É possível que músicas de grande sucesso popular sejam canções sofisticadas, com melodias rebuscadas, harmonias elaboradas, andamentos incomuns e que foram gravadas com primorosos arranjos e orquestrações bem produzidas? A resposta afirmativa é demonstrada com a obra do compositor, pianista, maestro e arranjador norte-americano Burt Bacharach falecido, em fevereiro de 2023, quando se aproximava dos 95 anos de idade.
Burt Bacharach, em 2022Sirius (video still)
Burt Freeman Bacharach nasceu em Kansas City, mas a sua família se mudou para Nova York quando ele tinha quatro anos de idade. Começou a estudar piano e violoncelo ainda criança e, com 15 anos, formou uma banda de 10 componentes para tocar em festas, na qual ele era o pianista. Bacharelou-se em Música e, depois, fez especialização em teoria e composição tendo como um dos professores o francês Darius Milhaud. Nos dois primeiros anos da década de 1950, período em que prestou o serviço militar, Bacharach não se desligou da música, atuando como pianista e maestro de uma banda de baile para os militares.
Burt Bacharach, 1970sNBC Div.
Burt Bacharach e Hal DavidWikimedia
Josef von Sternberg e Marlene Dietrich, 1931 ▪ Fonte: Indiana Univ.
A marcante interpretação de Marlene Dietrich como Lola-Lola, a insinuante dançarina do cabaré O Anjo Azul, iniciaria a sua repentina ascensão como uma das principais atrizes do cinema mundial. Além das películas em que foi dirigida por Sternberg, Dietrich participou de filmes dos cineastas de maior destaque na sua época como Billy Wilder (Testemunha de Acusação e A Mundana), Orson Welles (A Marca da Maldade), Alfred Hitchcock (Pavor nos Bastidores), Fritz Lang (O Diabo Feito Mulher), René Clair (Paixão Fatal) e outros. Marlene Dietrich se tornou uma atriz admirada em todo o mundo ao ponto de, no início da década de 1950, uma polêmica nos jornais do Rio de Janeiro contrapôs os poetas Carlos Drummond de Andrade, partidário de Greta Garbo, e Vinícius de Moraes, um arraigado adepto de Dietrich, que escreveu sobre as razões que o levaram a adorar a atriz alemã:
“Quando eu andava aí pelos meus dezessete, era para o retrato dessa mulher, preso à parede do meu quarto, que eu olhava todas as noites antes de dormir. Tinha por ela um amor cego, irreprimível, absoluto. Via-lhe os filmes oito, dez vezes. Ela era grande, loura [...] Sua fala era grave e doce, e ela cantava umas canções com uma falta de voz que era a voz mais linda do mundo [...] Essa mulher, essa das pernas longilíneas e luminosas chamava-se, ou melhor, chama-se Marlene Dietrich.”
Marlene Dietrich ▪ Fonte: Fanpop
“Ele tocou uma canção atrás da outra, às vezes fazia anotações e então disse: ‘Amanhã, às dez horas, de acordo?’. Eu fiz que sim e ele foi embora. Sequer perguntei-lhe onde estava morando, e não saberia como encontrá-lo, caso não surgisse na porta no dia seguinte. Mas estava certa de que voltaria – o que não sabia é que ele viria a ser o homem mais importante na minha vida depois que tomei a decisão de dedicar-me totalmente ao palco.”
Essa união dos dois grandes artistas tanto alçaria para a fama o nome de Burt Bacharach como alavancaria o prestígio de Marlene Dietrich como cantora. Segundo Dietrich, quando eles se conheceram “o nome Burt Bacharach não era conhecido do público [...] Foi rejeitada minha proposta de escrever seu nome nos luminosos de Las Vegas ao lado do meu”. Esta situação poderá ser comprovada quando, em julho de 1959, no início da parceria entre a atriz celebrada e o músico ainda sem o sobrenome com o qual viria a ficar famoso, eles vieram ao Brasil para se apresentar no Rio de Janeiro e em São Paulo. O jornal carioca Correio da Manhã noticiou, assim, a chegada de Dietrich e Bacharach ao Rio: “Marlene Dietrich, acompanhada do seu pianista Burt Freeman e de sua ‘dame de chambre’, chegará esta manhã [...] A famosa artista estreará na próxima segunda-feira no Golden Room do Copacabana Palace”.
Marlene Dietrich, em turnê, ao lado de Burt Bacharach, 1950s ▪ Fonte: Reddit
Marlene Dietrich escreveu nas suas Memórias que, a partir do seu encontro com Bacharach passou a viver “só para os concertos e para ele. Essa foi a mais radical mudança em minha vida. Depois de ter sido jogada num mundo do qual nada sabia, eis que de repente encontrei um mestre [...] Tivemos um êxito retumbante, recebemos críticas brilhantes”.
Embora Bacharach tenha negado em entrevistas ter existido algo mais entre ele e Dietrich do que a relação profissional entre o maestro e a cantora, as declarações extremamente amorosas de Marlene sobre ele no seu livro (“como homem ele personificava tudo o que uma mulher podia querer”) deixam uma dúvida imensa sobre isso. A diferença de idade dos dois (27 anos) não seria nenhum problema, até porque na vida real Dietrich continuava a mesma femme fatale dos seus fimes, sem preferência de gênero.
No início da década de 1960, as músicas compostas por Bacharach começaram a despontar com frequência no hit parade como foram os casos de Any Day Now, Please Stay, Make It Easy On Yourself, Don't Make Me Over e The Man Who Shot Liberty Valance inspirado no western clássico homônimo de John Ford (no Brasil O Homem que matou o Facínora). As composições de Burt Bacharach faziam sucesso por todo o mundo e Baby It's You, gravada originalmente pelo grupo vocal feminino Shirelles, foi incluída, em 1963, no álbum de estreia dos Beatles.
Marlene Dietrich relata no seu livro que, quando Bacharach “ficou famoso não pode mais acompanhar-me nas minhas viagens pelo mundo [...] Quando me abandonou, deu vontade de jogar tudo para o ar. Havia perdido meu guia, meu apoio, meu professor e mestre [...] Acho que ele não se dava conta do quanto dele eu necessitava”. Dietrich continuou se apresentando como cantora e só voltaria a atuar no cinema em 1978, em “Apenas um Gigolô”, que seria seu último filme. Marlene Dietrich faleceu em 1992 aos 91 anos.
Burt Bacharach e Angie Dickinson, 1980sFanPop
Bacharach, depois das apresentações com Marlene Dietrich, em 1959, veio outras vezes ao Brasil, a última em 2013, quando já estava com 85 anos. Permaneceu ativo até os seus últimos dias se envolvendo com intérpretes e compositores mais jovens, como Elvis Costello e outros. Burt Bacharach faz parte da galeria dos principais compositores de música popular de todo o mundo, ao lado de nomes como Cole Porter, Jerome Kern e Tom Jobim.