No porão de um prédio localizado na Sheridan Square, no bairro novaiorquino de Greenwich Village, funcionou a boate Café Society, entre os a...

Fruta estranha

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No porão de um prédio localizado na Sheridan Square, no bairro novaiorquino de Greenwich Village, funcionou a boate Café Society, entre os anos de 1938 e 1949. A casa foi um dos primeiros espaços da metrólope norteamericana em que se deu a integração entre brancos e negros, tanto no palco como na plateia.

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Café Society, NY / 1938
O clube era frequentado por artistas, intelectuais, políticos e pessoas liberais. Sua clientela pode ser caracterizada como progressista, comprovando o lema adotado à época: “The wrong place for the Right people” (o lugar errado para pessoas conservadoras — tradução do ALCR).

A boate apresentava shows de jazz e, desde a sua abertura, tinha como a principal atração uma jovem cantora negra, de pouco mais de vinte anos, que já despontava como uma das intérpretes mais prestigiosas da música norteamericana.

Certo dia, a cantora foi abordada, no Café, por Abel Meeropol, professor de inglês, poeta, ativista político e, também, autor de músicas, as quais ele assinava com o pseudônimo de Lewis Allan. Meeropol mostrou-lhe uma canção de sua autoria. Sobre esse episódio, ele relatou:


ambiente de leitura carlos romero cronica poesia literatura paraibana billy holiday flavio ramalho de brito strange fruit cancao protesto racismo linchamento negros cafe society greenwich village "Tive a impressão de que ela não se sentiu à vontade com a música [...] ela olhou para mim depois que eu terminei de apresentar a canção e disse:

— 'O que você quer que eu faça com isso, cara?'

E eu respondi: 'seria maravilhoso que você cantasse essa música. Se quiser, não se sinta obrigada'".


Embora a música de Meeropol não se enquadrasse bem no estilo do repertório da intérprete, formado por baladas que falavam de amor e romance, ela decidiu cantá-la. Relutava, porém, em apresentar a canção no Café Society, mesmo considerando o perfil liberal da plateia. Resolveu, por fim, interpretá-la na boate, porque ficara muito impressionada com o poema:

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Billie Holiday / Café Society,1939

"Parecia que falava de todas as coisas que levaram meu pai à morte [...] mas não tinha a certeza se conseguia transmitir essas coisas, que tinham significado para mim, ao público de um clube fino. Tinha medo que a detestassem".


Eleanora Fagan Gough, a cantora que adotara o nome artístico de Billie Holiday, relatou na sua autobiografia, muitos anos depois do episódio, a primeira vez que, no início de 1939, cantou a música no Café Society:


"A primeira vez que a cantei fiquei com a sensação que tinha sido um erro e tinha razões para ter medo. Não houve nem mesmo uma tentativa de aplauso quando acabei de cantar. Então, uma só pessoa começou a bater palmas nervosamente. E, de repente, todo mundo estava aplaudindo".


A canção de Meeropol chama-se "Strange Fruit" e inicia-se com essas palavras

“Southern trees bear a strange fruit.
Blood on the leaves and blood at the root.
Black body swinging in the Southern breeze.
Strange fruit hanging from the poplar trees”
No vídeo abaixo:
a versão/tradução de Carlos Rennó para a letra original de Abel Meeropol.


A letra da música é uma denúncia cortante contra os linchamentos de negros que, mesmo naquela época, ainda ocorriam, principalmente em pequenas cidades do sul dos Estados Unidos. Após o final da Guerra Civil, no período de 1889 a 1940, ocorreram cerca de 3.800 linchamentos no país, conforme levantamento realizado pela Universidade Tuskegee, do Alabama. Os atos eram realizados como punição a crimes supostamente praticados pelas vítimas. Em alguns casos, não havia a alegação de nenhum delito e a violência era apenas uma brutal manifestação da discriminação racial.

Para o jornalista David Margolick, que escreveu “Strange Fruit - Billie Holiday e a biografia de uma canção” (publicado no Brasil pela editora Cosac Naif):


ambiente de leitura carlos romero cronica poesia literatura paraibana billy holiday flavio ramalho de brito strange fruit cancao protesto racismo linchamento negros cafe society greenwich village “Strange Fruit escapa a qualquer categorização musical fácil [...] é artística demais para ser música folk, politicamente explícita e polêmica demais para ser jazz. Com certeza nenhuma canção na história dos Estados Unidos representa tamanha garantia de silenciar uma plateia ou gerar tanto desconforto.”


A importância de “Strange Fruit”, na interpretação emocionada de Billie Holiday, para as lutas contra o preconceito racial nos Estados Unidos, é ressaltada por Max Roach, que foi um dos principais músicos do jazz:


ambiente de leitura carlos romero cronica poesia literatura paraibana billy holiday flavio ramalho de brito strange fruit cancao protesto racismo linchamento negros cafe society greenwich village “Quando Holiday a gravou era mais que revolucionária. Ela expressava um sentimento que todos nós, negros, sentíamos. Ninguém falava daquilo. Ela se transformou em um dos guerreiros, essa linda mulher que sabia cantar e fazer você se emocionar. Tornou-se a voz dos negros e eles a adoravam”.


Importante registrar que a canção de Abel Meeropol foi gravada por Billie Holiday dezesseis anos antes que Rosa Parks, em 1955, em Montgomery, no Alabama, se recusasse a ceder o seu lugar em um ônibus a um branco, ato que é considerado um marco do movimento contra a segregação nos Estados Unidos.

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Rosa Parks (1913—2005) Wikipedia / Fair Use
Para Leonard Feather, pianista e compositor britânico, um dos mais importantes críticos e escritores do jazz, “Strange Fruit” foi "o primeiro protesto relevante em letra e música, o primeiro clamor não emudecido contra o racismo".

“Strange Fruit” foi gravada por Billie Holiday em abril de 1939, pouco tempo depois do seu lançamento no Café Society. A música foi recusada pela gravadora Columbia, que temia desagradar seus clientes dos estados do Sul, o que fez com que o disco saísse pela Commodore, uma pequena gravadora especializada em artistas considerados de esquerda.


Pelo teor de denúncia que continha, “Strange Fruit” nunca foi uma canção bem aceita nos Estados Unidos, porque, como diz David Margolick, forçava uma nação a confrontar seus impulsos sombrios; é uma música que ofende grande parte do país. O estigma de "música desconfortável" alcançava até mesmo versões instrumentais de “Strange Fruit”. Pouco tempo depois da gravação de Billie Holiday, o clarinetista Sidney Bechet gravou uma versão instrumental da canção, que ficou vários anos sem ser lançada pela gravadora RCA Victor.

A canção de Abel Meeropol tornou-se a mais emblemática obra contra o racismo nos Estados Unidos e em todo o mundo, chegando a ter a sua execução proibida na África do Sul, durante o período do apartheid.
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Billie Holiday (1915—1959)
“Strange Fruit”, para Margolick, “tanto como música quanto como fenômeno histórico, é surpreendentemente desconhecida hoje [...] Sem dúvida em grande parte por seu tema, a canção não é um dos muitos clássicos de Holiday sempre tocados”.

O incômodo que “Strange Fruit” provocava em certas pessoas não fez bem à “Lady Day”, o apelido pelo qual Billie Holiday era conhecida. Como ela própria afirmara em entrevista dada, em 1947, à revista Down Beat, após a sua prisão por porte de drogas: “Fiz uma porção de inimigos [...] Cantar aquilo (Strange Fruit) não me ajudou em nada.” William Dufty, o coautor de “Lady Sings The Blues”, a autobiografia de Billie, afirma que a canção só trouxe dissabores para a cantora, ao ponto de levá-la a ser investigada, na época do macarthismo, por atividades comunistas.

Desde que, em 1939, Billie Holiday cantou a primeira vez “Strange Fruit” no palco do Café Society, a música tornou-se uma marca registrada da cantora pelo restante da sua curta vida, que terminou em 1959, aos 44 anos de idade, destruída pelo álcool e pela heroína. David Margolick, no livro que escreveu sobre a trajetória da canção, relata:


“A experiência de ouvir e ver Billie Holiday cantando “Strange Fruit” – os olhos fechados, a cabeça jogada para trás, a gardênia de sempre atrás da orelha, o batom rubi realçando a pele escura, os dedos estalando de leve, as mãos segurando o microfone como se fosse uma xícara de chá – permanece em muitas memórias décadas depois.”



Flávio Ramalho de Brito é engenheiro e articulista

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  1. Maravilhosa, sempre bom ler sobre fatos marcantes da arte, e ainda mais sobre Billie Holiday.

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  2. Infelizmente, essa canção é muito atual, pois o racismo continua na moda, e a pungência desta música continua incomodando ou comovendo as pessoas.
    Quanto à intérprete, não há o que dizer. Um crítico de música diz que a diferença entre Billie e as demais cantoras americanas é que quando as outras cantam a frase “meu homem saiu de casa”, a gente entende que o homem retorna no jantar, e quando esta mesma frase é cantada por Billie, a gente percebe que o homem a abandonou definitivamente.
    Texto muito bom.

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  3. Eu pensei que já tinha lido tudo sobre Billie Hollyday. Eis que chega Flávio Brito com mais uma impressionante pesquisa musical.
    Quanta força! Quão atual, como Toinho Morais disse acima!

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  4. Grande Billie Holiday. E ainda ficam idealizando a suposta "democracia" estadunidense. Lá a censura funciona a sério e por vias informais, mas muito eficazes. Allen Ginsberg bem disse que ali predomina o que ele denominou como "stalinismo soft".

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