre com os bolsos vazios. Comprazem-se unicamente, em olhar e dar opinião. Constituem permanente dor de cabeça para os negociantes, às vezes são obrigados a expulsá-los sob ameaça de pancadas ou puxavantes de orelha...
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Capa da edição de A Cigarra na qual foi publicada a reportagem Feira de Pássaros, de Linduarte Noronha. ▪ Fonte: Biblioteca Nacional.
O texto vai além da mera descrição folclórica. Linduarte discute o caráter cultural e popular do gosto nordestino pelos pássaros e pelo canto das aves, mas encerra com uma crítica contundente à caça predatória e ao comércio ilegal, alertando para os danos ambientais e a ameaça de extinção de espécies como a patativa, o curió e o uirapuru:

O caçador sem escrúpulos e ignorante é, na verdade, o maior responsável por essa hecatombe de pássaros. Centenas desses profissionais e desocupados percorrem as matas, trucidando legiões de aves em seu ciclo de reprodução.
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A Cigarra, ed. julho de 1956. ▪ Fonte: Biblioteca Nacional.
Os filhotes morrem de penúria no alto das árvores, por falta da presença materna. Não há pausa, não há trégua no esporte e o resultado está patente: os bosques e as matas estão se despovoando.

Assim como em João Pessoa, as demais cidades do Nordeste e Norte estão cheias desses mercados de pássaros. É um regionalismo pitoresco, mas prejudicial. Os mercadores vão aos poucos eliminando da paisagem a presença das aves canoras, perdurando as qualidades inferiores pelo desinteresse que despertam. Nossas autoridades competentes acham ridículo, talvez, se preocuparem com tão fútil problema.

Tendo sido publicada nas páginas da Cigarra, a reportagem rendeu a Linduarte o prêmio de Cr$ 1.000 (Mil cruzeiros), valor que corresponderia hoje a R$ 789,13, de acordo com a Calculadora Cidadã do Banco Central.

Entretanto, ao que tudo indica, Linduarte não reclamou o prêmio, pois, cinco meses depois, na edição de dezembro, a revista publicou o seguinte aviso:

Envie, urgentemente, seu enderêço completo para que possamos enviar o prêmio a que fêz jus,está bem? [sic.]

A última menção ao nome de Linduarte nas páginas da Cigarra data de abril de 1957, na seção Cartas à Redação. Na carta, ele informa que, estando de férias na faculdade, pretendia viajar pelo interior da Paraíba e por outras regiões do Norte do país em busca de temas folclóricos. Diz ainda que enviaria novas reportagens ao concurso, desta vez melhor equipado fotograficamente — possivelmente com uma câmera Leica.

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Carta de Linduarte Noronha à revista A Cigarra, publicada no nº 4, de abril de 1957. ▪ Fonte: Biblioteca Nacional.
O mais importante, porém, vem a seguir: Linduarte revela que, nos últimos dias, estivera na cidade de Santa Luzia, documentando a “Festa do Rosário”, manifestação “reveladora de profundo sincretismo afro-brasileiro”. Ali estava, já, a semente de Aruanda:

Nestes últimos dias estive no alto sertão paraibano, onde documentei tradicional festa do povo, reveladora de profundo sincretismo afro-brasileiro; trata-se da “Festa do Rosário”, em Santa Luzia do Sabugi, onde personagens paramentados dentro do simbolismo fetichista, realizam interessante ritual pelas ruas ensolaradas do local, em movimentos pitorescos e de grande colorido. Após selecionar as fotografias e revisar o texto, terei o prazer de enviar-lhes no mais breve espaço de tempo, para a devida apreciação.

A resposta da revista foi cordial, mas protocolar:

Tôda revista tem sempre necessidade de grandes reportagens. Qualquer julgamento dependerá, entretanto, do exame do material [sic.].

Não é possível saber as razões pelas quais Linduarte não remeteu as reportagens sobre a Festa do Rosário para A Cigarra. Fato é que ele escolheu A União
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Linduarte Noronha (1930—2012), jornalista, cineasta e crítico de cinema pernambucano, radicado na Paraíba.
para publicar a série de textos que antecederam a produção de Aruanda. Segundo o jornalista Marcos Carvalho, a primeira dessas reportagens foi Reflexos de uma catequese: ritual africano em domínio branco, que retrata as origens dos festejos em honra a Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, nos quais remanescentes quilombolas reproduziam sua ancestralidade africana.

Ainda de acordo com o perfil de Marcos, a segunda reportagem — As oleiras de Olho D’Água da Serra do Talhado — publicada em duas partes, em agosto de 1956, nasceu de um convite recebido naquela primeira visita para conhecer o modo de vida da comunidade.

Aruanda (1960), filme de curta-metragem realizado na Paraíba, com direção de Linduarte Noronha.
Linduarte bem que tentou alçar voos mais altos na imprensa paulista, mas foi escrevendo para A União, documentando a sua terra, o seu chão, que ele ganhou o Brasil e o mundo, influenciando decisivamente os rumos da produção cinematográfica nacional com o Cinema Novo. Assim, Linduarte fez valer a célebre sentença de Tolstói: “Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia.”

A Paraíba perdeu um contista mediano, mas ganhou um grande repórter — e, sobretudo, um cineasta ainda maior.

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