Era um tempo em que me atormentava a impossibilidade de traduzir em palavras o que me vinha ao pensamento. Por mais que tentasse, as palavras não conseguiam alcançar o significado daquilo que os territórios sagrados me enviavam.
Pensava quanto podia ser inglório o trabalho do escritor, na esperança de apalavrar elementos oriundos de regiões ao mesmo tempo tão próximas e tão remotas de si mesmo. Essas reflexões faziam daquele tempo um tempo de melancolia permanente.
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Seria uma mensagem? Certamente. Mas, precisamente, que mensagem? Será o recado de que é impossível reproduzir, copiar um indivíduo com todas as suas características? Será que a justificativa da espécie está na identidade única de cada um de seus indivíduos?
Ou será que tudo ainda está num processo evolutivo em busca do que seria uma simetria perfeita? Ou, ainda melhor, que a beleza e o sentido estão nas diferenças e a evolução só irá aperfeiçoar as diferenças nas semelhanças?
Usava dessas reflexões quando algo que poderia ser uma mudança tênue na direção do vento, um odor sutil vindo de alguma parte, ou mesmo uma alteração quase imperceptível da temperatura — não tenho certeza — me fez levantar os olhos.
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No breve instante em que passamos um pelo outro, pude ver sua tristeza. Sim, era uma expressão de tristeza. Mas não uma tristeza qualquer. Uma tristeza profunda, dessas que marcam as feições, com um vinco quase trágico. Uma tristeza vinda dos abissais daquela mulher.
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Nós cruzamos os olhos num breve lapso de tempo, nem um segundo talvez; apenas senti o impacto, como se ela tivesse me passado parte de sua dor. Uma migração de melancolia. Passamos um pelo outro e seguimos adiante, eu levando parte da mensagem de seus olhos.
E então, mais alguns passos à frente, algo me puxou instintivamente para trás. Certamente os átomos de sua tristeza tinham interagido com os meus. Foi minha impressão e meu susto. Algo absolutamente inusitado. Jamais passei por uma experiência assim.
Em certo momento, simplesmente não consegui mais prosseguir; a ordem era retornar e reencontrar aquele rosto tomado da maior melancolia já vista. E foi assim que retornei e apressei o passo. Ela já seguia distante, com o mesmo passo compassado das pessoas tristes, rumo ao seu destino.
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Hoje, meditando sobre o episódio, entendo que talvez naquela rápida troca de olhares ela tenha percebido que eu não representava perigo. Seu instinto animal sabia que eu não queria seu mal. Então, fui me aproximando dela, fazendo a areia ranger rápido sob meus pés. Eu não enxergava mais nada, nem as conchas, nem o mar. Só o seu corpo ondulante adiante.
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Fiquei embaraçado; não esperava que me encarasse tão decidida, como se indagasse o que eu queria, quase como um desafio. E eu gaguejei uma desculpa qualquer, mas eu queria dizer que a tinha seguido porque queria compreender o que significava tamanha tristeza em seus olhos.
Ou, quem sabe, eu apenas tenha imaginado. Mas, se ouviu ou apenas suspeitou o que eu pensava, ela disse: “As portas da alma do mundo não se abriram para mim.” E seus olhos ficaram ainda mais melancólicos. Entre atônito e surpreso, ainda indaguei: “As portas da alma do mundo?” E ela certamente me achou muito bobo. Sim.
“As portas da alma do mundo só se abrem para os verdadeiros poetas. Sempre foi meu sonho ser poeta; hoje vejo que não sou, nunca fui, e por isso a vida perdeu o sentido para mim. A tristeza me vem por companhia, compadecida de minha desdita. Se não faço versos, pelo menos fico triste, e essa é a minha verdade.”
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Eu não podia compreender e apenas consegui dizer: “Então ser poeta é a sua ambição?” E ela respondeu, com uma ponta muito sutil de sarcasmo: “Ser poeta não é uma ambição minha; seria a minha maneira de estar sozinha.” Disse ainda: “Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças. Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.” Suas frases me soaram muito familiares. Certamente uma pessoa sem dons poéticos jamais teria tais palavras para dar.
“Mas tudo que você diz tem uma maravilhosa carga de poesia, que poucos poetas têm. Você é uma poeta, sim”, arrisquei ainda. E ela: “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada.” Seus olhos agora estavam tomados de uma espécie de possessão. Como se não fosse a mulher tão triste que eu havia abordado momentos antes.
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Enquanto processava suas palavras e tentava entender por que achava tão familiares suas frases, nem me dei conta de que passara um tempo, quase uma eternidade. E quando me virei para perguntar seu nome, ela não estava mais ali. Nem longe dali. Nem onde meus olhos pudessem ver. Ela simplesmente desapareceu. Só então me dei conta dos versos de Fernando Pessoa que ela tão tristemente declamara.


























