Augusto dos Anjos é um dos poetas mais citados do Brasil. A originalidade de suas imagens e o vocabulário esdrúxulo sensibilizam o gosto popular. Muitos repetem mesmo sem entender fragmentos de seus poemas, seduzidos pela áspera musicalidade ou pela estranheza que deles se irradia.
Há também os que repetem o poeta pelo que há nele de aparentemente sentencioso, identificando em seus versos verdades gerais sobre o sentido da existência humana. Isso ocorre porque na sua poesia há muito do que Wolfgang Kayser chama de “enunciação lírica”, que ao lado da “linguagem da canção” e da “apóstrofe lírica” forma o trio no qual se pode dividir o lirismo.
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Cecília Meireles e Vinicius de Moraes constituem, grosso modo, exemplos de uma e de outra atitude. A primeira, “cantando porque o instante existe”; o segundo, sendo “antes de tudo atento ao seu amor”, com quem trava um combate do qual inevitavelmente sai derrotado. Nesse caso a mulher aparece como alguém que o maltrata pelo que tem de inalcançável e fugidia.
Augusto dos Anjos se insere na “enunciação lírica” tanto pela aparente generalidade das suas formulações, quanto pela sintonia de um Eu com um Nós que é toda a espécie humana. Mas nada há de épico nisso; a epopeia celebra grandes feitos e tem uma conotação triunfal. Não se confunde com as confissões de quem mais de uma vez se diz “vencido”, como o nosso poeta. Nele essa vertente do lirismo se traduz no tom aforístico, ou seja, numa aparência de verdade moldada por sua peculiar melancolia (é conhecida, afinal, a tendência do melancólico às elucubrações).
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Vivendo entre feras, como reconhece o eu lírico no segundo quarteto, o homem não poderia se eximir dessa condição. Esse modo de ver, é bom lembrar, reflete o determinismo que imperava na filosofia e na ciência de fins do século XIX e para o qual o meio, a herança e o momento definiam como nos comportávamos.
No poema, a visão pessimista sobre a espécie humana se confirma por meio de duas vigorosas antíteses: “o beijo é a véspera do escarro e “a mão que afaga é a mesma que apedreja”. A primeira é considerada por muitos de mau gosto devido à presença do vocábulo “escarro”. Pondere-se, no entanto, que o poeta não se refere propriamente ao ato de escarrar; alude, por metonímia, à rejeição e ao desprezo implícitos nesse ato. Por essa clave interpretativa é que se pode opor o escarro ao beijo, que como “véspera” o antecede.
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No fecho do soneto acentua-se o ceticismo e a descrença: “Se a alguém causa inda pena a tua chaga,/ apedreja essa mão vil que te afaga,/ escarra nessa boca que te beija”. Aqui o desencanto aparece numa representação mais veemente devido ao tom conselheiro que desencoraja qualquer tipo de ilusão. É como se o eu lírico dissesse: não te iludas com aparentes afagos e antecipa em outrem o desprezo que ele te destinará.
Essa visão sobre o ser humano não pode ser tomada como uma verdade axiomática, do contrário não apareceria num texto pertencente ao gênero lírico. Por mais sentenciosas que pareçam as formulações associadas à “enunciação lírica”, elas não passam da manifestação de um eu – um eu menos emocional, mais reflexivo, porém comprometido sobretudo com as contradições que o angustiam.