Para José, Raony, Cristian, Jean, Fábio, Ivanildo e Kenilma Éramos oito. Oito rumo às quedas d'água, rumo à Natureza que rest...

Hórus nas cachoeiras

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Para José, Raony, Cristian, Jean, Fábio, Ivanildo e Kenilma

Éramos oito. Oito rumo às quedas d'água, rumo à Natureza que restaura corpos e sonhos.

Naquele lugar tudo era plenitude e força. As águas mansas dos córregos e riachos se avolumavam num rio, mas ainda de corredeira lenta. As águas brotavam do solo, nas nascentes, quase como se eclodissem das raízes das árvores que margeavam o rio. Suas copas se fechavam em dossel, protegendo o rio dos raios solares e deixando assim as águas frias, aquelas águas deslizantes, rolando ladeira abaixo.

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As águas daquele lugar eram diferentes. Doces, porém, não matadeiras da sede. Eram águas da sede, de mais sede, daquelas sedes que não têm como aplacar, como uma sede de ressaca braba. Eram silenciosas em certos trechos. Quase não se as ouvia no seu correr rio abaixo. Corriam deitadinhas em leito plano. Outras vezes se enrolavam como amantes com folhas e galhos em remoinhos. Por vezes eu as via valsando com a areia do leito, como se os rodopios de água fossem vestidos largos que se arremetiam nas duras pedras das margens.

Pedras, sempre duras como generais que conduzem a água para caminhos por eles demarcados. Mas a água tem lá suas facetas, seus arrodeios, como uma sedução. Mesmo quando não poderiam vencer aquela rigidez pétrea, as águas do rio lambiam as pedras que depois eram povoadas por algas, como um lençol macio.
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As pedras ficavam, desta maneira, enlodadas por uma camada bem macia de limo escorregadio, vida que brota mesmo na mais dura pedra. Tudo era vida ali. Peixes fugidios, caramujos lentos desafiando a velocidade do tempo, me dizendo que o rígido da sua concha guarda a maciez da lesma. Lembrando-me também que em toda fixidez há algo fluido, que mesmo nos mais autoritários dos humanos, há uma fragilidade não consentida.

Entre o rígido das pedras e o fluido das águas estavam as árvores, plantinhas, vegetais muitos. Eram uma mistura do fixo e do maleável. Dos brutos troncos e marrentas raízes afloravam galhos que dançavam aos ventos, folhas que buscavam o alimento solar naquele silêncio vivo próprio das árvores. Tenho certeza que elas passavam o dia fofocando. O simples fato de serem fixas na terra não as torna menos inteligentes que os animais. Muito ao contrário. Há nelas uma conversa fluida, coisas de vizinhas que podem ser bem colaborativas ou bem medonhas umas com as outras. As plantas nada temiam a não ser a presença do mais ingrato e furioso dos bichos: o humano, esse bicho natural que se julga acima da Natureza. Esse bicho antinatural com suas tecnologias que se assombra quando a mesma Natureza cobre o mundo com um vírus para fazê-los acordar para sua finitude e lugar no planeta.

O cochicho das plantas é inaudível aos ouvidos humanos. Mas as formigas naquele sobe-e-desce, mas as cigarras naquele canto sibilante, mas os seres invisíveis que povoam a floresta sabem ouvi-las muito bem. Como comadres, elas compartilham xícaras de minerais, trocam fluidos protetores. E também como comadres, se vingam de invasores, afastam competidores como as casadas tentam fazer com as amantes de seus maridos. São lindas e cheirosas as árvores. São altas e acinturadas com longas cabeleiras soltas ao sol e ventos. Com elas aprendi a ser flexível durante as tempestades como o bambu e a ser firme durante a bonança como a mangueira.

E as cachoeiras? Ah, elas são parte da luta das pedras com as águas. Pedras que cerceiam as águas na sua corrida de rio. Águas que vencem este cerco em saltos magníficos. Por um momento, as águas se conformam no seu fluir e se estacionam em poços, lagos e represas. Mas a saída está lá, na paciência, no contorno, no não-enfrentamento.
Assim, as águas se aventuram nos saltos, como paraquedistas, para que voltem a correr. São milhões de gotas que se dão as mãos e pulam por entre pedras. São tantos gritos que até o humano consegue ouvir, porque água mansa ruge em queda. As águas vestem um vestido branco quando do pulo. Após o salto, resfolegam e seguem seu caminho rumo ao mar, outras águas, mas a mesma água.

Eles eram oito naquelas quedas: o impetuoso, o desafiador, o tranquilo, o observador, o alegre, o falante e, dentre eles, ela, uma musa. As diferenças eram ao mesmo tempo a completude. O que faltava em algum, sobrava no outro. Eram gente do vinho, da música e da dança. Eram gente dos sonhos e dos delírios. Eram gente do riso solto e das lágrimas embotadas. Foram recebidos pela força das águas em queda sobre seus corpos. Um ritual de purificação dos deuses e deusas das águas correntes, um ritual tal qual batismo de uma época nova que se avizinhava depois de um vasto tempo de eclipse. Foram risos, tombos, juras de amor, espantos e união com o Todo. Afinal, nós humanos somos também águas, corredeiras, seiva, fluidos e pulsares.

Debaixo das quedas, eu me via pleno com eles e ela. Sozinho, por instantes, as águas que me lavavam me mostraram que somos seres da comunhão. Por um instante, no ruído das cachoeiras, recitei um agradecimento à vida plena tocando no Olho de Hórus que pendia do meu pescoço.

O Olho de Hórus é um símbolo-amuleto egípcio que significa poder e proteção. Na sua simbologia, abrange força, vigor, segurança e saúde aos seus portadores. Hórus era o deus egípcio do Sol Nascente representado na figura de um falcão. Então, naquelas águas corredeiras, meu Olho de Hórus me trazia a sensação de pertencimento à força telúrica do planeta, à sabedoria da Natureza e a integração com o Universo. Lavados pelas águas fomos todos, renovados e em paz seguimos.

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À noite os oito saíram para conhecer a cidadezinha, como qualquer turista que flana pelas ruelas dos lugares que visitam. Antes de sentar para comer algo, senti se desvencilhar de mim o cordão que, como as cachoeiras, se precipitou do meu pescoço às pedras da rua. Mas lá não estava o Olho de Hórus. Evanesceu. Foi uma procura em vão. Talvez não pertencesse mais a mim, sei lá. Seguimos tranquilos e eu tomei aquilo como uma dádiva que deixava ao lugar que nos acolheu.

De volta, os oito se embalaram por entre canções e goles. Diferente das quedas d´água, o que tínhamos então era a leveza. Como as antigas tribos reunidas em círculo em torno do fogo, ali estávamos também. O elemento água do vinho se misturava ao elemento ar das canções. E tudo docilizava nossos corpos tão embriagados não de álcool, mas de vida. A vida que brota plena entre os que se amam, no amor mais puro da amizade que inicia romances e, quando bem cuidada, os finda sem mágoas.

Outro dia, novas águas.

Última noite de viagem. De volta às ruas. Cidade pequena, mesmos lugares. Os oito sentaram para saciarem uma fome que insistia em bater à porta, aquela fome que não tem destino, aquela fome de forasteiros que buscam experimentar as delícias locais.

Eis que o atendente-dono do lugar se aproxima de mim e me questiona: “você perdeu algo ontem aqui? Vi vocês buscando algo na rua, como se fosse dinheiro que caiu do bolso...” “Perdi sim”, disse apenas isso. “Você perdeu algo de valor?” perguntou ele. “Não, apenas de valor sentimental” retruquei. “Ah, você perdeu o Olho de Hórus! Pela tarde, quando organizava as mesas, vi no chão algo que brilhava e refletia a luz do sol. Era o Olho de Hórus.”

Hórus, o deus solar. Como o ciclo das águas, tudo retorna refeito. É preciso que o trigo seja ceifado do campo, amassado num moinho para que ressuscite como pão. Assim, como os mil tons de Milton Nascimento, chegar e partir são dois pontos da mesma viagem. A volta de Hórus representava a renovação da vida daqueles oito. Amigos que se reencontraram. Novos amigos. Amores que se fizeram. Amores que se renovaram.

Pensei então o quanto a felicidade é o instante. O quanto a felicidade se dá no acaso, no encontro, na surpresa. Não é perene, talvez por que perderia seu encanto. Não é pedra, é água corredeira em queda livre. A felicidade é uma teia formada de encontros fortuitos, de existência quase que instantânea. A felicidade nos marca a necessidade do outro na nossa existência. De um olhar breve, porém profundo. De uma mão que repousa sobre a nossa. De um riso breve, daqueles que saem do canto da boca e que impressionam até os mais brutos. Hórus, como o Sol que nasce, ilumina e morre em cores sutis e breves. Repousa pouco e retorna com seus solares num desafio da vida que pulsa por entre amigos e quedas d´água.

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