O título deste artigo é parte de uma pergunta de Victor Hugo, no célebre prefácio para a sua tragédia Cromwell (1825), conhecido, post...

O que é o Coro?

teatro grego antigo tragedia coro victor hugo
O título deste artigo é parte de uma pergunta de Victor Hugo, no célebre prefácio para a sua tragédia Cromwell (1825), conhecido, posteriormente, como “Do grotesco e do sublime” – “Or, qu’est-ce que le choeur?”.

Em uma página desse prefácio, Victor Hugo diz mais sobre a tragédia do que muitos estudos alentados sobre o assunto. Ao mesmo tempo, há uma aproximação entre as ideias do escritor francês
teatro grego antigo tragedia coro victor hugo
Ulrich von Wilamowitz-Moellendorff
e as do alemão Ulrich von Wilamowitz-Moellendorff (1848-1931), professor titular de Filologia Clássica, na Universidade Humboldt, de Berlin, uma das maiores autoridades em literatura grega, mais especificamente, em tragédia, que formou entre os seus alunos, nada menos do que Werner Jaeger, autor da celebrada obra Paideia, sobre o mundo grego.

Na apresentação do volume O que é uma tragédia Ática? (Qu’est-ce qu’une tragédie Attique?, tradução de Alexandre Hasnaoui; Paris, Les Belles Lettres, 2001), introdução que Willamowitz escreve para a sua principal obra sobre a tragédia grega, Caroline Noirot diz da importância do filólogo alemão (op. cit., p. VII, em tradução nossa):

“Em 1928, Ulrich von Wilamowitz-Moellendorff era professor na Universidade de Berlim. Do alto de sua cátedra, o oráculo reinava como mestre sobre os estudos clássicos.”

A tradução francesa diz respeito ao segundo capítulo daquela que é considerada a principal obra de Wilamowitz, Euripides Herakles (Héracles, de Eurípides, 1889), e é, como diz o seu título em alemão, Einleitung in die attische Tragödie, uma introdução à tragédia ática. Como capítulo autônomo da obra, a sua tradução para o francês, em forma de livro, operou-se sem perda de sentido.

teatro grego antigo tragedia coro victor hugo
Ulrich von Wilamowitz-Moellendorff
A ligação entre Hugo e Wilamowitz, apesar da distância temporal e da primazia das ideias do francês, além da semelhança na forma de uma pergunta – “Or, qu’est-ce que le choeur?” (Hugo: “Ora, o que é o coro?”); “Was ist eine attische Tragödie?” (Wilamowitz: “O que é uma tragédia Ática?”) –, encontra-se no desenvolvimento do que se pergunta. É óbvio que o teórico, conhecedor da matéria por fora, será mais minucioso no seu estudo; já o ficcionista, conhecedor do assunto por dentro, será sucinto, apreendendo a essência da tragédia, que se encontra justamente no coro.

Hugo mergulha no âmago da tragédia, vendo o coro como elemento imprescindível à fabulação. Sem o que o coro professa, a fala e a ação dos personagens tornar-se-iam incompreensíveis. Deve-se considerar o coro como um dos atores (ὑποκριτῶν),
teatro grego antigo tragedia coro victor hugo
Victor Hugo
parte dο todo (μόριον τοῦ ὅλου), que é a tragédia, por concorrer com a ação (συναγωνίζεσθαι), como define Aristóteles, na Arte poética (1456a). Considerá-lo, sobretudo, como um personagem que dá sentido ao drama, apesar de ter perdido o seu protagonismo, quando da introdução de um segundo ator em cena por Ésquilo, como afirma Wilamowitz (p. 94).

Constituída para ser encenada em três ambientes – a orquestra, em que se movimenta o coro; o proscênio, em que atuam os personagens; a cena, onde ocorrem as ações que não devem ser mostradas ao público, apenas relatadas, como assassinatos, suicídios, mortes violentas, incestos... –, a tragédia criou um quarto ambiente, menos óbvio, quase sempre esquecido e negligenciado pela crítica: o espaço dos espectadores. Trata-se de local importante, pois é com o público, tanto quanto com os atores, que se dá a interação do coro, daí a sua localização num local mais baixo do que o proscênio, porém mais próximo do espectador, que o circunda, fazendo suas evoluções em torno do altar de Dionisos, momento em que se ressalta o elemento do sagrado, o inefável, revelado, na dança cantada do coro.

teatro grego antigo tragedia coro victor hugo
teatro grego antigo tragedia coro victor hugo
Antifeatro de Epidauro, GréciaMilton Marques Jr.
A tragédia grega destina-se a um público, a quem leva a lição de elevação moral, de instrução e educação, que cada peça deve conter, refletindo sobre o sistema democrático em que ele vive e que permitiu a participação de todos os cidadãos, a partir de espetáculos subsidiados pelos governantes. A esse respeito, afirma Wilamowitz (p. 97):

“O drama ático tornou-se na educação e na instrução do povo, um complemento da epopeia, visto que a contribuição do lirismo era minúscula e que a da elegia se reduzia a algumas sentenças muito bonitas, mas bem triviais. Homero e os trágicos eram o Moisés e os profetas da Hélade.”

Consciente dessa importância, Victor Hugo, ele mesmo um dramaturgo e tragediógrafo, define o coro de maneira fático-metalinguística, antecipando a visão de Wilamowitz (Cromwell, Paris, Garnier-Flammarion, 1968, “Préface”, p. 65, tradução nossa):

“Ora, o que é o coro, este singular personagem situado entre o espetáculo e o espectador, senão o poeta completando a sua epopeia?”
teatro grego antigo tragedia coro victor hugo
Representação do coro e do corifeu no teatro grego antigo
Sem o coro, com seus ensinamentos sobre a tradição mítica e sobre a religião, a tragédia ficaria restrita ao mesquinho, ao comezinho do meramente humano – a ambição, a ganância, a traição, o ciúme, a fraqueza, o vício do poder... A retirada do coro, na tragédia moderna, como se fosse um mero apêndice, sequestrou dela a sua alma. Conforme assevera Wilamowitz (p. 115):

“Seu declínio era inevitável, a partir do momento em que o povo ático se liberou da legenda.”

Tendo a tragédia nascido da epopeia, mais um ponto de convergência entre Hugo e Wilamowitz, o autor de Les Misérables diz que “quando toda a ação, todo o espetáculo do poema épico passaram pela cena, o que resta, o coro toma para si” (p. 65),
teatro grego antigo tragedia coro victor hugo
Anfiteatro de Dionisos, Atenas
pelo fato de que é o coro que pontua o que há de mais importante na fabulação, voltando-se tanto para a tradição, cuja base é o mito, quanto para as transgressões religiosas, de modo a atualizar, em seu solilóquio, às vezes diálogo, no momento dos stasimos, ou nas ações dialogadas do Corifeu com o personagem em cena, em intervenções essenciais, o esclarecimento sobre o destino dos personagens (Hugo, p. 65):

“O coro comenta a tragédia, encoraja os heróis, faz descrições, chama e expulsa o dia, rejubila-se, lamenta-se, algumas vezes faz o ornamento, explica o senso moral do assunto, elogia o público que o escuta.”

O que é ratificado por Wilamowitz (p. 96):

“A legenda heroica tornara-se a matéria do poema e o poeta apresentava partes isoladas dela a seu público, assim como Homero fizera, para o instruir e o educar.”

O senso moral do assunto, de que fala Victor Hugo, é o que Wilamowitz chamou de legenda, que podemos traduzir também por mito, no sentido do termo grego, de uma narrativa que procura explicar, de modo concreto e possível, para aquele momento, o mundo. Segundo Wilamowitz, “a legenda reúne antes de qualquer coisa a memória viva de um povo” (p. 99), estando, “lado a lado com a religião” (p. 105), tendo em vista que “a tragédia era uma parte integrante do serviço religioso do culto dionisíaco” (p. 122).

teatro grego antigo tragedia coro victor hugo
Encenação no teatro grego antigo ▪ Fonte: shpl
Wilamowitz-Moellendorff, por sua vez, não tendo qualquer dúvida a respeito do nascimento da tragédia a partir da epopeia homérica, nos dá uma maravilhosa lição, tanto mais eficaz pela sua formulação sintética (Wilamowitz, p. 95):

“Homero havia preparado um imenso banquete para o povo e Ésquilo lhe servia certos pratos.”

Veja-se o que Hugo diz sobre a relação epopeia/tragédia e sobre Homero, este rio imenso em que todos se desalteram (p. 65):

“Todos os trágicos antigos detalham Homero. Mesmas fábulas, mesmas catástrofes, mesmos heróis. Todos bebem no rio homérico. Sempre a Ilíada e a Odisseia. Como Aquiles arrastando Heitor, a tragédia grega gira em torno de Troia.”

Ora, das 32 tragédias que nos chegaram – 7 de Ésquilo, 7 de Sófocles e 18 de Eurípides – quase a metade, 15 peças, diz respeito, direta ou indiretamente, à guerra de Troia:

Ésquilo: a trilogia Oresteia, constituída por Agamêmnon, Coéforas e Eumênides;
Sófocles: Ájax, Electra e Filoctetes;
Eurípides: Andômaca, Hécuba, Electra, As Troianas, Ifigênia em Táuris, Helena, Orestes, Ifigênia em Áulis e Rhesos.

A tragédia Rhesos, de Eurípides, é a única que trata diretamente de um episódio da Ilíada, retomando o Canto X, conhecido como a Dolonia. Odisseus e Diomedes fazem uma incursão pelo acampamento troiano, à noite, de modo a saber a posição do inimigo que, de assediado, tornou-se assediador dos Argivos. Eles encontram com Dólon, guerreiro troiano,
teatro grego antigo tragedia coro victor hugo
Diomedes mata Rhesos / Ulisses rouba os cavalos do acampamentoBernard Picart, 1710
designado para tarefa semelhante, aprisionam-no, fazem-no delatar as posições troianas e o matam, não antes de saber que o rei trácio Rhesos havia chegado com os seus cavaleiros para auxílio de Troia. Diomedes e Odisseus vão até o acampamento de Rhesos, matam-no e a seus cavaleiros, e roubam os cavalos, levando-os para o acampamento argivo.

Apesar da confluência de pensamento, acredito ser improvável Wilamowitz ter lido Hugo, por conta das relações sempre tensas entre Alemanha e França, um dos fatores por que o livro do filólogo alemão só é traduzido para o francês, em 2001, apesar de publicado em 1889. A percepção de Victor Hugo, como crítico, se erige a partir do seu conhecimento de leitura, do grande escritor que já era, apesar de ter apenas 23 anos no momento em que escreveu a tragédia Cromwell, fazendo do seu prefácio um texto imprescindível a quem quer que deseje estudar literatura e, mais precisamente, os gêneros literários.

Assim como diz Hugo, a respeito do detalhe homérico ampliado pelos tragediógrafos, o mesmo deve fazer o crítico ou o leitor-crítico, quando com ele se depara em sua leitura: atentar para o detalhe, pois é nele que se encontra a medula, substância que nutre a ossatura da obra de arte. Embora a comunhão entre Hugo e Wilamowitz seja das mais felizes, pelo fato de que “a poesia e a filosofia jamais poderão prescindir do filólogo, pois só ele tem as chaves que abrem as portas da compreensão da tragédia ática” (Wilamowitz, p. 140), nem sempre é assim que se dá o encontro entre o ficcionista e o crítico. Aquele, o mais das vezes, numa página sintetiza o que o crítico precisa de todo um livro para poder (mal) dizer.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE

leia também