A Gil Messias, a quem conheço íntegro sempre, na luz e na sombra, como gesto de escuta e amizade.
O texto de Gil Messias — Beauvoir queria, mas Camus não — publicado no Ambiente de Leitura Carlos Romero, recebeu severas críticas por machismo, sobretudo porque generaliza comportamentos femininos, recorre a estereótipos biológicos sobre envelhecimento e desejo e usa uma linguagem provocativa que hoje soa datada.
Sem negar os problemas do texto, entendo que criticá-lo é legítimo, mas descartá-lo como mero machismo também é uma simplificação e talvez uma leitura pouco generosa com a complexidade do gênero ensaístico. Situar corretamente
Francisco Gil Messias, escritor, acadêmico e colaborador do Ambiente de Leitura Carlos Romero A União
Embora use generalizações infelizes, o foco narrativo não é “a mulher” abstrata, mas Simone de Beauvoir como personagem histórica concreta, inserida num meio específico: a Paris intelectual do pós-guerra, marcada por relações abertas, vaidades intelectuais e jogos de poder simbólico. Gil não acusa Beauvoir de hipocrisia moral nem a reduz a objeto sexual; ao contrário, reconhece repetidamente seu brilho intelectual, sua autonomia afetiva e sua liberdade de costumes.
Simone de Beauvoir e Albert Camus "Agência Nacional
O texto, por sinal, não poupa os homens: Sartre é chamado de “feio por excelência” e retratado como alguém que compensa isso por prestígio; Camus é mostrado como possivelmente vaidoso, evasivo ou até intelectualmente condescendente; a longevidade do “valor masculino” no mercado amoroso é descrita com ironia, dinheiro e fármacos incluídos, o que sugere cinismo, não celebração. Ou seja, não há exaltação moral masculina clara, mas uma visão desencantada das relações humanas em geral.
Jean Paul Sartre e Albert Camus em um encontro de intelectuais no estúdio de Pablo Picasso, em Paris (1944)
Universidade de Valência
Universidade de Valência
A pergunta final — “Terá sido essa corajosa recusa mais um motivo para se admirar Camus?” — não impõe uma resposta. Ela é provocativa, irônica, aberta. Gil não diz “devemos admirar”, mas nos convida a refletir sobre autonomia, desejo e recusa, inclusive masculina, tema pouco explorado ainda hoje.
Entendo que há machismo pontual, fruto de generalizações e imagens biológicas ultrapassadas; mas não há um projeto ideológico de inferiorização das mulheres. O escrito revela mais sobre vaidades, ressentimentos e jogos de poder do que sobre uma suposta “natureza feminina”.
Nelson Rodrigues
Correio da manhã
Correio da manhã
A memória de casos como a Fera da Penha pode ser entendida como exemplo quase mítico de como a rejeição amorosa pode desencadear violência quando atravessa orgulho, abandono e humilhação. Na verdade, penso que Gil tinha em mente Medeia, Lady Macbeth ou Emma Bovary como arquétipos do excesso passional. Medeia, traída por Jasão, que a abandona para se casar com outra mulher, executa uma vingança extrema e ritualizada: assassina a
Medeia Artemisia Gentileschi
Considero que não podemos ler o texto de Gil como se fosse um relatório sociológico. Não é. É ensaio literário com imaginação moral, em que crimes reais são evocados como símbolos extremos; a linguagem é deliberadamente forte, e o autor trabalha com tipos humanos, não com percentuais. Nelson Rodrigues fazia exatamente isso: extraía do fato policial uma verdade trágica, não uma média estatística.
Francisco Gil Messias
ALCR
ALCR
Onde Gil escorrega é na forma, na generalização, não necessariamente na intuição: ele não explicita suficientemente que esse padrão não é majoritário, que se trata de exceções extremas; usa uma linguagem que hoje soa biologizante. Mas a intuição central de que a rejeição pode produzir reações violentas específicas, inclusive em mulheres, é defensável e comprovável por casos concretos, como o da Fera da Penha, por exemplo.
Sem endossar o machismo, volto a dizer que ele erra ao generalizar, mas acerta ao lembrar que o sofrimento amoroso não é moralmente neutro nem exclusivo de um sexo e que, em situações extremas, mulheres também podem reagir com violência brutal quando sua identidade afetiva entra em colapso.
Assim, a Fera da Penha e outros casos não “provam” a regra, mas sustentam a existência do fenômeno que o autor, de modo literário e exagerado, quis captar.
Neyde Maria Maia Lopes, "A Fera da Penha", responsável por um dos crimes mais chocantes do Brasil na década de 1960, quando assassinou por vingança a filha de 4 anos, de seu amante, após ser rejeitada por ele
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Posso acrescentar, por fim, um testemunho pessoal relevante, que ajuda a equilibrar a leitura do texto: conheço o autor, e trata-se de um homem que nada tem de machista, muito ao contrário. Em sua vida pessoal e intelectual, sempre demonstrou respeito pelas mulheres, valorização de sua autonomia, de sua inteligência e de sua liberdade de escolhas.
Essa informação não serve para “blindar” o texto contra críticas, mas para esclarecer a intenção do autor. O que pode soar como machismo não nasce de desprezo ou ressentimento em relação às mulheres, mas de uma opção deliberada por uma escrita ensaística provocadora, herdeira de uma tradição literária que exagera, tensiona e incomoda para pensar o humano em suas zonas mais sombrias.
Há, portanto, uma diferença essencial entre postura pessoal e persona literária. Gil Messias não escreve para reafirmar hierarquias de gênero, mas para explorar conflitos, vaidades e excessos que atravessam homens e mulheres quando o desejo, o orgulho e a rejeição entram em jogo. Lido à luz de quem Gil Messias é e de como sempre se conduziu, o texto se revela menos como expressão de machismo e mais como um exercício de provocação intelectual, um ensaio literário imperfeito — como tudo na vida —, mas instigante, imperfeito na forma, mas distante de qualquer hostilidade real às mulheres.

























