Era uma manhã de sol, não me lembro mais qual era o dia da semana, no vão central da pequena capela de Nossa Senhora da Conceição, que ...

Hortêncio e uma manhã de Sol

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Era uma manhã de sol, não me lembro mais qual era o dia da semana, no vão central da pequena capela de Nossa Senhora da Conceição, que no dia 8 de dezembro rendemos homenagens, estava um caixão contendo o inerte instrumento, que um dos espíritos mais elevados que tive o privilégio de conhecer, se utilizou para desempenhar sua missão sobre essa terra.

Me chamou a atenção um pequeno pássaro, que num voo rasante, pousou a borda do caixão, ficou por ali um breve tempo, como a despedir-se, e foi embora. Lembrei imediatamente de uma história que ele havia me contado,
lá na sala da sua casa, no Conjunto Ivan Bichara Sobreira, mais conhecido em João Pessoa por alto do Mateus, onde fomos vizinhos próximos por alguns anos.

Na verdade, eu conheci Hortêncio numa manhã de domingo, de que também não lembro mais o ano.

Quando ainda na minha juventude, eu frequentei uma organização chamada União Espírita Deus, Amor e Caridade, mais conhecida como a Casa da Vovozinha, e fazia parte da Mocidade Espírita Bezerra de Menezes, que aos domingos pela manhã, tinha, alternadamente, duas missões: uma, era a campanha do quilo, que consistia em sairmos em grupo a pedir doações de alimentos para as vovozinhas que vivam naquela casa, e a outra, eram as visitas a Hospitais, Manicômios, Cadeias e, também, a única entidade que cuidava de portadores de Hanseníase na região, que era a Colônia Getúlio Vargas, localizada na cidade de Bayeux.

Pois foi num domingo desses, em uma visita do grupo àquele lugar, que eu dei de cara com esse conterrâneo que eu nem sabia existir, e menos ainda, que em breve nos tornaríamos amigos e vizinhos.

Uma das edificações da Colônia Getúlio Vargas, em Bayeux-PB, que abrigava enfermos com hanseníase.
Mas voltemos ao pássaro e a história que ele também contaria em seu livro, em parceria com Clélia Albino Simpson de Miranda, intitulado O Amor à Vida Não Me Faltou: Trajetória de um Ex-Doente de Hanseníase, editado pela UFPB em 2003:

“Quando eu vivia no isolamento, naquela casinha no meio do mato”, me contou ele, “eu via passar no céu um avião, e quando mamãe vinha me ver eu dizia a ela: eu ainda vou voar de avião! ”
Colônia Getúlio Vargas, 1950s
Ela, de certo, não acreditava nessa possibilidade, mas ele fez muito mais do que isso, e eu vi no voo daquele pássaro, a sua verdadeira liberdade em direção ao infinito.

Hortêncio Ribeiro Maciel nasceu em 26 de março de 1931, aqui, nesta localidade, onde hoje, com muita justiça, o poder público Municipal, na Pessoa do Prefeito Expedito Filho, dá seu nome a esse importante equipamento comunitário.

Hortêncio Ribeiro Maciel
Ainda criança, provavelmente em consequência de sua convivência com um Tio, portador do Mycobacterium leprae (daí o nome Lepra), contraiu a bactéria que iria mudar os rumos de sua vida.

A Lepra, provavelmente, era tão pavorosa quanto o Cólera, no que se refere ao alto grau de possibilidade de contaminação, a diferença era que a letalidade do Cólera, erradicada no Brasil no fim do século XIX, era quase que fulminante, enquanto a lepra ia, aos poucos, carcomendo o corpo, deformando-o, decompondo-o em vida, daí o medo e o preconceito, baseados numa profunda ignorância acerca da doença. A medicina ainda não tinha uma resposta para ela.

E como fizeram com Manoel Valdivino, praticamente contemporâneos, que segundo contam os relatos, enlouqueceu por volta dos 16 anos depois que almoçou uma galinha e foi tomar banho de açude, o isolaram em uma casinha no meio do mato. A diferença, é que Manoel terminou seus dias, já velho, naquela mesma casinha, e Hortêncio ganharia o mundo, espalhando uma mensagem de superação e luta, agarrando-se as oportunidades que a vida também lhe dera.

Isolado em seu retiro forçado, criança, tinha apenas a visita de sua mãe, que lhe provia de água, comida e muito amor.

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Colônia Getúlio Vargas, em 2023 ▪ Fonte: Paraíba do Passado
A princípio, ele passou a viver isolado em um quarto da casa, porém, ao saber da existência de um “leproso” no município de São João do Rio do Peixe (Triunfo à época pertencia a São João), o poder público, através do Prefeito tratou de pressionar a família para afastá-lo da própria casa, conforme nos relata no já citado livro:

“Quando foi um dia, meu pai recebe a intimação. (...) O Delegado foi com meu pai a Prefeitura (...) lá, o Prefeito disse: aqui na cidade corre rumores de que você está com um filho leproso dentro de casa. Você é proprietário, mora no que é seu, eu não posso mandar retira-lo. Mas eu lhe digo! Se você não tirar esse menino de dentro de casa, não vai sair nada, você negocia no comércio, você é agricultor, lavra milho, feijão, arroz, algodão. Nada vai sair de sua casa.”

Quem não lembra da famosa passagem supostamente bíblica, contra a qual o próprio Hortêncio lutou, e que conta a fantasiosa história de que Pedro, desavisadamente, sentou-se em uma pedra e Jesus o havia mandado levanta-se porque há séculos, ali havia sentado um leproso?

Hortêncio foi removido de sua casinha e mandado para a Colônia Getúlio Vargas na carroceria de uma caçamba, e até a escada que ele usou para subir no veículo, foi depois queimada.

As cidades de Triunfo e Bayeux estão localizadas em extremos opostos do estado da Paraíba, separadas por 488 quilômetros. ▪ Mapa: Wikimedia Commons
Mas ele foi um homem de luta e fé e o que parecia ser uma sentença de morte, ele transformou em vida, participou ativamente do cotidiano da colônia, tanto no que se refere aos cuidados dos internos quanto a própria administração, alcançou a cura, casou com uma companheira de internato, a querida amiga Severina dos Santos, com quem teve os filhos Emarinaldo Maciel, Emanoela Maciel e nossa querida Rosilene Duarte Maciel, que ainda criança veio para Triunfo e foi criada com muito amor e carinho por Dona Joanita Duarte, a quem sempre chamou de mãe.

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Hortêncio Ribeiro Maciel
Como consta em algumas de suas biografias encontradas em sites como o da UFPB:

“Durante todo o período em que esteve nessa instituição, desempenhou as mais variadas atividades no cotidiano hospitalar: foi o responsável pelo almoxarifado, enfermeiro, carcereiro, barbeiro, garçom e prefeito, por exemplo. Em 1961 foi para a Colônia Antônio Justa, no Ceará, trabalhar como enfermeiro. De volta à Paraíba em 1964 e após ter tido alta, casou-se e assumiu a responsabilidade pelo funcionamento da farmácia da Colônia Getúlio Vargas. Em 1981, saiu da Colônia e foi morar com a esposa na região de Alto do Mateus; cerca de dois anos mais tarde foi contratado pela Secretaria Estadual de Saúde da Paraíba e retornou à Colônia Getúlio Vargas para trabalhar como funcionário efetivo. Pertenceu ao Conselho de Saúde da Colônia Getúlio Vargas e foi membro atuante do Morhan. Escreveu o livro O amor à vida não me faltou – trajetória de um ex-doente de hanseníase (João Pessoa: Ed. Universitária, 2003) em parceria com Clélia Albino Simpson de Miranda, enfermeira e professora da Universidade Federal da Paraíba, no qual narrou sua trajetória de vida como paciente e ex-paciente de hanseníase. Aposentou-se pelo INSS em 1997 e residiu alguns anos em uma casa na área pertencente à Colônia Getúlio Vargas, até falecer em março de 2009.”
Ruínas da pequena igreja da Colônia Getúlio Vargas.
É desse homem, humano, sensível, lutador, que trata essa homenagem, e que eu, modestamente, a convite de minha amiga Rosilene, tenho o privilégio de vir aqui, não apenas falar de sua magnitude, mas em nome dela e de todos os familiares de Hortêncio aqui presentes, agradecer por este reconhecimento por parte de poder público municipal, na pessoa do Prefeito Expedito Cesário Filho, de todos os seus auxiliares e do Poder Legislativo Municipal.

Hortêncio conquistou o mundo, inclusive o mundo acadêmico, por onde percorreu dando palestras, mas, muito mais que isso, mostrou ao mundo que, ao realizar seu sonho de Ícaro, o impossível não existe.
Antônio Aurélio Cassiano de Andrade. Sítio Sossego, Triunfo - Paraíba, em 08 de dezembro de 2023, dia de Nossa senhora da Conceição e dia de Iemanjá.

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