O problema do mal tem implicações práticas na experiência humana, provocando um diálogo interdisciplinar sobre o sofrimento e a busca p...

O mal

O problema do mal tem implicações práticas na experiência humana, provocando um diálogo interdisciplinar sobre o sofrimento e a busca pelo sentido da existência. Trata-se de uma indagação profunda sobre a natureza do universo, do sagrado e da humanidade diante da dor e da injustiça.

As tradições espirituais orientais possuem visões peculiares sobre o mal. No hinduísmo, as concepções sobre o mal exigem o domínio de vários conceitos, a exemplo de Maya, ou ilusão; de Dharma e Adharma, dever e injustiça; da lei do karma; e da dualidade entre asuras, ou seres demoníacos, e devas, ou seres divinos. Mesmo Kali, a deusa associada à destruição, não possui a conotação negativa atribuída à figura do diabo no ocidente, pois é vista como parte de um ciclo de renovação.

judasmetking
O entendimento do mal no hinduísmo é multifacetado e só pode ser compreendido apropriadamente no contexto de sua própria cosmogonia. Na visão taoísta, não há uma clara dualidade entre bem e mal, e sim uma interdependência. O que pode parecer "mau" em um contexto pode ter uma função importante no equilíbrio global. A noção de "wu wei", ou ação sem esforço, sugere que agir em harmonia com o fluxo natural das coisas é preferível a tentar controlar as circunstâncias, o que pode levar ao sofrimento.

No Xintoísmo, também não há uma concepção clara de bem e mal como dualidade, mas sim uma ênfase nas forças da pureza e da impureza. O budismo, por sua vez, aborda tanto o sofrimento quanto o mal como partes da existência cíclica, ou samsara, com a possibilidade de libertação, ou nirvana, por meio do caminho espiritual.

As tradições religiosas monoteístas, como o cristianismo, o islamismo e o judaísmo, possuem concepções de mal que envolvem a transgressão das leis ou da vontade divina, com o mal sendo associado a forças adversas ou a entidades malignas.

George Frederic Watts
No judaísmo, o mal é compreendido através de conceitos como "Yetzer Hara", a inclinação para o mal, e "Yetzer Hatov", a tendência para o bem. A livre escolha e a responsabilidade individual são enfatizadas, com ênfase no arrependimento, ou teshuvá, como meio de corrigir ações negativas. A justiça divina e os ensinamentos morais e legais da Torá fornecem orientações sobre o que é considerado certo e errado.

O judaísmo antigo via o mal como resultante da desobediência a Deus, enquanto o cristianismo incorpora a ideia do pecado original e enfatiza a necessidade de redenção. Nas denominações cristãs tradicionais, o mal é originado na rebelião de Satanás e na queda da humanidade, resultando no pecado. Em tal perspectiva, a redenção seria alcançada através de Jesus Cristo, que oferece perdão e salvação, com o Juízo Final culminando na vitória definitiva do bem sobre o mal.

Shaitan Istikhara
No Islã, o mal é associado a Shaitan, uma entidade espiritual que tenta desviar os crentes do caminho certo. A vida é vista como um teste, cheio de tentações e desafios. Os seres humanos têm livre arbítrio e são responsáveis por suas escolhas. O arrependimento, ou tawbah, é enfatizado como uma forma de se afastar do mal. A obediência aos mandamentos divinos, a paciência diante das adversidades e a submissão a Allah são considerados meios de resistir ao mal e buscar uma vida justa.

Dentro da tradição islâmica, mas numa abordagem mais secular, o pensador medieval Al-Farabi, discute a relação entre o bem e o mal em sua obra "A Virtude do Legislador”. O mal, na visão de Al-Farabi, surge quando as leis e instituições não são projetadas para promover o bem comum. Segundo ele, o legislador ideal, desempenha um papel crucial na criação de leis sábias que devem orientar os cidadãos para a virtude e impedir a propagação do mal, que se relaciona a desordem e ao caos.

Platão @filosofianaescola
Do ponto de vista filosófico, o mal se refere a ações, comportamentos ou decisões que são consideradas moralmente erradas, prejudiciais ou injustas. Diversas abordagens filosóficas exploram o conceito de “mal” desde a antiguidade. Os pré-socráticos eram mais afeitos a questões cosmológicas em vez de questões que envolvem o agir humano. No entanto, alguns, como os pitagóricos, sugeriram a existência de opostos morais. Na República, Platão explorou a natureza da justiça e da moralidade, sugerindo que o mal resulta da ignorância e da falta de conhecimento sobre o que é verdadeiramente bom.

Aristóteles, em sua ética, concentrou-se na busca pela virtude como meio-termo entre extremos, concebendo o mal como resultado de excessos ou de deficiências nas virtudes morais. Estoicos, como Sêneca e Epiteto, acreditavam que as pessoas deveriam aceitar as coisas que não podiam mudar e focar no desenvolvimento da virtude para alcançar a tranquilidade. Por sua vez, Epicuro via o mal como resultado do medo, da ignorância e do sofrimento, propondo a busca do prazer moderado e da ataraxia.

Plotino CC0
Durante o período helenístico e romano, diversas escolas filosóficas, como a cínica e a neoplatônica, também aportaram suas interpretações particulares sobre o mal. Para Diógenes, o mal era frequentemente associado às convenções sociais, à hipocrisia e à busca excessiva por bens materiais. A seu turno, Plotino entendia o mal como uma ausência de bem, que surge quando há um afastamento do Uno, a fonte do Bem Supremo.

Santo Agostinho via o mal como uma consequência do Pecado Original. Ele explorou a relação entre o livre arbítrio humano e a vontade divina, enfatizando a necessidade da graça divina para a redenção humana.

Na filosofia medieval, a ideia de mal estava baseada na teologia cristã. Santo Tomás de Aquino, a maior expressão do pensamento cristão medieval, também abordou o mal como uma ausência ou desvio do bem, como uma carência de perfeição, problematizando-o nesse contexto.

Embora à margem da doutrina oficial, o dualismo adotado por comunidades cristãs medievais como a dos albigenses e dos cátaros, considerava o mundo material como intrinsecamente mau. Místicos cristãos, como São João da Cruz e Santa Teresa de Ávila, abordaram o mal no âmbito da purificação espiritual. O caminho místico proposto por eles envolvia superar os desejos egoístas e alcançar a união com Deus como uma forma de transcender a corrupção da carne.

Santa Tereza de Ávila Pietro Novelli
Com o advento do iluminismo, o mal passa a ser considerado sem a mediação da fé. Kant enxergou o mal como uma violação do dever moral, considerando-o como uma afronta às leis morais universais. Os utilitaristas, como Bentham e Mill, problematizaram o mal em relação às suas consequências para o bem-estar geral. Segundo o princípio da utilidade, uma ação é moralmente correta se maximizar a felicidade e minimizar o sofrimento, numa perspectiva depois reproduzida pelo filósofo político norte-americano Jonh Rawls em sua famosa concepção de justiça como equidade.

Espinoza via o mal como uma parte inevitável e necessária do curso natural das coisas. Leibniz igualmente enxergava o mal como uma parte inexorável do mundo, crendo, porém, que Deus, em sua sabedoria, permite o mal como parte de um plano maior para alcançar o melhor resultado possível em termos de ordem e perfeição. Hobbes considerava o mal como resultante da natureza humana egoísta. Segundo ele, sem um contrato social, a busca individual pela autopreservação levaria a um estado de guerra generalizada de todos contra todos.

Sartre explorou o mal como resultante da “má-fé”, que seria uma negação das obrigações impostas pela condição humana. Para ele, o mal surge quando as pessoas evitam fazer escolhas conscientes. A "má fé" sartreana se refere a viver em contradição com a própria liberdade e responsabilidade.

Gottfried Wilhelm Leibniz / Thomas Hobbes Andreas Scheits / John Michael Wright
Eu não estou convencido se a crítica “pós-moderna” às concepções filosóficas tradicionais pode mesmo ser chamada de pensamento. De qualquer modo, essa corrente pretende descontruir as narrativas metafísicas sobre bem e mal. Seu destaque está nas interações interpessoais, na rejeição dos dualismos que considera como simplistas e na construção subjetiva de noções de bem e mal a partir de experiências individuais.

A iconoclastia levada às últimas consequências se torna um problema quando o relativismo moral é instituído como padrão oficial em substituição a outros não desejáveis. É inegável que a falta de uma fundamentação ética consistente inviabiliza o enfrentamento de problemas morais concretos. Embora se pretenda muito arejada, a excessiva ênfase na subjetividade e na rejeição de princípios éticos universais acaba conduzindo a uma visão instável e tão fossilizada quanto as abordagens tradicionais criticadas pelos autores contemporâneos.

Dante e Virgílio no Inferno William-Adolphe Bouguereau
Dizer que o mal é apenas uma “interpretação” ou um ponto de vista particular é endossar as atrocidades, transgressões, crimes e danos objetivos causados por predadores contra suas vítimas. Como demonstram as grandes crises morais da humanidade, a negação do mal e dos seus efeitos só é feita por ignorância, pusilanimidade ou cumplicidade.

Sem dúvida, o mal existe e deve ser combatido em nós mesmos e no mundo, mas devemos sempre nos lembrar que o pior mal será sempre aquele que fazemos aos outros, muito mais do que o que deles sofremos. Para Sócrates, ao praticar o mal, uma pessoa prejudica a sua própria alma, o que ele considerava como sendo mais danoso do que qualquer sofrimento externo. Assim, a preferência por sofrer o mal reflete a ideia de que preservar a integridade da alma virtuosa é mais valioso do que evitar o sofrimento a qualquer custo. O mal que ainda existe em nós mesmos, é o que mais temos a temer.

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