O poeta Linaldo Guedes disse ter acordado cheio de perguntas. Despertou assaltado por questionamentos sobre a validade da classificação “...

Por que classificamos?

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O poeta Linaldo Guedes disse ter acordado cheio de perguntas. Despertou assaltado por questionamentos sobre a validade da classificação “literatura paraibana” e “literatura regionalista”. Considero sua inquietação válida e, sobretudo, preciosa, porque nos auxilia na busca de entendimento do problema, que, diga-se de passagem, está longe de ser resolvido ou de ter uma resposta a contento.

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Em primeiro lugar, vou repetir o que já disse anteriormente, em outro texto sobre a classificação. Temos necessidade de classificar, pois só conseguimos entender um pouco o mundo quando o classificamos. É um sistema de estudo, antes de tudo. Não há compreensão de absolutamente nada sem que se erija um sistema. Somos classificados como homo sapiens sapiens, mas poderíamos ter uma subclassificação como homo sapiens sapiens taxonomicus, pois não somos apenas o homem que sabe que sabe, mas por excelência, o homem que sabe que sabe, por seu saber ser oriundo da classificação dos seres e das coisas. Classificar, por si só, não é ruim. O ruim é quando a classificação nos leva à segregação, outra coisa em que somos muito bons, apesar dos danos provenientes desse proceder.

Há muitos modos de entender o sintagma Literatura Paraibana: literatura produzida na Paraíba, de modo indiscriminado; literatura produzida na Paraíba por paraibanos, literatura produzida sobre a Paraíba, por paraibanos ou não, na Paraíba; literatura produzida sobre a Paraíba, por paraibanos ou não, fora da Paraíba etc. O rótulo maior – Literatura Paraibana – é apenas a ponta de um iceberg classificatório, que deve ser utilizado como um recurso didático. Afinal de contas, embora as situações de alguns romances de José Lins se passem na Paraíba ou mesmo A bagaceira, de José Américo, ou ainda A pedra do reino, de Ariano Suassuna,
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os assuntos ali tratados ultrapassam as barreiras regionais, assumindo a universalização, cujo tema é o homem e as suas vicissitudes, adversidades, aflições, inquietações. O toque da região existe para que lembremos que o homem, em qualquer parte, apresenta problemas semelhantes.

Quanto ao regionalismo, outra inquietação do poeta Linaldo Guedes, o questionamento diz respeito ao fato de que se considera José Américo de Almeida regionalista, enquanto José de Alencar, que também escreveu romances regionalistas, fica fora dessa classificação. Precisamos entender melhor a situação, que parece semelhante, mas que é diferente na essência e nos propósitos.

O Regionalismo literário não é novidade. Ele existe desde o século XVIII, sob a forma de nativismo, quando dois poetas brasileiros, Manuel Botelho de Oliveira, com o poema Silva à Ilha de Maré, e Frei Manuel de Santa Maria Itaparica, com o poema A Ilha de Itaparica, entendem de criar poemas exaltando as maravilhas da sua terra, ambos baianos. O Regionalismo se estende pelos séculos XIX e XX, mas sempre se mostrando com feição diferente.

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A princípio, na narrativa ficcional, podemos distinguir três tipos de Regionalismo na Literatura Brasileira. O primeiro surge com o Romantismo, quando José de Alencar comparece com O sertanejo e O gaúcho; Franklin Távora, com O Cabeleira. Nesse tipo de Regionalismo, observa-se uma temática romântica e o que menos importa é a ação do ambiente sobre o homem.

O segundo Regionalismo vem com o Naturalismo, com obras como O missionário, de Inglês de Souza; Inocência, de Taunay, e Luzia-Homem, de Domingos Olímpio. Nesse momento, o cenário muda. O ambiente age sobre o homem, determinando o seu comportamento, de acordo com a influência da filosofia determinista de Hypolite Taine,
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vendo o homem como um produto do meio, da raça e da época.

O terceiro Regionalismo é o que desponta com o Modernismo, a partir de 1928, tendo A bagaceira, de José Américo de Almeida como o romance iniciador do movimento a vir. A mudança de perspectiva é radical. O meio é adverso ao homem, mas não é o meio o responsável pela miséria humana. A miséria é produto de uma estrutura social injusta, que permite a exploração do semelhante, baseada no acúmulo do capital. O sertão seco não responde pela miséria que reduz o homem a um vivente ou o rebaixa a um animal, como vemos em Vidas secas, de Graciliano Ramos. A responsabilidade se encontra na estrutura fundiária atrasada. É emblemática a frase de José Américo, no prefácio de A bagaceira – “Antes que me falem”:

“Há uma miséria maior do que morrer de fome no deserto: é não ter o que comer na terra de Canaã.”

O problema não é não ter o que comer numa região duramente atingida pela seca, no caso o sertão, mas passar fome numa terra de fartura como é o brejo. Este doloroso e desumano paradoxo revela-se, no livro de José Américo de Almeida e nos demais que compuseram programaticamente o Regionalismo.
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Miséria ainda maior, quando sabemos que a descoberta dos ciclos da seca vem desde o século XVIII, sendo devidamente mostrados nesse imenso livro que é Os sertões de Euclides da Cunha, na sua primeira parte, “A Terra”, sempre mal lida e relegada a um segundo plano.

Trata-se, portanto, no Modernismo, de um Regionalismo Social, que redescobre um Brasil escondido, que não aparecia na Literatura, distanciado do mundo urbano, que sempre frequentou a preocupação dos escritores, e expõe a ferida da exploração.

Entendamos, por fim, que, contrariamente, ao regionalismo programático de 1928 em diante, José de Alencar não se propôs a fazer uma obra que refletisse literariamente a sua região ou determinada região do Brasil. O que ele idealizou e, sobretudo, realizou foi o planejamento de uma obra literária que lesse o Brasil, na sua história, na sua geografia, na sua formação. Saindo do período anterior à chegada dos portugueses à nossa terra (Ubirajara) e culminando
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com o Rio de Janeiro seu contemporâneo, como vemos em Senhora, passando do sul ao norte, do leste ao oeste. Um projeto literário grandioso, que o escritor levou 20 anos para realizar, de 1857 a 1877. Não há escritor no Brasil que tenha conseguido criar algo tão ambicioso como Alencar. No entanto, é forçoso dizer que se Euclides da Cunha é mal lido, Alencar nunca é lido ou não o leem sistemicamente. Que professor de literatura hoje se dispõe a ler 20 romances, alguns bem alentados, embora eles deem uma visão panorâmica, através da literatura, do que é o nosso Brasil?

Compreendo, portanto, que, mesmo que quiséssemos nos livrar da pecha da classificação e adotássemos apenas o termo Literatura, não teríamos resolvido a questão, pois estaríamos lançando mão, ainda uma vez, da classificação, tendo em vista que há textos que classificamos como não-literatura... Por outro lado, a inquietação vale não só para a questão “Por que literatura paraibana?”, ela vale também para “Por que literatura brasileira, francesa, inglesa, alemã...?”. Em outras palavras não sei como poderíamos nos livrar da classificação, a não ser a usando com critérios que devem ser bem esclarecidos. Mas eu mais uma vez, sei que o poeta Linaldo Guedes sabe disso e que apenas nos lançou uma inquietação-provocação, que eu aceitei de bom grado.

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  1. O que mais me motivou a participar do elenco de O Som ao Redor, em 2010, depois de vários anos sem querer saber de cinema, foi o fato de ver - ao ler o roteiro - que, pela primeira vez, um filme abordaria a classe média urbana nordestina contemporânea, coisa que eu já vinha fazendo em meus romances - como Israel Rêmora, A Batalha de Oliveiros e Relato de Prócula. Kleber Mendonça Filho se perguntara Por que não pego como tema a minha rua? Deve ter sido a mesma razão de ser de A Bagaceira e de Menino do Engenho. Na Wikipédia não consta meu nome nem na relação de poetas, nem de escritores da Paraíba, embora meus livros tenham partido da mesma pergunta. O que, na verdade, não me parece ter muita importância. Embora nunca tenha recebido aval nenhum disso, sempre achei que A Bagaceira é uma versão do Hamlet no Brejo paraibano, assim como o príncipe da Dinamarca, na verdade, se chamava Lucius Junius e era romano - isso, em virtude de um sistema de criação literária em que o centro é o ser humano, coisa que James Joyce, no Ulisses, seis anos anterior ao A Bagaceira, aceitou sem problemas, declarando abertamente que seu romance derivava da Odisseia, de Homero. Toda classificação, como disse Linaldo, concordo, é um problema. Mas necessária, embora ... bastante complicada, como assegura o mestre Milton Marques.

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