Todo ser humano possui lembranças que compartilha apenas com alguns amigos. Existem outras que ele não revelaria nem mesmo a esses confidentes, guardando-as apenas para si, em segredo. Mas há também aquelas memórias que ele teme até mesmo admitir a si próprio — esse é o inconfessável, que gera sofrimento. São sentimentos como o apequenamento, o escapismo, a ingratidão, e uma consciência fragmentada, com dificuldade de se reconciliar com os outros e consigo mesma. Essa forma de viver constitui um constante conflito entre razão e emoção; desejo e frustração; recusa e aceitação — e revela a falta de um existir com dignidade, fundada na carência emocional, nas falhas existenciais e psíquicas, nas incertezas pessoais e no sentimento de vazio existencial.
Na primeira, intitulada “O Subsolo”, o narrador-personagem apresenta um monólogo que questiona os fundamentos do racionalismo e do determinismo. Para ele, a crença de que o ser humano age sempre de forma racional, buscando seu próprio benefício, é ilusória. Ele afirma:
“O homem precisa apenas de um desejo independente, custe o que custar, seja ele bom ou mau. Esse desejo independente, ainda que completamente estúpido, ainda que completamente fora de propósito, ainda que vá contra todos os raciocínios e todas as tabelas, é o que há de mais precioso” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 31).
Fyodor Dostoyevsky CC0
Na segunda parte da obra, intitulada “A Propósito da Neve Derretida”, o título funciona como metáfora para o sofrimento e a dificuldade de se livrar de situações melindrosas nas quais as pessoas se lançam, seja por vontade própria ou por falta de força decisória. Dostoiévski apresenta — na imagem de um túmulo — a lama, a sujeira e a neve molhada, que é representada pelas contradições das certezas humanas.
GD'Art
Por meio do protagonista, Dostoiévski questiona as dissociações presentes no ser humano confrontado com o absurdo da existência e sua incapacidade de encontrar sentido em um mundo desencantado. Ele apresenta um doente psicológico, cujas verdades ruíram e para quem nenhuma nova verdade é possível de ser reconstruída. O “Homem do Subsolo” é reflexo da condição humana deste século: consciente, livre, mas absolutamente dilacerado por sua própria lucidez. Ele não busca consolo ou redenção, nem oferece respostas. Sua existência é um grito abafado no inconsciente. Dostoiévski apresenta as inquietações de um indivíduo em crise; por mais que deseje resolver seus próprios males, ele não consegue realizar a felicidade ao seu redor. Esse anti-herói procura, na subjetividade e no individualismo, a única forma possível de suportar seu trágico existencialismo.