A Gil Messias, a quem conheço íntegro sempre, na luz e na sombra, como gesto de escuta e amizade. O texto de Gil Messias — Beauvoir...

Todo machismo será castigado? O ensaio como ele é

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A Gil Messias, a quem conheço íntegro sempre, na luz e na sombra, como gesto de escuta e amizade.


O texto de Gil Messias — Beauvoir queria, mas Camus não — publicado no Ambiente de Leitura Carlos Romero, recebeu severas críticas por machismo, sobretudo porque generaliza comportamentos femininos, recorre a estereótipos biológicos sobre envelhecimento e desejo e usa uma linguagem provocativa que hoje soa datada.

Sem negar os problemas do texto, entendo que criticá-lo é legítimo, mas descartá-lo como mero machismo também é uma simplificação e talvez uma leitura pouco generosa com a complexidade do gênero ensaístico. Situar corretamente
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Francisco Gil Messias, escritor, acadêmico e colaborador do Ambiente de Leitura Carlos Romero A União
o texto é fundamental. Não se trata de um estudo sociológico, psicológico ou moral sobre homens e mulheres; o texto de Gil é um ensaio literário de cunho provocador — melhor dizendo, um ensaio literário de opinião —, no espírito de cronistas como Nelson Rodrigues (explicitamente citado). Nesse gênero, exagero, ironia, caricatura e generalização são recursos retóricos, não teses empíricas. Muitas frases são deliberadamente exageradas para provocar reação, inclusive indignação, e estimular debate. Julgá-lo como se fosse um artigo acadêmico me parece um equívoco de enquadramento.

Embora use generalizações infelizes, o foco narrativo não é “a mulher” abstrata, mas Simone de Beauvoir como personagem histórica concreta, inserida num meio específico: a Paris intelectual do pós-guerra, marcada por relações abertas, vaidades intelectuais e jogos de poder simbólico. Gil não acusa Beauvoir de hipocrisia moral nem a reduz a objeto sexual; ao contrário, reconhece repetidamente seu brilho intelectual, sua autonomia afetiva e sua liberdade de costumes.

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Simone de Beauvoir e Albert Camus "Agência Nacional
É de se notar, ainda, no texto de Gil, uma inversão de papéis tradicionais: Simone de Beauvoir aparece como ativa no desejo, alguém que toma iniciativa; Camus aparece como aquele que recusa, se esquiva, hesita; Sartre é descrito de forma pouco lisonjeira fisicamente, mas dependente de seu capital intelectual para sedução. Essa inversão — mulher desejante, homem recusante — tensiona, ainda que de modo imperfeito, papéis tradicionais de gênero, o que enfraquece a leitura de machismo simples e unidirecional.

O texto, por sinal, não poupa os homens: Sartre é chamado de “feio por excelência” e retratado como alguém que compensa isso por prestígio; Camus é mostrado como possivelmente vaidoso, evasivo ou até intelectualmente condescendente; a longevidade do “valor masculino” no mercado amoroso é descrita com ironia, dinheiro e fármacos incluídos, o que sugere cinismo, não celebração. Ou seja, não há exaltação moral masculina clara, mas uma visão desencantada das relações humanas em geral.

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Jean Paul Sartre e Albert Camus em um encontro de intelectuais no estúdio de Pablo Picasso, em Paris (1944)
Universidade de Valência
Gil escreve sobre personagens do século XX, usando referências culturais também do século XX. Beauvoir, Sartre, Camus e Nelson Rodrigues pertencem a um universo intelectual em que sexo, poder, ressentimento e vaidade eram discutidos de forma brutalmente franca, e a linguagem não era higienizada por sensibilidades contemporâneas. Condenar o texto sem levar isso em conta é aplicar retroativamente padrões discursivos atuais a uma tradição ensaística que, em sua época, deliberadamente fazia questão de romper com as convenções.

A pergunta final — “Terá sido essa corajosa recusa mais um motivo para se admirar Camus?” — não impõe uma resposta. Ela é provocativa, irônica, aberta. Gil não diz “devemos admirar”, mas nos convida a refletir sobre autonomia, desejo e recusa, inclusive masculina, tema pouco explorado ainda hoje.

Entendo que há machismo pontual, fruto de generalizações e imagens biológicas ultrapassadas; mas não há um projeto ideológico de inferiorização das mulheres. O escrito revela mais sobre vaidades, ressentimentos e jogos de poder do que sobre uma suposta “natureza feminina”.

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Nelson Rodrigues
Correio da manhã
No texto, quando Gil Messias fala da “ferocidade” feminina diante da rejeição, penso que o que está em jogo não é uma tese biológica ou moral, mas uma observação cultural e trágica, muito próxima da tradição literária, especialmente de Nelson Rodrigues, que ele invoca explicitamente. Ele não diz que mulheres são mais violentas, mas que, quando a violência feminina ocorre, ela frequentemente aparece associada à rejeição afetiva, à perda simbólica e ao colapso do lugar amoroso. Isso não exclui crimes masculinos, muito mais frequentes, mas aponta para uma modalidade específica de violência, rara, porém intensa, que a literatura e o noticiário conhecem bem.

A memória de casos como a Fera da Penha pode ser entendida como exemplo quase mítico de como a rejeição amorosa pode desencadear violência quando atravessa orgulho, abandono e humilhação. Na verdade, penso que Gil tinha em mente Medeia, Lady Macbeth ou Emma Bovary como arquétipos do excesso passional. Medeia, traída por Jasão, que a abandona para se casar com outra mulher, executa uma vingança extrema e ritualizada: assassina a
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Medeia Artemisia Gentileschi
nova esposa do marido e, no gesto mais radical, mata os próprios filhos. Sua vingança não busca apenas punir Jasão, mas atingi-lo no ponto mais profundo de sua identidade, anulando seu futuro e sua linhagem. Emma Bovary não pratica vingança contra um traidor específico. Sua resposta ao fracasso amoroso e à frustração conjugal é autodestrutiva: endividada, humilhada e incapaz de sustentar suas ilusões românticas, Emma se envenena. Sua vingança é simbólica e passiva, voltada contra si mesma e, indiretamente, contra a mediocridade do mundo que a sufoca. Movida pela ambição e pelo ressentimento, Lady Macbeth incita Macbeth a assassinar o rei Duncan. Sua vingança não é pessoal, mas política e simbólica, uma tomada violenta do poder. Após o crime, porém, o peso da culpa a consome, levando-a à loucura e, por fim, ao suicídio.

Considero que não podemos ler o texto de Gil como se fosse um relatório sociológico. Não é. É ensaio literário com imaginação moral, em que crimes reais são evocados como símbolos extremos; a linguagem é deliberadamente forte, e o autor trabalha com tipos humanos, não com percentuais. Nelson Rodrigues fazia exatamente isso: extraía do fato policial uma verdade trágica, não uma média estatística.

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Francisco Gil Messias
ALCR
O texto de Gil Messias, na minha leitura, não nega a violência masculina, que é histórica, cotidiana e muito mais numerosa. Ele apenas sugere que homens, quando rejeitados, tendem mais à agressão externa e imediata; mulheres, quando rejeitadas, tendem, em certos casos extremos, a uma violência emocionalmente concentrada, obsessiva, às vezes autodestrutiva. Ora, compreendo que isso pode ser discutido, contestado, refinado, mas não é de modo algum absurdo nem inventado, e encontra eco tanto na literatura quanto em certos episódios reais.

Onde Gil escorrega é na forma, na generalização, não necessariamente na intuição: ele não explicita suficientemente que esse padrão não é majoritário, que se trata de exceções extremas; usa uma linguagem que hoje soa biologizante. Mas a intuição central de que a rejeição pode produzir reações violentas específicas, inclusive em mulheres, é defensável e comprovável por casos concretos, como o da Fera da Penha, por exemplo.

Sem endossar o machismo, volto a dizer que ele erra ao generalizar, mas acerta ao lembrar que o sofrimento amoroso não é moralmente neutro nem exclusivo de um sexo e que, em situações extremas, mulheres também podem reagir com violência brutal quando sua identidade afetiva entra em colapso.

Assim, a Fera da Penha e outros casos não “provam” a regra, mas sustentam a existência do fenômeno que o autor, de modo literário e exagerado, quis captar.
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Neyde Maria Maia Lopes, "A Fera da Penha", responsável por um dos crimes mais chocantes do Brasil na década de 1960, quando assassinou por vingança a filha de 4 anos, de seu amante, após ser rejeitada por ele
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Em suma: o texto é defensável se lido como ensaio trágico e provocador, não como doutrina sobre “a natureza feminina”. O problema não é ter lembrado dessas feras; é não ter deixado claro que elas são exceções monstruosas, como toda boa tragédia sempre foi.

Posso acrescentar, por fim, um testemunho pessoal relevante, que ajuda a equilibrar a leitura do texto: conheço o autor, e trata-se de um homem que nada tem de machista, muito ao contrário. Em sua vida pessoal e intelectual, sempre demonstrou respeito pelas mulheres, valorização de sua autonomia, de sua inteligência e de sua liberdade de escolhas.

Essa informação não serve para “blindar” o texto contra críticas, mas para esclarecer a intenção do autor. O que pode soar como machismo não nasce de desprezo ou ressentimento em relação às mulheres, mas de uma opção deliberada por uma escrita ensaística provocadora, herdeira de uma tradição literária que exagera, tensiona e incomoda para pensar o humano em suas zonas mais sombrias.

Há, portanto, uma diferença essencial entre postura pessoal e persona literária. Gil Messias não escreve para reafirmar hierarquias de gênero, mas para explorar conflitos, vaidades e excessos que atravessam homens e mulheres quando o desejo, o orgulho e a rejeição entram em jogo. Lido à luz de quem Gil Messias é e de como sempre se conduziu, o texto se revela menos como expressão de machismo e mais como um exercício de provocação intelectual, um ensaio literário imperfeito — como tudo na vida —, mas instigante, imperfeito na forma, mas distante de qualquer hostilidade real às mulheres.

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  1. Lucidez e serenidade exegéticas, às quais se somam respeito e empatia pessoais. Que mais pode desejar um autor submetido à livre crítica dos leitores? Com gratidão e emoção recebo suas palavras destemidas e esclarecedoras, Nevita. Recebo-as também como bússola, no sentido não de patrulhar-me de forma paralisante, mas de redobrar os meus esforços de clareza ao escrever.
    Em você, homenageio todas as mulheres, sem exceções. Com você, continuarei acompanhando a luta de todas elas por justiça e reconhecimento.
    Paz e bem. Francisco Gil Messias.

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