POEMAS DO LIVRO “O ORNITORRINCO DO PAU OCO”
(Editora Cousa – 2018)
BESTAS, BEATS E BEATOSNa medida em que o olhar poético flui
do verde para o concreto,
muito se perde.
Cabe devastar a poesia,
arrancar a relva,
desgastar a terra,
impregnar de concreto
a carne
e esparramar ao sol
a pele tatuada dos homens?
O non sense,
em dizer:
Maldito deus.
“Sem poesia não há salvação”, escreveu Mario Quintana. Sem dúvida, uma das pessoas que têm plena consciência desta sabedoria é Jorge Elias Neto, que vem há muito se dedicando à poesia. Neste O ornitorrinco do pau oco, traz-nos ele uma coletânea de seus primeiros quatro livros publicados e poemas inéditos. Segundo Carlos Nejar, o poema de Jorge Elias Neto é “feito de chispas”, o que é uma observação perfeitamente correta. Mas também de sua composição fazem parte – como Nejar também nota – o sonho, assim como o lirismo e, claro, a condição humana de um modo geral.
Os pés dentro da ilha
Falar da superfície,
o que envolve,
encharca
e afoga,
o que gruda nos pés
– mangue e areia –,
o cinza absoluto,
o verde disperso
nas frestas e espelhos,
CansaçoAmor: quantas palavras necessárias para que um gesto se torne inscrito no tempo?
Hilton Valeriano
Não me presta,
não me cabe
o alforje de palavras,
a pretensão de
um discurso;
supor que a
obviedade
de um soluço ocupe
mais que um segundo
de um tempo que
se desfaz
e não cabe nesse
cabedal
polvilhado de tolices;
Um resto de sol no desalento
Ocupo-me de uma febre
sem propósito.
Modos existem
de forjar os dias,
principiar universos,
rir do descomunal
segredo da vida ...
Mas não nessa noite gelada
No fue un sueño,
lo vi:
la nieve ardía.Ángel González
Compondo o sítio arqueológico
A vastidão
é uma pedra
redonda e fria.
Grande esfera
onde deslizam
e desabam as criaturas.
O horizonte ‒ gelo
intransponível.
Daí esse tatear – essa procura.
A obscura arqueologia de esconder-se.
70 metros*Na perspectiva da ponte
O pássaro solitário não volta.
Bom sentar aqui...
Gera um desvio do olhar,
um torcicolo súbito
diante da emanação do absurdo.
Ver do alto a evolução das águas:
sem o murmúrio
do bocejo das ondas,
sem o grito ruidoso do
rasgar do mar.
Imagino os que trafegam às minhas costas ...
Nas gaiolas de metal,
guardam as intenções dos gestos.
Uma carteira e seus sentidosàs crianças de Realengo
Observe essa carteira vazia
– ociosa –
desocupada.
Entre na dimensão do absurdo
– no que se contorce –
e resvala,
e desperta,
e nos cala.
Observe essa carteira vazia
–ruidosa–
maculada.
Ventre da omissão confusa
– que nos paralisa –
e enoja,
e perpassa ,
e retalha.
Observe essa carteira vazia
– poderosa –
enfeitada.
Lembre-se da profusão do sangue
– que se dispersa –
e tinge,
e respinga,
e nos entala.
Observe essa carteira vazia
– fervorosa –
devotada.
Sinta a celebração da loucura
– que consente –
e trucida,
e cega,
e nos abala.
Observe essa carteira vazia
– tenebrosa –
malfadada.
Sinta a emanação do ódio
– que se alastra –
e devora,
e abraça,
e nos trespassa.
Observe essa carteira vazia
– silenciosa –
abandonada.
Crente na devassidão do mundo
– que surpreende –
e ignora,
e reproduz,
e nos arrasa.
Observe essa carteira vazia
– deliciosa –
delicada.
Prenhe de ilusão confusa
– que consente –
e insinua,
e seduz,
e nos agarra.
Observe essa carteira vazia
– espaçosa –
desejada.
Ciente na criação do sonho
– que compreende –
e ama,
e perdoa,
e nos concede a graça.
O poema acima de mim
Se disser tudo,
me restará a última mentira.
Mas, rente ao chão,
toda mentira resvala na inutilidade.
I
Minha terra
é uma ilusão da linguagem.
Tenho de meu
esse rastilho de palavras
que pressinto
atadas
aos calcanhares.
Se o desfaço, perde-se
o encantamento das vivências cerzidas.
Rascunhos do Absurdo encontrava-se pronto, a
boneca do livro entregue a Miguel Marvilla para a
preparação da edição. Minha expectativa era grande, todos
em nosso meio sabem do soberbo editor de livros que Miguel
sempre foi.
PólosPara Gabriel
Meu pai vestia uma pele
de sonhos amarrotados.
Tardava horas campeando pequenos nadas.
Grande colecionador de figurinhas,
trazia colada nos olhos
sua fortuna de desejos.
A poesia começa assim
Emprenhar-se de miudezas;
deixando as mãos rendidas aos gestos costumeiros.
E, quando a luz se aperceber, desmembrada
pelo estalo da palavra,
jogar-se nos trilhos
para salvar a flor.
Marco Zero
Avançamos desgarrados
neste Tempo tardio.
A partir daqui,
se inicia o reino das ostras
e dos desencantados.
Recolhamos a vela
— sudário santo —
que há de ser lenço
e manto aos que choram
e perecem sobre as rochas.
SONETO EM CRISE
O perdido traz a marca na testa,
esboço do nome, falso retrato,
um corno - caligrafia da besta -,
revolta e um perfil de semblante amargo.
A fala que se esforça em verso, ofensa,
um desmentir inútil do absurdo
que transpassa o ser fútil e enlaça
a criatura com seu silvo agudo,
NOME
O nome que me resta
não cabe em meu corpo
ouvidos poucos se prestam
a escutar a minha urgência
troco a minha fome
pelo espasmo de minha carne pouca
e esse desapego
deixou de ser escolha,
é o meu rastro pelas calçadas
onde escrevo meu nome de hoje
Decreto (para ser lido tomando-se água de coco à beira mar)
Atenção!
Está suspensa a transitoriedade das insignificâncias.
Não é permitida a inspirabilidade do óbvio.
É mandatório o afogamento das circunstâncias.
O status quo deverá ser limpo com papel higiênico.
Será suprimido do vocabulário o beijo sem língua.
No cardápio das quartas-feiras o prato principal será o ócio.
Que se nomeiem os filhos conforme o cricrilar dos grilos.
Cada bocejo deverá ser celebrado como profecia.
Gira flor
retorna ao berço das imagens,
Mundo em moldura de sonhos
nascido no infinito dos olhos
a cada nascente e poente
retorna ao berço do imenso
e da quase morte.
Gira flor
que no sumidouro dos dias
restou a vida retinta
pela claridade
que ensinou do silêncio
na espuma das nuvens.