Aconteceu comigo na década de 80. Lá se vão mais de 30 anos, quase 40. Comecemos perguntando ao amigo leitor e à querida leitora se sabem ...

A baratinha

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Aconteceu comigo na década de 80. Lá se vão mais de 30 anos, quase 40. Comecemos perguntando ao amigo leitor e à querida leitora se sabem o que vem a ser uma “baratinha”. Sabem o que é? Pois bem, assim eram chamados os carros conversíveis, lá nos idos dos tempos; década de 50, daí para trás. E por falar em baratinhas, é antes necessário falar de João Saldanha.

Foi um jornalista, técnico de futebol, afastado da Seleção por mandar publicamente o presidente Médici escalar seu ministério porque quem escalava nosso esquadrão era ele, o João. O nosso chefão andara dizendo lá em Brasília que o centro avante do nosso escrete deveria ser o Dario – o Dadá Maravilha. João não engoliu o palpite e deu o troco. O presidente-ditador não gostou da provocação e fez o nosso João-sem-medo ir colher couve em outra horta; ou seja, substituiu o infeliz pelo ex-jogador Zagalo.

Lembrei-me de João Saldanha porque este ironizava os grandes prêmios de Fórmula 1. Apelidava-os de “corridas de baratinhas”. Afinal, as máquinas nessa modalidade de automobilismo, não têm teto; então, segundo os critérios expostos linhas acima, carro de Fórmula 1 não deixa de ser uma baratinha.

Produzimos no Brasil, entre 1974 e 1990, um modelo de baratinha que era uma belezura, um carro batizado de MP Lafer, inspirado num modelo inglês, o MG TD 1952. Foram fabricadas em torno de 4.300 unidades, e dessas 1.300 acabaram sendo exportadas. Ainda há muitos rodando por aí. É um mimo para colecionadores. Se você estiver curioso, vá ao Google e procure pelo MP Lafer para ver que lindeza que é. Pois, já quis ter uma dessas baratinhas, o que me trouxe muita decepção e padecimento.

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Quem testemunhou o ocorrido foi Selminha Siqueira, a Deda, que vive hoje em Jacareí. Pois foi assim: Selminha era secretária numa escola que eu dirigia. Um dia chegou toda prosa dizendo que tinha pego uma bolada na Caixa Econômica, era o tal de PIS. Eu nem sabia o que era isso. Ela me perguntou se eu já retirara o meu. Como? Se eu nem sabia o que era. Mas fiquei meio assanhado com a possibilidade. Ela projetou uns cálculos, quase 10 anos de carteira assinada, nunca nem fundo de garantia eu tirara, ela concluiu: “você teve ter uma grana boa para pegar”.

Pensei, pensei, fiz uma regra de três, simples e direta e achei que a bolada era boa mesmo. Mais umas economias que eu tinha, do que me lembrei? De um MP Lafer que eu vira à venda dias antes em São Paulo. Pelos meus cálculos, somando o meu PIS aos guardados ia até sobrar uma graninha. Na época eu morava em São José dos Campos. A sede da escola em que eu trabalhava era na capital paulista. Não deu outra. Liguei para o departamento pessoal, pedi que preparassem minha papelada.
Liguei também para a loja de autos e marquei de estar lá no final da tarde. Em seguida peguei o beco. Fui de ônibus, pois minha intenção já era voltar de baratinha. Cheguei lá, Maria Lúcia (a encarregada da repartição) me entregou os papéis e me passou o endereço da Caixa. Fui de táxi.

Sou uma pessoa que não suporta fila, odeio esperar. Mas afinal, era por uma boa causa. Eu só pensava na baratinha, vermelhinha, pneus com uma faixa branca. Dúvida cruel: eu iria voltar com a capota levantada ou abaixada? Abaixada, é claro, afinal é assim que se anda numa baratinha de qualidade. Montão de gente na agência do banco, peguei a senha 96 (nunca mais esqueci esse número). Nem soltei impropérios. Estava feliz da vida.

Mas o tempo foi passando, passando, na senha 49 eu já não estava mais com aquela bola toda. Minha gente, em fila para retirar o seguro desemprego o cidadão perde a dignidade. Quem está ali, está no sufoco, a vida não está fácil. Fila do PIS não é tão diferente. Já viram rico ir retirar seu PIS? Eu nunca soube. De repente comecei a me sentir desconfortável. Ninguém parece feliz nesses lugares, quem está por lá, está porque precisa, e muito. Pensei que Deus fora generoso comigo. Não estava ali por necessidade. No meu caso era apenas um luxo. Quem naquela fila estava esperando o vil metal para comprar uma baratinha? Só eu. Agradeci a Deus, mas acho que agradeci cedo demais.

Chegou a minha vez. Como sairia dali com aquele dinheiro todo? Devem fornecer um envelope, dos grandes, pensei. Apresentei a documentação. O caixa disse que estava tudo em ordem.

— O senhor tem para receber... — era pouco mais que um salário mínimo, eu errara redondamente nos cálculos.

Tive vontade de chorar. Ia voltar de ônibus. Quatro horas de espera e adeus baratinha. Estou escrevendo isso depois que descobri que meu amigo Marco Di Aurélio tem um MP Lafer. Acho que é justamente aquela baratinha vermelha que eu ia comprar. Se ele tiver Jesus no coração, num desses domingos de sol vai me convidar para dar uma volta com ele naquela boniteza, de carona.

Dois velhinhos, de barba e cabelos brancos, andando de baratinha, de capota abaixada, na avenida da praia ia ser um belo espetáculo, ou não ia?


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  1. Quando eu era menino - cinco, seis anos de idade - ajudava uma amiga de minha mãe a embalar balas de coco e mel em papel celofane, ganhando - como pagamento - suas gargalhadas de que só vi iguais no Radegundis Feitosa - e um passeio, no banco externo, traseiro, da baratinha do marido de Dona Benvinda, o Padrinho Mayoral. Há muito não me lembrava disso. Valau, Paiva!

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