Nunca se pensava no ex-concertista sentado, sempre a acender o cachimbo, olhando a imensidão de seu universo musical. Era um ex-violoncelis...

Violoncelista vencido

jose leite guerra ambiente de leitura carlos romero violoncelo orquestra sinfonica violoncelista

Nunca se pensava no ex-concertista sentado, sempre a acender o cachimbo, olhando a imensidão de seu universo musical. Era um ex-violoncelista da Orquestra Sinfônica.

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O instrumento esquecido, ornado por teias de aranha, houvera sofrido o pingar de goteiras e sua madeira restara arrebitada, as cordas soltas, desprezado como um animal, um boi velho. Com atenção se poderia constatar seu som semelhante ao mugido de um boi. Se pensasse, o abandonado violoncelo recordaria as noites de ovações. Os aplausos e urros da plateia a homenagear a sublime sinfonia, outras composições de concertos marcados no teatro, dos quais ele participara cuidado pelas mãos de seu proprietário que lhe acariciava as cordas esticadas. Também gritaria, lá de seu canto penumbroso em favor do velho músico reduzido ao ostracismo devido ao calamitoso acontecimento daquele passado ruminado, entre um sopro de fumaça expelida pelo cachimbo.

Moravam juntos: somente o violoncelista e o instrumento. Vinham fazer uma faxina, lavagem de roupa, preparo de comida de uma forma impessoal, sem calor humano, gesto meramente profissional. Ele escarrava, vez por outra, em lugar de puxar conversa.

Às vezes, para que o tempo não se tornasse tão monótono, apanhava umas partituras, assobiava algumas notas, sentia-se na imensidão do palco como a escutar feliz a sonoridade que acabara para sempre. Pensava em fisgar os momentos de suas mágicas tournées mundo afora, encaixotar notas em algum lugar que não encontrava, captar ou recapturar harmonias de há muito sumidas. A fuga do violoncelista era reduzida àquele impressionante exílio. Solteirão por escolha se dedicara à música desde os tempos de colégio. Sem parentes, o que lhe restava era o instrumento sucateado, único e verdadeiro companheiro de noitadas de sucesso.

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Um dia, porém, ninguém sabe por que, resolveu dar uma atenção ao moribundo violoncelo. Um desses estalos regressivos, uma saudade de convivência, um banzo de distância, habitando espaços contíguos. Teve exaustivo trabalho no tratamento: procurava redimir-se daquele abandono, voltar ao que era, quem sabe, tocar nalgum concerto de teatro popular.

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Depois da recuperação do companheiro, foi ao quarto e se vestiu a rigor. Trouxe o amigo de tantos anos até o centro da sala. Empertigou-se, imaginou o maestro a envergar a batuta, a sonoridade de todos os demais instrumentos e naipes bem situados. Tocou as cordas do violoncelo. A melodia saiu trêmula como sua mão escavada. Uma caricatura da firmeza artística de antes. Nunca conseguiria repetir os acordes afinados e refinados que fizera delirar os ouvintes, na execução de clássicas composições. Deixo o violoncelo e seu dono. Não quero ser testemunha de trágico acontecimento. Escuto um choro rouco saído das cordas tensas e tesas. Quanto a ele, deve estar desolado no universo musical em trevas. Sem luzes. Nem palco.




José Leite Guerra é bacharel em direito, poeta e cronista

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