Era uma manhã de sol, não me lembro mais qual era o dia da semana, no vão central da pequena capela de Nossa Senhora da Conceição, que no dia 8 de dezembro rendemos homenagens, estava um caixão contendo o inerte instrumento, que um dos espíritos mais elevados que tive o privilégio de conhecer, se utilizou para desempenhar sua missão sobre essa terra.
Me chamou a atenção um pequeno pássaro, que num voo rasante, pousou a borda do caixão, ficou por ali um breve tempo, como a despedir-se, e foi embora. Lembrei imediatamente de uma história que ele havia me contado,
Na verdade, eu conheci Hortêncio numa manhã de domingo, de que também não lembro mais o ano.
Quando ainda na minha juventude, eu frequentei uma organização chamada União Espírita Deus, Amor e Caridade, mais conhecida como a Casa da Vovozinha, e fazia parte da Mocidade Espírita Bezerra de Menezes, que aos domingos pela manhã, tinha, alternadamente, duas missões: uma, era a campanha do quilo, que consistia em sairmos em grupo a pedir doações de alimentos para as vovozinhas que vivam naquela casa, e a outra, eram as visitas a Hospitais, Manicômios, Cadeias e, também, a única entidade que cuidava de portadores de Hanseníase na região, que era a Colônia Getúlio Vargas, localizada na cidade de Bayeux.
Pois foi num domingo desses, em uma visita do grupo àquele lugar, que eu dei de cara com esse conterrâneo que eu nem sabia existir, e menos ainda, que em breve nos tornaríamos amigos e vizinhos.
Uma das edificações da Colônia Getúlio Vargas, em Bayeux-PB, que abrigava enfermos com hanseníase.
“Quando eu vivia no isolamento, naquela casinha no meio do mato”, me contou ele, “eu via passar no céu um avião, e quando mamãe vinha me ver eu dizia a ela: eu ainda vou voar de avião! ”
Colônia Getúlio Vargas, 1950s
Hortêncio Ribeiro Maciel nasceu em 26 de março de 1931, aqui, nesta localidade, onde hoje, com muita justiça, o poder público Municipal, na Pessoa do Prefeito Expedito Filho, dá seu nome a esse importante equipamento comunitário.
Hortêncio Ribeiro Maciel
A Lepra, provavelmente, era tão pavorosa quanto o Cólera, no que se refere ao alto grau de possibilidade de contaminação, a diferença era que a letalidade do Cólera, erradicada no Brasil no fim do século XIX, era quase que fulminante, enquanto a lepra ia, aos poucos, carcomendo o corpo, deformando-o, decompondo-o em vida, daí o medo e o preconceito, baseados numa profunda ignorância acerca da doença. A medicina ainda não tinha uma resposta para ela.
E como fizeram com Manoel Valdivino, praticamente contemporâneos, que segundo contam os relatos, enlouqueceu por volta dos 16 anos depois que almoçou uma galinha e foi tomar banho de açude, o isolaram em uma casinha no meio do mato. A diferença, é que Manoel terminou seus dias, já velho, naquela mesma casinha, e Hortêncio ganharia o mundo, espalhando uma mensagem de superação e luta, agarrando-se as oportunidades que a vida também lhe dera.
Isolado em seu retiro forçado, criança, tinha apenas a visita de sua mãe, que lhe provia de água, comida e muito amor.
Colônia Getúlio Vargas, em 2023 ▪ Fonte: Paraíba do Passado
“Quando foi um dia, meu pai recebe a intimação. (...) O Delegado foi com meu pai a Prefeitura (...) lá, o Prefeito disse: aqui na cidade corre rumores de que você está com um filho leproso dentro de casa. Você é proprietário, mora no que é seu, eu não posso mandar retira-lo. Mas eu lhe digo! Se você não tirar esse menino de dentro de casa, não vai sair nada, você negocia no comércio, você é agricultor, lavra milho, feijão, arroz, algodão. Nada vai sair de sua casa.”
Quem não lembra da famosa passagem supostamente bíblica, contra a qual o próprio Hortêncio lutou, e que conta a fantasiosa história de que Pedro, desavisadamente, sentou-se em uma pedra e Jesus o havia mandado levanta-se porque há séculos, ali havia sentado um leproso?
Hortêncio foi removido de sua casinha e mandado para a Colônia Getúlio Vargas na carroceria de uma caçamba, e até a escada que ele usou para subir no veículo, foi depois queimada.
As cidades de Triunfo e Bayeux estão localizadas em extremos opostos do estado da Paraíba, separadas por 488 quilômetros. ▪ Mapa: Wikimedia Commons
Hortêncio Ribeiro Maciel
“Durante todo o período em que esteve nessa instituição, desempenhou as mais variadas atividades no cotidiano hospitalar: foi o responsável pelo almoxarifado, enfermeiro, carcereiro, barbeiro, garçom e prefeito, por exemplo. Em 1961 foi para a Colônia Antônio Justa, no Ceará, trabalhar como enfermeiro. De volta à Paraíba em 1964 e após ter tido alta, casou-se e assumiu a responsabilidade pelo funcionamento da farmácia da Colônia Getúlio Vargas. Em 1981, saiu da Colônia e foi morar com a esposa na região de Alto do Mateus; cerca de dois anos mais tarde foi contratado pela Secretaria Estadual de Saúde da Paraíba e retornou à Colônia Getúlio Vargas para trabalhar como funcionário efetivo. Pertenceu ao Conselho de Saúde da Colônia Getúlio Vargas e foi membro atuante do Morhan. Escreveu o livro O amor à vida não me faltou – trajetória de um ex-doente de hanseníase (João Pessoa: Ed. Universitária, 2003) em parceria com Clélia Albino Simpson de Miranda, enfermeira e professora da Universidade Federal da Paraíba, no qual narrou sua trajetória de vida como paciente e ex-paciente de hanseníase. Aposentou-se pelo INSS em 1997 e residiu alguns anos em uma casa na área pertencente à Colônia Getúlio Vargas, até falecer em março de 2009.”
Ruínas da pequena igreja da Colônia Getúlio Vargas.
Hortêncio conquistou o mundo, inclusive o mundo acadêmico, por onde percorreu dando palestras, mas, muito mais que isso, mostrou ao mundo que, ao realizar seu sonho de Ícaro, o impossível não existe.
Antônio Aurélio Cassiano de Andrade. Sítio Sossego, Triunfo - Paraíba, em 08 de dezembro de 2023, dia de Nossa senhora da Conceição e dia de Iemanjá.