Não é de hoje ou por ser moderninho que faço serviços domésticos. Filho de uma família grande, somos nove irmãos, fomos educados por min...

O Suplício das Danaides



Não é de hoje ou por ser moderninho que faço serviços domésticos. Filho de uma família grande, somos nove irmãos, fomos educados por minha mãe e por meu pai na responsabilidade. Minha mãe nos legava as tarefas domésticas e o cuidado com a profilaxia, palavra que, desde eu menino, como diria o poeta, aprendi com ela. Nosso pai nos impunha levar as encomendas de seu açougue aos  fregueses, bem como lavar o açougue no domingo pela manhã, para começar a semana limpo. De quebra, aprendemos a aritmética do troco, já devidamente calejados pelo aprendizado, literalmente doído, da taboada, com a nossa mãe…

Lavar louça, varrer casa, ajeitar o quarto, tirar o lixo, fazer comida, tudo isso se tornou um hábito para mim. Até hoje, faço comida para 20 pessoas, como feijoada ou cozido, e deixo a cozinha limpa como se ninguém tivesse passado por ali.

Digo estas coisas porque neste período de quarentena, as tarefas de casa se multiplicam, principalmente as de cozinha.

Há quem tenha comparado a tarefa de lidar com a cozinha com o suplício de Sísifo. Trata-se de má comparação. Sísifo, quando descia a encosta da montanha, tinha tempo de pensar em um modo de colocar a pedra no topo e, assim, livrar -se do suplício. Se era um trabalho sem fim, o de Sísifo, ao menos lhe dava, em algum momento, tempo para refletir sobre a sua situação.

Comparo o trabalho de cozinha com o suplício das Danaides, cuja continuidade, normalmente, não dá tempo para a reflexão. As 49 irmãs, filhas de Danaos, foram condenadas, pelo assassinato de seus maridos, na noite de núpcias, a encher, no Hades, um tonel sem fundo, carregando água numa peneira. O derramamento de sangue parental, pois os maridos eram seus primos, é que acarretou em suplício tão requintado.

Apesar de ser infindável o serviço de cozinha, além de pouco produtivo, não reclamo. Seja pelo hábito de fazê-lo, seja por fazer passar o tempo do confinamento, seja porque acabei descobrindo uma utilidade: refletir sobre a paciência e remoer algum texto na memória.

A vida nos ensina de diversas maneiras.

* Milton Marques Júnior, Professor de Literatura, escritor, critico e ensaísta paraibano

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