Eles passam praticamente todo dia. Devem morar na vizinhança, pois andam a pé e já não são jovens. Vão de mãos vazias e retornam com s...

O casal que vejo da varanda

cronica cotidiano casal distante
Eles passam praticamente todo dia. Devem morar na vizinhança, pois andam a pé e já não são jovens. Vão de mãos vazias e retornam com sacolas de supermercado. É quase um ritual. Imagino que essa caminhada é a ginástica que praticam, se é que essa palavra, ginástica, ainda existe, já que vem dos meus tempos de adolescente no Colégio Estadual do Roger, de saudosa memória (desculpem o clichê). De minha varanda, eu os observo com curiosidade científica, por conta de um detalhe que me chamou a atenção: andam sempre separados, ele na frente e ela atrás, nunca lado a lado. Como interpretar?

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Sim, como interpretar essa distância que os separa, às vezes menor, às vezes maior, conforme o dia? Como são idosos na forma da lei, ou seja, já passaram dos sessenta, o distanciamento se deve à idade, ao longo tempo juntos ou à familiaridade, mãe de tantas desatenções? Ou será que é apenas o jeito deles, sem nenhum prejuízo para a afetividade, se é que ela sobrevive aos cabelos grisalhos? São possibilidades que me vêm ao pensamento enquanto os acompanho com o olhar atento.

Eles parecem ter a mesma idade. Mas o homem é mais ágil, anda mais firme e mais ligeiro. Está lépido, para usar uma palavra antiga. A mulher está mais baleada, é mais lenta e aparenta ter uma certa rigidez nos braços, que me lembra um robô. Sim, é isso, ela parece estar um pouco (ou muito) robotizada. Não está bem essa mulher, penso com meus botões (desculpem novamente pelo clichê). Mas ela se esforça, a gente vê. Ela quer acompanhar o passo do marido. Ela não quer ficar para trás.

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Ele parece ser indiferente à mulher. Não sei se de fato é assim ou apenas parece ser. Vai em frente, como se estivesse sozinho. Só de vez em quando, para atravessar uma rua, ele se digna a parar e olhar para ela, sua mulher, coitadinha (será?). Ele está sempre de bermuda e chinelo, um pouco à vontade, para dizer o mínimo. Ela, não, arruma-se melhor, dá pra ver: calça comprida, blusa e sapatos. Cabelos presos. Cuida-se bem. Ele é mais relaxado. Saiu de casa do jeito que estava – e pronto. Precisa mais para ir ao supermercado, parece perguntar aos que cruzam com ele, indiferentes.

Se se arrumasse um pouquinho mais, até que não seria mal. Os homens costumam ser muito desarrumados, esta é que é a verdade. Machões, associam a desarrumação à virilidade. Esse negócio de se arrumar fica para as mulheres, pensam, para justificar o desleixo. Tudo bem, digo eu, não precisa muita emperiquitação, mas um mínimo de vaidade até que não faz mal a ninguém. É uma questão de autoestima, antes de tudo. É como manter o carro limpo. Diz muito sobre a pessoa, dizem.

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Quantos anos terão de casados? Ainda se querem bem? Ou se deixaram dominar pelo tédio? Ainda conversam? Ainda veem filmes juntos? Ainda saem para comer fora? Ainda viajam? Ainda se tratam bem, com um mínimo de carinho e respeito? Ainda riem juntos? São tantas perguntas, meu Deus. Chega. Que tanta curiosidade é essa?

De qualquer modo, estão juntos. Mesmo com um andando à frente e a outra atrás. Se assim é, deve restar algum afeto recíproco, imagino. Se não, ele já teria arranjado outra, não tenho dúvida. E bem novinha, pois não teria sentido trocar seis por meia dúzia, não é mesmo? Os homens são dados a essas substituições. Principalmente na chamada meia-idade, quando não estão ainda totalmente acabados. E se possuem alguns recursos, pois homem liso não atrai ninguém. As mulheres são mais difíceis de dar as contas dos maridos. As de antigamente, claro, pois as de hoje nem pensam duas vezes. A rotatividade é grande e a fila não para de andar. E frequentemente nem é porque o cara é ruim e sim por mera vontade de variar o cardápio, como se diz. Não que a oferta de homem no mercado relacional seja farta. Pelo contrário. Mas ainda assim dá pro gasto. E tome divórcio a três por quatro.

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Observando os dois passando, ele na frente e ela atrás, fico com pena dela. A impressão que tenho é de que ela não está sendo bem tratada. Caso contrário, ele caminharia ao seu lado. Ou pelo menos não tão à frente, como se andasse sozinho. Ele parece que não está nem aí. Isso não é correto, penso eu. Mas que sei eu sobre eles, para ficar julgando à distância de minha varanda? Devia mais era cuidar de minha vida, isso sim!

Lá se vão eles, desaparecendo na curva da rua. Voltarão amanhã, é certo. E mais uma vez, se calhar, eu estarei no meu posto de observação involuntário. Observando e refletindo. Sobre eles e sobre mim, inevitavelmente. A vida é assim. Não raro, precisamos dos outros para nos enxergar. Fico devendo isso a eles dois. Que nem desconfiam de que os vejo de minha varanda. Sim, a vida é assim.

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  1. Obrigado, Lúcia.

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  2. Obrigado, Raniery.

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  3. Obrigado, Leo.

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  4. Obrigado, Frutuoso.

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  5. Dei boas risadas! Costumo andar rápido e a esposa sempre reclama! Obrigado pelo excelente texto, amigo Gil Messias! Quantos se viram no texto, como eu?

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