A neve do tempo já havia pintado os cabelos dele. O mundo perdera parte do seu encanto com os desencantamentos do cotidiano daqueles dias. ...

Esquecimento

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A neve do tempo já havia pintado os cabelos dele. O mundo perdera parte do seu encanto com os desencantamentos do cotidiano daqueles dias. Dias arrastados e repetidos. Dias de máscaras e vírus e isolamento.

Mas para ele, cujo eixo Virgem-Aquário circunscrito em seu mapa natal permitia-lhe ir da racionalidade ao anarquismo, a vida era boa e na maioria das vezes colorida.

Encantava-se por coisas menores, como um rastro de poesia deixado num guardanapo de papel e cultivado nas caixinhas que todo virginiano adora. Gavetinhas com coisas e nomes na frente delas. Cuecas arrumadinhas em divisórias separadas por cores.

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Um certo militarismo na vida, com apeguinhos de controle, com uma mínima mania de limpeza, tradução também da ordem que deveria imperar no Universo, principalmente no seu universo. Semana calculada com agendas extremamente organizadas por cores. Mas certa dificuldade em se reagendar, em seguir os loucos passos dos amigos intempestivos, desconectados de horários e organização. Este era o virginiano que nele habitava.

Ria do mundo e da sua pseudo-seriedade. Curtia os incautos, os surrealistas e os debochados. A classe média lhe parecia sempre uma piada falsa, cheia de novos deuses da moral. Aliás, a graça do mundo era denunciar a falsa moral e desnudar seus mitos. Tinha o dom da escrita e o conhecimento do risível e do escárnio. Sua tradução era o nada. O vazio dos espaços e o emblemático da mente. Roupas coloridas como os hippies dos anos sessenta do século passado. Apego exagerado a calçados excêntricos. Ria-se de si mesmo a toda hora. Desencanava-se no divã, talvez seu último recôndito da seriedade. Este era o aquariano que nele habitava.

Amigos muitos e sinceros. Reuniões, bebedeiras e ensaios de um mundo melhor eram suas predileções sociais. Num destes encontros, ele reviu um grande amigo. Momento de desenterrar histórias e defuntos e toda aquela mitologia própria das amizades,

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nas quais segredos, fantasias e invenções se tornam verdades imediatas e incontestes.

Seu amigo lhe falou sobre uma estória profunda, daquelas inesquecíveis, compartilhadas por tempos, daquelas que marcam a pele como ferro em brasa, daquelas cuja marca é o reviver. A história a dois, dos dois.

Mas ele esquecera. As palavras do amigo chegaram como fantasias. Como aquela diferença que se aprende no primário antigo entre estória e história. Uma narrativa cheia de emoções, doçuras e significados. Uma história de fato.

Mas ele esquecera.

Por que esquecemos das coisas?

Como defesa, não retornar ao caos do trauma. Não apagar, mas separar num lugar um tanto quanto inacessível. Talvez como quem esconde uma arma em casa. No fundo de uma gaveta, embaixo de casacos quase mofados. Em cima de prateleiras de armários, às vezes dentro de uma caixa, dentro de outra caixa. Quem sabe até num cofre. De tão escondido, se esquece onde está, eis a lógica do esquecimento como defesa. Mas está! Existe!

O esquecimento é a angústia do náufrago que grita para um barco, talvez miragem, que esquece dele e se arrasta rumo ao horizonte.
Talvez esqueçamos também do belo, do utópico e do amplo mundo do gozo. Algo que foi tão bom, tão inusitado, tão especial. Como pais que esquecem do nascimento dos filhos, como noivos que esquecem do dia das suas bodas. Quem sabe esqueçamos dos momentos pletoros de felicidade. Daqueles dias nos quais a harmonia se fez presente como uma sinfonia que escutamos de olhos fechados. Esquecemos também do êxtase, do que foi único e original.

Ele se retorceu em torções de memórias eclipsadas. O dia se virou em noite como uma obsessão em se recordar daquele dia. Havia alguns lapsos de memória, mas tão confusos quanto peças daqueles quebra-cabeças de 5 mil peças. Separar por cores, por formas, separa, juntar, conectar. Nada. A noite descambou em dia, em olhos arregalados ao teto.

Naqueles dias, buscar estas memórias o fazia lembrar dos dizeres populares da sua cidade natal quando se perdia algo. “O cão levou”. “O cão botou o rabo em cima”. Eram tesourinhas de costura, eram canetas coloridas. Era um caderno de receitas ou mesmo aquele livro deixado numa mesinha para leitura depois.

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Mas nestas ocasiões havia muita simpatia, rezas fortes e até promessas para santos catadores de coisinhas perdidas. Era o responso de Santo Antônio que se rezava, santo este que também se dizia achar maridos, coisa mais rara.

Todavia não se tratava de coisas, mas de uma situação vivida. De um excerto de prazer e vida fluida, de um momento de conjunção e silêncios.

Pairava nos lapsos memórias de beijos, de calores e dentes em mordiscadas. Planava nos céus dos seus desejos de rememorar, o nada de se fazer quando aperta uma saudade, aquela que deserta o corpo. Uma saudade sabe-lá-de-quê, que arrasta as coisas do peito e o esvazia de si. Nem o milico virginiano com suas táticas de guerra, nem o anarco-excêntrico aquariano com seu deixa-pra-lá deram conta deste fosso. Era como frio de verão que torna as noites quase tão longas quanto noites de hospital.

Sem paz, ele ligou para seu amigo. Pediu-lhe o relato detalhado do fato, pois quem sabe isto iria reativar sua memória e limpá-la daquele breu chamado de esquecimento. Ouviu tudo, como um psicanalista em sua cadeira de escuta. Nada falou. Nada questionou.

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Esqueceu ele mesmo que o esquecimento é uma lembrança. Um acontecimento de nada saber, nada aprender. Quando os corações viram blocos de gelo, aí aparece o esquecimento. Um deixar-se ir para talvez se encontrar. As lembranças dos inícios, tão fortes. Aquelas que se nominam inesquecíveis, mas nos terceiros amores, são esquecimentos dos começos inesquecíveis. Assim ele estava nas trevas do esquecimento, curtindo uma saudade que é uma falta, um projeto que nem foi. O esquecimento é a angústia do náufrago que grita para um barco, talvez miragem, que esquece dele e se arrasta rumo ao horizonte.

Ele sente o esquecimento como alguém sente coçar um membro amputado. Há, mas não está. Ele era agora um cego a tatear suas verdades imaginárias. Um cego quase à beira de um abismo, num risco que só o clarão da visão evitaria. Ele vaga desgarrado e lento no marasmo do esquecimento. Refazer tudo outra vez? Não, isto seria montar uma farsa, pois não seria reviver, mas tornar a vida um pastiche, estes pastiches que povoam nossa vida agora, mimetizando nossas dores e oferecendo milagrosas curas para os males que nem cura têm.

Talvez o esquecimento seja uma finalização. Amar o esquecido, isto poderá? Quem sabe é o intangível o continuum do sensível. O que eu recordo, perde o sentido e se esvai como carta tantas vezes lida. Talvez o esquecimento anuncie a coisa finda. Aquele diamante que de tão raro nunca foi achado. Mas que seguimos sempre a buscá-lo.


Adriano de Léon é doutor em ciências sociais, professor e escritor

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