Em criança, eu ouvia dizer: “Perfeito, só Deus”. Ouvia e ainda ouço muito, mas parece que o ser humano afirma isso e ...

Ânsia de perfeição

perfeicao ansia perfeccionismo
Em criança, eu ouvia dizer: “Perfeito, só Deus”. Ouvia e ainda ouço muito, mas parece que o ser humano afirma isso e pensa outra coisa. Sabe que só Deus é perfeito, mas deseja no íntimo atingir um nível de grandeza incompatível com a sua finitude e precariedade. Quer ser além do que pode e sabe, e sofre com a percepção dos próprios limites.

É preciso distinguir a ânsia de perfeição do perfeccionismo. A primeira, que tem uns arremessos metafísicos, é uma espécie de atributo ontológico. Gera no homem uma inquietação que o faz voltar-se para o sobrenatural, a filosofia, a religião, a arte.
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Snem
Sem ela o homem não aspiraria a uma grandeza que, com fundamento ou não, leva-o a querer transcender a sua condição animal.

O perfeccionismo é antes um conjunto de hábitos que atendem à performance social. Não visa ao transcendente, não é animado por uma inquietação, digamos, de ordem superior. O perfeccionista satisfaz-se com uma espécie de ordenamento imanente de objetos, hábitos e modos de ser. Ele é escravo das coisas e está mais propenso à obsessão do que à melancolia – que, por sinal, tende a acometer o indivíduo com ânsia de perfeição.

O obsessivo se compraz na repetição dos gestos e hábitos que lhe abrandam e realimentam a angústia, e acaba por esquecer o fundamento da sua inquietação. É um ritualista disposto a compensar nos objetos, de forma insaciável, a tortura que lhe atormenta o espírito. O melancólico, não. Nada o faz alhear-se da sua ferida profunda, nada que seja deste mundo o faz concentrar-se em outra coisa que não seja o seu vazio.

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Wilhelm Gunkel
A ânsia de perfeição orienta-se no sentido de um ideal. Sendo assim, visa ao inatingível. No entanto é essencialmente constitutiva, não digo da natureza, mas da condição humana. Sem essa ficção que nos inventa, o que seria de nós? Sem esse imperativo de conduta que misteriosamente nos orienta o desejo, a que caminhos seríamos conduzidos? Certamente a caminho nenhum.

Em literatura, um dos produtos da ânsia de perfeição é o culto da forma, ou a deprimente sensação de que o que escrevemos está pífio, medíocre, aquém de nós mesmos. A melhor forma de lidar com este sentimento é ter humildade e, contra todos os escrúpulos, editar o livro, a tese, a crônica, e mandá-los do jeito que estão. Como aliás vou terminar fazendo depois de escrever estas linhas. É uma forma de me contentar com o possível. Deixar a outros a tarefa de fazer melhor, ou deles esperar o máximo, são afinal artifícios com que driblamos a ânsia de perfeição.

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  1. Lindo texto Professor. A expressão Humildar-se reflete o que senti lendo suas conclusões.

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    1. Grato pela generosa avaliação!

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