Em 2014, o suicídio de Philip Seymour Hoffman e de Robbin Williams — atores de quem eu gostava muito, principalmente o primeiro —, confirm...

A mais terrível das Artes

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Em 2014, o suicídio de Philip Seymour Hoffman e de Robbin Williams — atores de quem eu gostava muito, principalmente o primeiro —, confirmou-me que fizera bem de desistir do cinema no final de 2010, depois de uma overdose de participações que começara com os longas pernambucanos O Som ao Redor - de Kleber Mendonça Filho - e Era uma vez eu, Verônica – de Marcelo Gomes — seguindo-se, aqui em João Pessoa, com uma ponta no capítulo-piloto de um seriado de Carlos Dowling - Arte e a Maneira de Abordar seu Chefe para Pedir um Aumento –, terminando, no sertão, com o curta Antoninha, de Laércio Filho.

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Com 69 anos, cheguei ao natal, depois ao ano novo... arrebentado, sentindo-me, pela primeira vez, velho, pelo que fui a um cardiologista e, pela primeira vez, a um geriatra. Constatado que não era por aí, pois estava fisicamente inteiro, disse “Chega”. Foi duro, pois em virtude da repercussão do Neighbouring Sounds nos Estados Unidos e Europa, O Som ao Redor no Brasil, com prêmios em São Paulo, Rio, Salvador, Roterdã, Copenhague, Varsóvia etc, etc, e uma crítica consagradora no The New York Times, choveu convite para todo o elenco, no meu caso com reforço do troféu de Melhor Ator Coadjuvante no Festival de Brasília pelo papel de pai de Verônica – vivido por Hermila Guedes - no segundo filme, e de Melhor Ator Coadjuvante pela participação no filme de Kleber, no Festival de Porto Alegre, incrivelmente escanteando Walmor Chagas e Lima Duarte. Mas consegui dizer "Não" para uma série
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televisiva no Uruguai e outra – essa, global, do Fernando Meirelles - em Salvador, mais uma participação numa terceira, em São Paulo, do Selton Mello, além de longas em várias outras cidades do país e mais uma intervenção na novela Velho Chico, da Globo.

Philip Seymour Hoffman e Robbin Williams certamente sentiram o desgaste da vida de cigano – que estanquei na fonte - e, mais, o da entrega total aos dramas intensos de tantos personagens com que ganharam justa fama. Ao dar uma palestra para psicanalistas, no “Espaço do Ser”, aqui na cidade, pareceu-me que os surpreendi quando assegurei que com o ator ocorre um fenômeno fantástico: o corpo acredita na cena que ele vive. Claro, pois não há como enrubescer, chorar ou empalidecer, se não for assim.

Sandra Luna, em seu soberbo Arqueologia da Ação Trágica, põe um ator grego falando sobre lágrimas que já derramara nas tragédias clássicas, século V a.C. Hamlet, ao ver um ensaio do grupo teatral que visita Elsinor, pergunta-se, chocado, na obra-prima de Shakespeare, o que aquele sujeito no palco seria de Hécuba, e Hécuba dele, para que – ante sua morte - chorasse tanto. Há, sempre, um transbordamento incontrolável, de emoção, quando se atua. Em Taperoá, por exemplo, em Eu Sou o Servo, de Eliézer Rolim, tive uma violenta crise de choro, seguida de intensa cefaleia – e não sou dado a esse tipo de coisa – depois de uma cena de fuzilamento que sequer foi aproveitada. Nas filmagens da cena de minha morte, no cearense Lua Cambará – de Rosenberg Cariry, quase emborco junto do personagem. Fui atendido por uma enfermeira, que nos revelou a causa: pressão 16 X 14, “uma vizinhança bastante perigosa”.

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Em A Canga, precisei ser amparado por Marcus Vilar e pelo diretor de fotografia, Walter Carvalho, depois de uma cena em que, dirigindo o arado puxado pelos filhos, pela mulher e pela nora, antevi que iria ser morto por Everaldo Pontes e – com fervor e desespero, a mão fechada no bentinho e escapulário - rezei a oração do corpo fechado... e ia desmaiando, depois de ouvir a palavra “Corta!”, mal-estar que se repetiu depois do costumeiro repeteco da gravação. O curioso é que jamais tive tais reações sendo eu mesmo, nem com o médico me dizendo que eu poderia ser fulminado de uma hora para outra, devido a uma trombo-embolia que tive, nem ante a notícia de que eu era cabra marcado pra morrer, em Pombal.

Consumiu-me, no entanto, no Recife, viver alguém que nada tinha a ver comigo, em O Som ao Redor – um velho empresário gozador, de passado sinistro, que costumava dar mergulhos durante a madrugada, em Boa Viagem, ao lado de uma daquelas placas vermelhas de Área Sujeita ao Ataque de Tubarões. Na cena em que eu seria morto pelo Irandhir Santos e Sebastião Formiga, minha pressão, mais uma vez, foi para as alturas e tive que ser medicado. Em Era uma vez eu, Verônica, vivi o papel de pai da personagem, um pobre e doente terminal, Zé Maria, experiência que culminou numa cena em que “minha filha médica” teve que me socorrer ante uma crise aguda de meu inominado mal, com aflitiva falta de ar. A cada repetição da sequência, uma tontura violenta, fora do alcance da câmera. Problema meu? Não.

Foi emocionante, arrepiante vê-lo transformado, até que, de repente, no auge, no clímax do seu solilóquio belissimamente interpretado, o colapso: ergueu-se num arranco, chorando...
Quando digo que representar é a mais terrível das artes é porque escrevi A Canga sem qualquer chilique daquele que tive no cenário seco de Monteiro. E era subgerente da agência do Banco do Brasil, em Pombal, quando, um ano antes de escrever essa história de camponeses, durante o expediente – dias depois de criar minha primeira peça, O Vermelho e o Branco, o texto já sendo encenado pelo colega Ariosvaldo Coqueijo – fui tomado de tal depressão, que, de repente, tirei uma longa tira de papel da máquina de somar e escrevi, de um jato só, um poema que, lido em seguida, teve efeito catártico: fez-me sentir bem, pois sublimara a angústia com aqueles versos, que me pareceram tão bons. Fui mostrá-los a Ariosvaldo, que se emocionou muito e me disse: “Vai ser meu monólogo inicial”. Além de dirigir o espetáculo, ele participava do elenco. Pois bem: acabei fazendo o líder estudantil “subversivo”, antagonista, e nunca vi meu companheiro de cena terminar aquela fala, nos ensaios, interrompido, sempre, por desadorado pranto, que o deixava no chão.

Quando cheguei a João Pessoa, em 70, escrevi uma adaptação da Antígona de Sófocles, na qual cada personagem era de uma época, de acordo com seu caráter: Creonte seria uma espécie de Idi Amin Dada, general tirânico, peito cheio de medalhas; Antígona seria a grega clássica, pura, idealista como a original: seu namorado, Hêmon — com menos atos do que babados — eu o imaginei da Belle Époque; Ismênia, irmã de Antígona, tipo “paz e amor”, tornou-se uma jovem hippie; e o sacerdote, transformei-o num cardeal.
Fonte ▪ SinpfetRO
Fazíamos a leitura de mesa no mezanino da AABB, com o enorme e ainda belo Walderedo Paiva como Creonte, Anco Márcio – ainda esguio - como Hêmon... e o colega do BB, Emilson Formiga, como o homem da Igreja. Pois bem: eu transferira para o seu personagem o monólogo de que já me servira em O Vermelho e o Branco e que ficaria, por fim, fazendo parte de meu primeiro romance, Israel Rêmora, publicado pela Récord em 75. Mas Emilson não conseguia entrar no papel. Vi que aquela longa fala desesperada estava difícil de engatar. Por isso investi nisso. Fiz com que ele a dissesse uma vez, dei-lhe meus comentários, li o texto para ele, que o leu pela segunda vez, novos comentários, nova leitura minha, nova leitura dele, a terceira tentativa, a quarta, a quinta, até que lá pela... décima quinta vez... o “espírito” baixou nele. Foi emocionante, arrepiante vê-lo transformado, até que, de repente, no auge, no clímax do seu solilóquio belissimamente interpretado, o colapso: ergueu-se num arranco, chorando, e correu para o banheiro, em que se trancou. Fui atrás e ouvi uma série de palavrões pelo mal que lhe fizera.

Porque, realmente, não é fácil.

Daí que, no final de 2010, tendo vivido toda uma vida no isolado e tranquilo silêncio da pintura e o da literatura, concluí que a do ator é a mais terrível das artes. O autor escreve, o diretor dirige, mas é o ator que finalmente tem que saltar no abismo, mergulhar fundo... e desarmar a bomba.

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