Cuité é “Crescentia cuteje L.” nos livros e cadernos científicos. Popularmente, esse fruto também pode ter os nomes de coité, cabaça, c...

O fruto e a cidade

cuite paraiba
Cuité é “Crescentia cuteje L.” nos livros e cadernos científicos. Popularmente, esse fruto também pode ter os nomes de coité, cabaça, cuteje e outros mais. Eu pensava que fosse cria do nosso Semiárido antes de pôr as vistas num desses textos acadêmicos que circulam na Internet a três por quatro.

Tal leitura me fez ver que a cueira, cabaceira, ou coitezeira, enfim, a pequena árvore capaz de parir frutos tão grandes, é nativa da América Central, de onde se expandiu, inicialmente, para o Norte e o Nordeste brasileiros, em priscas eras.
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UFCG, Campus Cuité ▪ Foto: Márcio Chaves
É planta que gosta de climas quentes e chuvosos e pode florescer muito bem, obrigado, debaixo de uma, ou duas geadas, com termômetros medindo zero grau. Isso deve explicar outras de suas muitas denominações: cabaceira, calabaça, mate, aurina e por aí vai. Terá sido, assim: cada povo com seus termos.

Outra surpresa resultante da mesma leitura: ainda verde e com o diâmetro máximo de oito centímetros, o cuité (meu termo preferido), pode ir muito bem numa sopa. E pode ter as sementes igualmente cozidas. A polpa ainda rende chás e xaropes. Serviriam para o quê? Pois bem, vamos a essa lista das avós de outrora: para o combate à asma, à bronquite, às tosses e às infecções em geral. Ainda, para o enfrentamento das dores abdominais e diarreias. Mas não duvido de que falte, aqui, a menção a outras aplicações, de vez que minhas pesquisas de temas afins costumam ser tão rasas e breves quanto o pesquisador.

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UFCG, Campus Cuité ▪ Foto: Márcio Chaves
Basta-me, porém, o fato de que preenchem a minha memória afetiva o fruto bem maduro e seus usos no Nordeste. Ainda hoje, duro como madeira, o cuité seco e serrado ao meio pode virar caixa de ressonância para berimbaus, lá nas bandas da Bahia. Mas gosto, mesmo, apesar dos pesares, é de lembrar que virava cuias a serviço do banho frio nos banheiros de quintal. Meus pais e avós tiveram um desses com um tanquinho onde os aguadeiros (vendedores de água transportada em lombo de burro) despejavam o conteúdo das suas ancoretas.
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Tomar um banho de cuia, às 5 ou 6 da manhã, com água retirada de um daqueles tanques era operação para os mais fortes e destemidos. Quem já experimentou isso sabe que água tão gelada corta como canivete as carnes dos que se acostumaram aos edredons e chuveiros elétricos.

Cuia, pessoal, tem a cara e as manias dos mais antigos. Tem os modos de quem acordava a filharada à primeira ordem para a ida pontual à escola. Não deixo de lembrar que, no futebol, o banho de cuia impunha – e ainda impõe – tanto medo quanto o da água fria no espinhaço. Acho que por aqui a jogada teve inspiração naqueles banhos matutinos e cortantes de fundo de quintal. Os do Sul/Sudeste, adeptos em maior grau do progresso e do conforto, amenizam a coisa. Tratam por “lençol” o drible doloroso e humilhante. Não sabem o que seja, literalmente, um banho de cuia, às 5 da manhã.

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Berimbaus com cabaças de cuité (secas e ocas), usadas como caixa de ressonância na capoeira. ▪ Imagem: Wmpearl, via Wikimedia
Cuia me lembra outras coisas: a vasilha doméstica dos pobres de antigamente que dela faziam, também, pratos e canecas. Não menos, utensílios para a guarda da fava, do feijão e do milho destinado ao consumo diário e para as sementes endereçadas ao plantio quando os bons ventos empurravam as nuvens de chuva para as roças secas. Cuia me faz lembrar de Jacira, a ajudante da minha mãe. Dela e de seus iguais, daquela gente acostumada a beber, no santo recesso dos seus lares de palha e taipa, das bacias escavadas no leito arenoso do Paraíba. O que dali então minava era uma água clarinha, não baldeada, se retirada, cuidadosamente,
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UFCG, Campus Cuité ▪ Foto: Márcio Chaves
com movimentos de superfície das cuias para os potes. Água salobra, água não tratada dos mais pobres.

Gostei de conhecer a arvorezinha de cujos botões surge esse fruto com formato, importância, significado e usos tão extensos e variados. Desconhecê-la, não exagero, era uma das minhas carências existenciais. Foi meu primogênito que, no último fim de semana, me fez a apresentação tão prazerosa, no Campus da Universidade Federal de Campina Grande bem instalado no município paraibano que mistura seus xique-xiques, mandacarus e coroas-de-frade aos do Rio Grande do Norte.

Conheci, portanto, a cueira, coitezeira, ou cabaceira, como queiram, nas belas alamedas do bem cuidado Campus da UFCG existente na cidade que tomou o nome desse fruto conhecido e utilizado na Região muito antes das batalhas dos nativos contra os colonizadores europeus. Falo de tempos imemoriais, digo da vida pré-colombiana, de hábitos humanos bem primitivos.

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UFCG, Campus de Cuité ▪ Image: GovBR
Cuité, a cidade, teve um crescimento impressionante para quem, desde 2009, ali não pisava com passos mais largos e demorados. Eu e uma mãe igualmente orgulhosa lá estivemos pela primeira vez, há 16 anos, a fim de acompanhar o êxito do nosso filho mais velho no concurso ao fim do qual seria contratado para preencher a vaga de professor de Biologia disputada por candidatos dos quatro pontos do País.

Cuité, acreditem, tornou-se um recanto de muitos sotaques. Tal como os professores, os alunos provêm de Regiões distintas do País para os seus Cursos de Ciências Biológicas, Enfermagem, Farmácia e Física.

A Cuité de hoje atrai os daqui e os de fora, também, por seu clima noturno bem frio, pela crescente atividade empresarial na qual se incluem restaurantes, hotéis e pousadas, por seu artesanato e suas festas. Somam-se, neste caso, o Festival Universitário de Inverno e “o maior teatro ao ar livre da Paraíba”, assim entendida a encenação da Paixão de Cristo, com 300 atores e efeitos especiais em uma Via Sacra de três quilômetros. Trata-se de uma celebração à cultura, à emoção e à religiosidade, como define a propaganda oficial.


Belo destino teve o povoado surgido de três fazendas, uma delas, nos idos de 1773, pertencente a uma senhora com o nome de Chica Gorda, uma dama valente a ponto de enfrentar sem esmorecimentos índios, espinhos, friagens e secas.

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  1. Maravilha de texto, Frutuoso. É o olhar atento do cronista para as coisas da terra e da cultura do povo. È sociologia e antropologia em pequena dose. É pesquisa e constatação in loco transformadas pela palavra literária em prosa de especial sabor. Virei fã de Cuité. Parabéns. Francisco Gil Messias.

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