Jean-Paul Sartre (1905–1980) e Albert Camus (1913–1960) figuram entre os pensadores mais influentes do século XX, não apenas pela produção literária e filosófica que legaram, mas pela intensidade intelectual com que enfrentaram as crises políticas, morais e existenciais de seu tempo.
Jean-Paul Sartre ▪ Wikimedia
Sartre, formado na tradição fenomenológica e profundamente impactado pela experiência da ocupação nazista, consolidou-se como o principal representante do existencialismo francês. Sua filosofia parte do pressuposto de que o ser humano está condenado à liberdade, e que essa liberdade implica responsabilidade integral por cada escolha. No pós-guerra, esse imperativo ético o conduziu ao engajamento político radical, aproximando-o do marxismo, entendido por ele como a única estrutura teórica capaz de interpretar e transformar as injustiças sociais e históricas.
Camus, nascido na Argélia colonial, cresceu em um ambiente de pobreza e luminosidade mediterrânea que marcaria profundamente sua sensibilidade literária. A experiência do absurdo — o descompasso entre o desejo humano de sentido
Albert Camus ▪ Wikimedia
O ambiente histórico que moldou ambos foi caracterizado por rupturas profundas: as duas guerras mundiais, o avanço e a queda dos regimes totalitários, o trauma do Holocausto, a reconstrução da Europa e os conflitos coloniais, sobretudo a guerra da Argélia. Em tal contexto, o pensamento filosófico e o engajamento político tornaram-se inseparáveis.
A amizade inicial entre Sartre e Camus nasce dessa urgência compartilhada, mas a mesma urgência, interpretada de modos distintos, conduziria à ruptura definitiva entre os dois.
A recepção do círculo sartreano foi hostil.
A revista Les Temps Modernes, dirigida por Sartre, publicou críticas duras, acusando Camus de ingenuidade política e de falta de compreensão histórica.
A resposta de Camus, digna, porém firme, marcou o fim da amizade.
Camus não podia aceitar tal posição.
Para ele, a liberdade é inseparável de limites, e limites são a única garantia da dignidade humana. Nenhum projeto histórico justifica a morte de inocentes. A verdadeira revolta, em sua concepção, é aquela que recusa tanto a submissão quanto o assassinato.
A partir desse episódio, suas diferenças tornaram-se públicas e irreconciliáveis. Enquanto Sartre acreditava que o engajamento total era uma exigência moral da liberdade humana, Camus identificava
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Essa tensão teórica adquire nova relevância quando transposta para o cenário político contemporâneo, marcado pela centralidade das redes sociais, pela polarização acelerada e pela amplificação da violência simbólica.
A lógica digital da tomada de posição imediata e categórica reproduz, em certa medida, a dinâmica sartriana: a exigência de escolher um lado, a recusa à ambiguidade e a simplificação das questões complexas em antagonismos rígidos. As redes favorecem o engajamento permanente, transformando dissensos em hostilidade e debates em militância.
O que se observa no ambiente digital contemporâneo é justamente esse engajamento: comunidades virtuais organizadas em torno de identidades rígidas, que exigem adesão plena e punem qualquer dissidência com hostilidade, humilhação ou cancelamento. A ideia sartreana de que a história tem lados claramente definidos está presente no modo como as comunidades digitais tendem a dividir o mundo entre
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O fenômeno do “cancelamento”, por exemplo, seria analisado por Camus como uma forma contemporânea de violência simbólica: a supressão da singularidade de alguém em nome de uma narrativa que pretende representar o bem coletivo.
Enquanto, Sartre veria ali a força de um posicionamento político decisivo; Camus veria um empobrecimento moral, no qual o impulso de punir substitui o esforço de compreender.
A crítica camusiana ao “assassinato em nome da história” encontra paralelo surpreendente na dinâmica que transforma divergências de opinião em ataques pessoais. Nas redes, a pessoa não é criticada: ela é eliminada simbolicamente, reduzida a rótulos, caricaturas e identidades congeladas. Essa lógica é o oposto da ética camusiana, que exige cuidado com o indivíduo e rejeita qualquer violência.
O homem revoltado de Camus não destrói o outro.
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Nas redes sociais, multiplicam-se narrativas que se pretendem absolutas: cada grupo propõe sua própria visão salvacionista, reforçada por algoritmos que filtram e moldam a percepção do mundo. A consequência é a formação de microcomunidades dogmáticas que substituem a reflexão pela repetição de slogans morais.
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Essa crítica torna-se extremamente atual quando se considera a dinâmica das redes sociais, que operam por meio de algoritmos orientados pela intensificação emocional, pela polarização e pela simplificação moral.
A proposta camusiana de lucidez, compaixão e responsabilidade moral oferece, assim, um corretivo necessário ao ambiente hostil que caracteriza grande parte do debate público contemporâneo.
A releitura da divergência entre Sartre e Camus à luz da política digital evidencia a atualidade de suas reflexões.
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Hoje, quando as redes transformam opiniões em batalhas morais e desacordos em vitrines de agressividade, Camus se torna um guia essencial para repensar a convivência humana. Sua voz ressoa como um antídoto necessário diante de um mundo onde a velocidade substitui a reflexão e onde a indignação, mais do que o diálogo, se tornou a principal moeda social.
Camus nos ensina que nenhuma causa — política, ideológica, identitária ou moral — vale mais do que a preservação do ser humano.
E talvez seja justamente essa lição, tão simples quanto profunda, a mais urgente em um tempo em que a tecnologia potencializa o pior e o melhor das nossas paixões. E é essa escolha que a contemporaneidade parece precisar recuperar.
A liberdade.
Também penso assim!



























